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A vinda do Senhor: “Fiquemos sóbrios com a fé, o amor e a esperança” (1Ts 5,8)

Por Shigeyuki Nakanose, svd

Introdução

São João Bosco era italiano e viveu no século XIX. Ele tinha uma creche para crianças pobres. Numa tarde, os meninos estavam jogando bola e ele à beira do campo, assistindo. E o padre João resolveu fazer um teste com os garotos.

Chamou um, que passava perto dele, e perguntou: “Se você soubesse que daqui a meia hora você iria morrer, o que faria?”. O menino levou um susto, pensou e disse: “Eu ia para a capela rezar”. “Está bem, pode continuar jogando”, disse o padre.

Minutos depois, chamou outro e fez a mesma pergunta. Este também ficou confuso e disse: “Eu ia me confessar”.

Chamou um terceiro, que disse: “Eu ia pedir perdão à minha mãe”. Chamou um quarto garoto e lhe fez a mesma pergunta: “Se você soubesse que daqui a meia hora você iria morrer, o que faria?”. Este respondeu com naturalidade: “Eu continuaria jogando!”.

Esse último chamava-se Domingos Sávio. Ele morreu criança, foi canonizado e é o padroeiro dos coroinhas.

No tempo de Paulo, a pequena comunidade de Tessalônica passava por perseguição: “tantas tribulações” (1Ts 1,6). Uma vida ameaçada! Por isso, é muito compreensível que a comunidade esperasse ansiosamente pela vinda do Senhor, o dia da salvação. E alguns membros só rezavam e olhavam para o alto, inclusive até parando de trabalhar e de ajudar os outros. Qual era a orientação de Paulo e seus colaboradores para a comunidade?

  1. A vinda do Senhor

Que o mesmo Deus da paz santifique vocês completamente. Que o espírito, a alma e o corpo de vocês se conservem íntegros e irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Quem chama vocês é fiel, e é ele quem agirá. Irmãos, rezem por nós. Saúdem todos os irmãos com o beijo santo. Peço-lhes encarecidamente que esta carta seja lida a todos os irmãos. Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com vocês (1Ts 5,23-28).

O termo “vinda”, ou “parúsia”, referente à chegada do Senhor, é usado quatro vezes na primeira carta aos Tessalonicenses (cf. 1Ts 2,19; 3,13; 4,15; 5,23). Esse é o principal ponto teológico tratado na carta. Quase toda a carta está orientada para a segunda vinda do Senhor Jesus Cristo: “Pois quem é nossa esperança, nossa alegria, a coroa de glória, senão vocês diante de Jesus nosso Senhor no dia de sua vinda? Sim, são vocês a nossa glória e alegria” (1Ts 2,19); “E que ele fortaleça o coração de vocês numa santidade sem falhas diante de Deus, nosso Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus com todos os seus santos” (1Ts 3,13).

Na língua grega, o termo “parúsia”, de pareimi, possui diferentes sentidos: estar presente, estar aqui, apresentar-se, visitar ou chegar. É usado tanto para a manifestação ou a vinda da divindade na terra, em ocasião de cultos e festas, quanto para a chegada de um rei ou imperador, que é considerado a encarnação da divindade, como no caso de César Augusto, o filho de Deus. No mundo do império romano da época de Paulo, o termo “parúsia” aparece na terminologia da chegada ou visita de generais conquistadores, autoridades importantes, acima de tudo do imperador, às cidades submetidas ao seu império.

A chegada do imperador romano era uma ocasião muito especial para as cidades do império, tanto no tempo da guerra (advento ameaçador de julgamento) quanto no tempo de paz (fortalecimento da pax romana). Sua entrada triunfal na cidade era marcada por grande celebração popular, festividades aristocráticas e honras de sacrifícios e cultos divinos. A honra para o imperador, acompanhado de seu cortejo, manifestava-se sobretudo na saudação da autoridade e do povo nas portas abertas da cidade, como sinal de submissão. Certamente, esse evento de pompas solenes exigia tremenda preparação.

Segundo os pesquisadores, o conceito e a imagem da parúsia do imperador serviram para Paulo ao pregar e escrever sobre a segunda vinda do Senhor Jesus para julgar e governar o mundo. Na primeira carta aos Tessalonicenses, lemos: “Porque o próprio Senhor, ao soar uma ordem, descerá do céu à voz do arcanjo e ao toque da trombeta” (1Ts 4,16). Refere-se à grandiosidade do cortejo do Senhor Jesus com os anjos! Paulo, assim, descreve a parúsia, ou a segunda vinda do Senhor, com as cores da festa celestial, projetadas pelas festividades conhecidas nas cidades do império romano.

Em seu escrito aos tessalonicenses, Paulo parece contar com a possibilidade da parúsia iminente do Senhor Jesus: “Porque eles mesmos contam como vocês nos acolheram, e como se converteram dos ídolos a Deus, para servir ao Deus vivo e verdadeiro, e para esperar dos céus o seu Filho, que ele ressuscitou dos mortos: Jesus, que nos livra da ira futura” (1Ts 1,9-10). Como a tradição do Antigo Testamento, essa vinda é o dia do Senhor: julgamento e castigo contra os infiéis e alegria e triunfo para os fiéis:

Então vocês hão de se converter e verão a diferença que existe entre o justo e o ímpio, entre um que serve a Deus e outro que não lhe serve. Vejam! O Dia está para chegar, ardente como forno. Então os soberbos e todos os que cometem injustiça serão como palha. Quando chegar o Dia, eles serão incendiados – diz Javé dos exércitos. E deles não vão sobrar nem raízes nem ramos. Mas, para vocês que temem a Javé, brilhará o sol da justiça, que cura com seus raios. E vocês todos poderão sair pulando livres, como saem os bezerros do curral. Vocês pisarão os maus como poeira debaixo da sola de seus pés, no Dia que estou preparando – diz Javé dos exércitos (Ml 3,18-21).

Paulo assume a teologia do Dia de Javé e coloca Jesus no lugar de Javé. Será o dia do Senhor Jesus Cristo. A vinda messiânica do Senhor do céu à terra com toda a sua glória e poder, como as visitas festivas dos senhores imperadores. Um dia de alegria e triunfo dos cristãos! O dia da libertação e o fim da opressão do império! Mas quando chegará esse dia feliz? Está próximo? Como acontecerá isso? Perguntas e dúvidas pairavam sobre a comunidade cristã de Tessalônica. Uma das principais perguntas girava sobre os cristãos já falecidos: alguns já tinham morrido de causa natural; outros, martirizados na perseguição. O que aconteceria com eles? Não iriam participar da parúsia porque estariam ausentes quando da vinda do Senhor? Paulo afirma:

Irmãos, não queremos deixá-los sem saber das coisas que se referem aos que adormeceram, para que vocês não fiquem tristes como os outros que não têm esperança. De fato, se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus levará consigo aqueles que adormeceram em Jesus. Por isso é que lhes dizemos, segundo a palavra do Senhor: “Nós, os viventes, os que ainda estivermos aqui por ocasião da vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que adormeceram” (1Ts 4,13-15).

Jesus, morto e ressuscitado, e os cristãos têm o mesmo destino final: como ressuscitou Jesus, Deus fará o mesmo com os cristãos já falecidos. Eles serão ressuscitados e participarão da parúsia ou irão ao encontro do Senhor Jesus Cristo glorioso. Além disso, os cristãos falecidos ressuscitarão primeiro; em seguida a eles se juntarão os vivos: “Então, os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” (1Ts 4,16).

Mas por que Paulo fez essa afirmação de que os cristãos falecidos se encontrarão primeiro com o Senhor Jesus? Ao conhecer a visitação formal das autoridades, como a do imperador, por exemplo, a resposta parece clara. Chegando pela estrada principal a uma cidade, a autoridade imperial visitava os túmulos situados na entrada da cidade, para prestar homenagem aos mortos. Ou seja, os mortos eram visitados antes dos vivos. Com essa metáfora da visitação imperial, Paulo afirmou que, “então, os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro”.

Quanto aos vivos, Paulo continua: “Depois nós, os viventes que estivermos lá, seremos levados nas nuvens junto com eles, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos para sempre com o Senhor” (1Ts 4,17). Com a descrição característica da esperança apocalíptica (trombeta, descida do céu, nuvens), Paulo descreve o “arrebatamento” dos vivos, levados para o encontro do Senhor, sobre as nuvens. No mundo simbólico das correntes apocalípticas, eles estarão junto com o Senhor nos “ares”. Agora, surge uma pergunta: onde vão ficar para sempre com Jesus Cristo no mundo de realidades históricas? Onde fica o reino de Deus?

Nas cartas paulinas, Paulo usa a expressão “reino de Deus” em sete passagens: 1Ts 2,10-12; Gl 5,21; 1Cor 4,20; 6,9-10; 15,24; 15,50; Rm 14,17. Certamente, Paulo entende que o reino de Deus vai ser realizado no futuro, mas, ao mesmo tempo, afirma que o reino de Deus já está presente no meio das pessoas comprometidas com Jesus crucificado e ressuscitado.

 “Nós exortamos e encorajamos vocês, e testemunhamos para que levassem vida digna de Deus, que os chama para seu Reino e glória” (1Ts 2,12).

  1. a) “Porque o Reino de Deus não consiste em palavras, mas em ação” (1Cor 4,20).
  2. b) “Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, e sim justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Quem serve a Cristo nessas coisas, agrada a Deus e tem a estima das pessoas. Busquemos, assim, as coisas que trazem a paz e a edificação mútua” (Rm 14,17-19).

A “edificação mútua” é a construção da comunidade cristã, onde Deus se manifesta. A comunidade cristã deve ser a presença do reino de Deus de forma social: o mundo transformado pela vida digna, justiça, paz e alegria no Espírito do Senhor Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. Por isso, as outras passagens de Paulo, que enfatizam mais a chegada do reino de Deus no futuro, exigem dos cristãos a “ação concreta” de edificar e transformar a comunidade em pureza e santidade:

E as obras da carne são bem conhecidas: união ilegítima, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimizades, briga, ciúme, raiva, discussões, discórdias, sectarismos, invejas, bebedeiras, farras e coisas semelhantes a essas. A respeito delas eu já lhes falei, e volto a preveni-los: os que praticam tais coisas não terão como herança o Reino de Deus. O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, bondade, generosidade, fé, humildade e domínio de si mesmo (Gl 5,19-23; cf. 1Cor 6,9-10; 15,50).

De acordo com Paulo, filho do seu tempo, os cristãos devem edificar a comunidade na vida cotidiana. Ela deve ser o sinal da presença do reino de Deus antecipado, no qual o Senhor Jesus reina no lugar do imperador romano. Como a chegada festiva dos reis, imperadores e autoridades importantes às cidades, a vinda final do Senhor deve acontecer, com as saídas festivas dos cristãos ao encontro do verdadeiro Senhor e o retorno com ele ao mundo transformado pela justiça e pela paz. É assim que alguns pesquisadores comentam a vinda do Senhor em 1Ts 4,16:

A metáfora da parúsia como visita estatal dá a entender que os que correm para aplaudir o governador que está chegando voltarão com ele para as alegrias da festa da cidade. Assim também com Cristo. Provavelmente, Paulo subentendia que todos desceriam para habitar a terra purificada. A parúsia do Senhor não tinha nada a ver com a destruição da terra e a consequente transferência para o céu, mas com o mundo no qual a violência e a injustiça seriam transformadas em pureza e santidade (CROSSAN; REED, 2007, p. 160-161).

Paulo, que esperava a vinda final de Cristo para muito breve, não estava pregando a parúsia do Senhor como as destruições cósmicas apocalípticas, mas como as transformações definitivas do mundo pela justiça e pela paz, nas quais as pessoas estariam em comunhão eterna com o Senhor Cristo Jesus e entre si. Os fiéis deveriam ser os promotores desse mundo pela edificação da comunidade cristã: a presença antecipada do reino de Deus.

Na realidade, essa visitação final exorta e fortalece a fé e a esperança, capazes de encorajar os fiéis diante da perseguição e da morte. Ao mesmo tempo, a esperança pela visitação final do Senhor se torna inquietação e angústia: “quando” da chegada. E não será imprevisível. Além disso, Cristo é que chegará para concluir a história humana, presidir o juízo final e estabelecer a salvação final. A inquietação pelo Dia do Senhor aumenta no meio dos cristãos de Tessalônica, e Paulo responde a essa inquietação em 1Ts 5,1-11.

  1. “Fiquemos sóbrios, revestindo a armadura da fé e do amor, e o capacete da esperança da salvação”

A espera da vinda do Senhor é o tema que perpassa a primeira carta aos Tessalonicenses (1Ts 1,10; 2,19; 4,16; 5,23). Muitos dos que acreditaram no anúncio dos apóstolos morreram; por isso, havia muita inquietação por parte de algumas pessoas da comunidade sobre qual seria o destino delas. É bem provável que os missionários tenham falado sobre a ressurreição dos mortos. No tempo dos apóstolos, a crença positiva a respeito da vida após a morte era uma convicção somente das elites. A mensagem de Paulo e seus colaboradores restabeleceu essa esperança para todas as pessoas.

A respeito da indagação sobre aqueles que acreditaram em Jesus Cristo e já morreram, Paulo afirma que Deus é fiel e não permitirá que a esperança dos fiéis, vivos ou mortos, seja em vão: “Os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os viventes que estivermos lá, seremos levados nas nuvens junto com eles, para o encontro com o Senhor nos ares” (1Ts 4,16c.17).

A perseguição e o sofrimento fazem a comunidade esperar ansiosamente pela chegada imediata do Senhor. Os apocalípticos tinham como preocupação básica o fim dos tempos: “Quando essas coisas acontecerão?” (Dn 12,6). No Antigo Testamento, o Dia do Senhor é compreendido como o dia do julgamento (Is 2,12-22; Jr 46,10; Ez 30,2-3; Am 5,18-20; Ml 3,13-21), porém, nas primeiras comunidades cristãs, tornou-se uma referência ao dia da vinda de Jesus Cristo (cf. 1Cor 15,23; 2Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15).

Diante das possíveis indagações dos tessalonicenses sobre a hora desses acontecimentos, ouvimos a seguinte resposta: “Vocês sabem muito bem que o Dia do Senhor virá como um ladrão à noite” (1Ts 5,2). De acordo com os ensinamentos, o dia e a hora são incertos; por isso, é preciso assumir uma atitude de constante vigilância (cf. Mt 24,43; 2Pd 3,8-10). Para reafirmar a necessidade de uma espera ativa e confiante, Paulo usa as imagens de “ladrão” e “parto de mulheres”, que eram comuns para expressar situações inesperadas e de sofrimento. A vivência da fé, da esperança e do amor sustenta a comunidade e a prepara para o Dia do Senhor (cf. 1Ts 1,2-3; Fl 4,2-9).

Dirigindo-se aos fiéis, Paulo afirma que eles já saíram da ignorância e não precisam ter medo, pois estão preparados (1Ts 5,4). Conforme a linguagem da época, Paulo usa as imagens de luz e trevas, contrapondo assim salvação e condenação, bem e mal. A livre adesão ao evangelho garante aos fiéis a salvação, ou seja, a participação no Reino estabelecido por Jesus Cristo.

É preciso que os “filhos da luz” (cf. Is 58,8; Mt 5,14-16) estejam alertas: “não fiquemos dormindo como os demais. Fiquemos sóbrios e acordados” (1Ts 5,6). A exortação de Paulo dirige-se a todos os fiéis, inclusive a si mesmo. O que significa estar vigilante? Trata-se de uma vida pautada por uma fé ativa, pelo amor – serviço ao outro – e pela esperança (cf. 1Ts 5,3.8). Crer, amar e esperar sintetiza a vida em Cristo. Os termos opostos, luz e escuridão, identificam os que creem e os que não creem. No versículo 8, há uma forte convocação para que os cristãos revistam a armadura da fé e do amor, e o capacete da esperança da salvação (cf. Is 59,17; Sb 5,17-23; Ef 6,14-17).

A partir da convicção de Paulo e seus colaboradores, o projeto de Deus é a salvação para todos os que creem em Jesus Cristo: “Ele morreu por nós, para que, acordados ou dormindo, vivamos com ele” (1Ts 5,10). Os acordados são os que estiverem vivos no dia da vinda do Senhor; os que estão dormindo são os mortos. A garantia da salvação futura para os fiéis em Cristo é o fato de que ele se entregou por nós: “De fato, se quando éramos inimigos de Deus fomos reconciliados com ele por meio da morte do seu Filho, muito mais agora, reconciliados, seremos salvos por meio da sua vida” (Rm 5,10).

Essa passagem conclui com uma exortação aos fiéis: “encorajem-se uns aos outros e se edifiquem mutuamente, como, aliás, vocês já estão fazendo” (1Ts 5,11). A convocação para “edificar-se mutuamente” é importante para o fortalecimento e permanência do grupo, como aparece também na carta aos Coríntios (cf. 1Cor 14,12.17.26). Ao edificar-se uns aos outros, a comunidade de Tessalônica está realizando as mesmas atitudes de Paulo e de seus colaboradores (1Ts 2,11-12). É no amor mútuo que se constrói a vida fundamentada em Cristo crucificado e ressuscitado: “espera ativa”. Eis o nosso desafio hoje, especialmente no contexto da sociedade individualista em que vivemos. É preciso apostar e acreditar num projeto que tenha como objetivo o bem comum: “Fiquemos sóbrios com a fé, o amor e a esperança”.

  1. O fariseu Paulo e sua adesão ao Messias crucificado e ressuscitado: “espera ativa”

Em imagens noturnas, tive esta visão: entre as nuvens do céu vinha alguém como um filho de homem. Chegou perto do Ancião e foi conduzido à sua presença. Foi-lhe dado poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. O seu poder é um poder eterno, que nunca lhe será tirado. E o seu reino é tal que jamais será destruído (Dn 7,13-14).

O livro de Daniel descreve a vinda do Filho do homem, contraposto às quatro feras: “As quatro feras enormes são os quatro reinos que surgirão na terra. Porém, os santos do Altíssimo é que receberão o reino e o possuirão para sempre” (Dn 7,17-18). No contexto do livro de Daniel, escrito no segundo século a.C., quando o povo de Israel estava sendo perseguido, as quatro feras representam os quatro impérios perseguidores do povo de Israel (Babilônia, Medo, Pérsia, o império de Alexandre Magno e de seus sucessores).

Na visão apocalíptica, as quatro feras serão mortas e desaparecerão diante do Filho do homem, que simboliza os “santos do Altíssimo”, os israelitas fiéis. Ele vai entre ou com as nuvens até Deus, representado sob os traços de um ancião, será entronizado como rei poderoso e seu reino não terá fim. É a fé que sustenta a esperança do povo fiel em crise.

Na tradição judaica posterior, o Filho do homem torna-se o representante e o modelo do povo fiel dos santos e é identificado com o messias davídico:

Veja, Senhor, e levanta-lhes o rei deles, filho de Davi, para reinar sobre Israel, seu servo, no tempo que escolheste, Deus. Guarneceste-o com o poder para destruir os governantes injustos, para purificar Jerusalém dos gentios que a pisaram para destruir; para expulsar com sabedoria e justiça os pecadores da herança; para abater a arrogância dos pecadores como a jarra do oleiro; para quebrar com vara de ferro toda a substância deles; para destruir as nações ímpias com a palavra de sua boca; para fazer as nações fugirem da sua face ameaçadora, e expor os pecadores pela palavra de seus corações: e ele ajuntará um povo santo, a quem dirigirá com justiça. E ele julgará as tribos do povo santificado pelo Senhor Deus deles (Salmos de Salomão 17,21-26).

Os Salmos de Salomão (dezoito salmos) são um apócrifo do Antigo Testamento, escrito provavelmente pelo grupo dos fariseus, por volta de 50 a.C. Seu conteúdo é messiânico, apresentando a ação salvífica do rei messias, da estirpe davídica, pelo povo santo de Israel.

Nesses salmos, os fariseus, que pregam a salvação pela observância das leis e dos ritos – circuncisão, sábado, jejum –, apresentam o messias que salva os puros e santos e condena os impuros e pecadores. Ele mesmo é puro e livre de pecado: “Ele próprio será purificado dos pecados, a fim de governar um grande povo, para lançar ao opróbrio os governantes e remover os pecadores pelo poder da palavra” (Salmos de Salomão 17,36).

Além disso, havia a mentalidade de que o messias sem pecado não morreria nunca! Por quê? Segundo a tradição judaica da época, a morte entrou na humanidade pelo pecado, provocada pela inveja do diabo: “Porque Deus criou o ser humano para a imortalidade e o fez à imagem da sua própria eternidade. Pela inveja do diabo, porém, a morte entrou no mundo, e aqueles que a ela pertencem a experimentam” (Sb 2,23-24). Apresenta-se um messias sem pe­cado e sem morte!

Em suma, os judeus acreditavam que o messias, rei davídico, viria para estabelecer um reinado definitivo de Israel. Sobretudo para o grupo de fariseus, a condição principal do messias era ser puro, justo e santo, como representante do povo santo de Israel no fim dos tempos. Um messias rei davídico e defensor da lei, que seria santo e eterno!

Sem dúvida, essa visão do messianismo dos fariseus deixou Paulo, um fariseu, em crise: como acreditar num messias crucificado e morto? Ele mesmo afirma: “Os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria, ao passo que nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para as nações” (1Cor 1,22-23). Além do mais, Jesus critica a lei da pureza: ele vive no meio dos marginalizados, toca leprosos (Mc 1,32-42), come com os pecadores (Mc 2,15) e acolhe a mulher impura (Mc 5,25-34). São gestos e atitudes que desafiam a imagem do messias como defensor da pureza e da santidade, esperado pelos fariseus (Mc 7,1-7).

Pergunta-se então: como o fariseu Paulo aderiu ao movimento cristão, acreditando no Messias crucificado, Jesus de Nazaré, e o anunciando? Um Messias impuro e condenado à morte pelas autoridades religiosas da época, inclusive pelos fariseus. Por que motivo Paulo fez a passagem do messias rei davídico ou messias defensor da lei da pureza para o Messias crucificado? Da mudança ou conversão, ele mesmo fala num trecho da síntese do seu ensinamento, escrito em Fl 3,1-16. Na primeira parte, Paulo apresenta a sua posição anterior, no judaísmo:

E se alguém pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus. Quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na lei, sem reprovação (Fl 3,4-6).

Os fariseus insistem na observância da lei do puro e do impuro e nos ritos – circuncisão, sábado, jejum – como caminho necessário de salvação. Quem é justo é aquele que observa a lei da pureza segundo a teologia da retribuição, a teologia oficial consolidada, por volta de 400 a.C., pelos teocratas, as autoridades religiosas (cf. os livros de Ne, Esd, Lv etc.). Para eles, Deus é único, poderoso e castigador e enviará o messias puro e santo, defensor da lei da pureza, para estabelecer o tribunal e determinar a salvação para todos. A missão dos fariseus, então, é eliminar a impureza e acentuar a santidade do povo para apressar a intervenção de Deus, no juízo final. E assim também Paulo, um fariseu, zeloso pela lei e perseguidor dos cristãos, que era considerado um grupo impuro.

No entanto, no contato com o movimento de Jesus de Nazaré – partilha, doação e fraternidade –, Paulo toma outro caminho de salvação: o Messias crucificado e a teologia da gratuidade:

Mas tudo o que para mim era lucro, agora considero como perda, por amor de Cristo. Mais que isso. Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso não tendo mais como justiça minha aquela que vem da lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na fé. Quero, assim, conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão nos seus sofrimentos, assumindo a mesma forma da sua morte, para ver se de alguma forma alcanço a ressurreição dentre os mortos (Fl 3,7-11).

A salvação é a gratuidade de Deus pela fé em Cristo Jesus e em seu caminho: por amor de Cristo, conhecer Cristo, ganhar Cristo e ser encontrado nele. O conhecimento íntimo da pessoa de Cristo leva o cristão a participar da vida, dos sofrimentos e da morte de Cristo Jesus. Era necessária a comunhão com a paixão, a morte e a ressurreição do Messias crucificado! A morte aparece no caminho que Jesus de Nazaré escolhe! Vejamos as palavras de Paulo:

  1. a) “Pois Deus não nos destinou para a ira, e sim para possuirmos a salvação por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele morreu por nós, para que, acordados ou dormindo, vivamos com ele” (1Ts 5,9-10).
  2. b) “Antes de tudo, transmiti a vocês aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras” (1Cor 15,3).
  3. c) “Pois entre vocês eu decidi não saber nada além de Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2).
  4. d) “Com efeito, pela lei eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo. E já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim. Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da lei, então Cristo morreu inutilmente” (Gl 2,19-21).

Paulo não pregou Jesus como o messias rei davídico poderoso nem como o defensor da lei do puro e do impuro, mas sim como o Messias crucificado. Jesus caminhou para a cruz: “Abba, Pai! Para ti tudo é possível. Afasta de mim este cálice. Porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36). A cruz de Jesus é o resultado da sua fidelidade à missão do Pai e compromisso com seus irmãos até o fim. É o resultado do que ele pregou e do que ele fez: “Eu, Javé, chamei você para a justiça, tomei-o pela mão, e lhe dei forma. E o coloquei como aliança de um povo e luz para as nações, para você abrir os olhos dos cegos, para tirar os presos da cadeia, e do cárcere os que vivem no escuro” (Is 42,6-7; cf. 52,13-53,12). É a figura do Messias Servo!

E é exatamente por Jesus ter testemunhado esse amor até o fim, até a cruz, que Paulo verá na cruz a exaltação de Jesus como Servo de Javé e o caminho da salvação: “Quanto a mim, que eu nunca me vanglorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Por meio dele, o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo. Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão valem nada, e sim a nova criatura. E a todos os que seguem esta regra, que a paz e a misericórdia estejam sobre eles e sobre o Israel de Deus” (Gl 6,14-16).

  1. Uma palavra final

No contexto do imperialismo romano, Paulo pregou Jesus crucificado e ressuscitado e ousou caminhar contra a corrente e com a proposta de justiça do “Servo sofredor”. Quase dois mil anos se passaram, mas o imperialismo continua encarnado em muitas “feras”, devorando as pessoas inocentes com guerra, exploração, fome, violência. Até as Igrejas, com seu Cristo triunfalista e legalista, servem para conservar as feras do presente.

É o que se pode dizer, nessa realidade, acerca de nossa missão à luz da vida e das mensagens de Paulo, o fariseu, sua adesão ao Messias crucificado, a vinda do Senhor e a comunidade como o reino antecipado de Deus. Pois a palavra de Paulo permanece: “Nós, que somos do dia, fiquemos sóbrios, revestindo a armadura da fé e do amor, e o capacete da esperança da salvação” (1Ts 5,8).

Shigeyuki Nakanose, svd

*Shigeyuki Nakanose é religioso verbita, assessor do Centro Bíblico Verbo, leciona no ITESP (São Paulo). E-mail: [email protected]