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Publicado em maio-junho de 2016 - ano 57 - número 309

Antropologia da formação presbiteral inicial

Por José Lisboa Moreira de Oliveira

Biblicamente, o ser humano não é só corpo ou só alma. Ele é totalmente corpo, totalmente alma, totalmente espírito e totalmente marcado pela fragilidade. Essa concepção bíblica possibilita uma pedagogia formativa que valorize todas as dimensões da vida humana, evitando a fragmentação ou o descuido de uma delas.

Nos últimos anos, a Igreja Católica Romana se viu envolvida em uma série de escândalos, tendo padres como protagonistas. Esse fato afetou sensivelmente a missão evangelizadora. Conheço alguns padres que trabalham nos Estados Unidos da América e tive a oportunidade de ouvir deles relatos dramáticos de situações constrangedoras. Mesmo os padres honestos e equilibrados se viram de repente censurados e odiados pelo povo, a ponto de não poderem sair às ruas, pois corriam o risco de ser apedrejados.

Todos esses casos revelam a urgente necessidade de dar maior atenção à dimensão antropológica da formação presbiteral, particularmente no período inicial da caminhada. Infelizmente a experiência tem mostrado que, embora presente nos documentos oficiais, essa dimensão se encontra bastante esquecida, deixada de lado. Às vezes até se chega a fazer alguma coisa, mas de maneira muito superficial, não permitindo que os candidatos ao ministério presbiteral se encontrem consigo mesmos e enfrentem a si mesmos, trabalhando situações existenciais não totalmente resolvidas que podem depois atrapalhar seriamente o exercício dessa vocação específica.

Neste breve artigo, proponho dez passos que podem ajudar a retomar essa dimensão com maior seriedade, permitindo aos formadores e aos próprios vocacionados trabalhar em profundidade essa questão. São apenas rápidas pinceladas que exigem um aprofundamento maior e um trabalho mais intenso de acompanhamento personalizado dos candidatos. Aliás, em alguns casos, faz-se necessário um acompanhamento com especialistas (psicólogo ou psiquiatra) para detectar problemas mais sérios e até situações existenciais que impedem a ordenação do jovem. No presente contexto, o trabalho vocacional consiste mais em convencer a pessoa a desistir da ideia de ser padre do que o contrário. Parece um paradoxo, mas é isso mesmo!

  1. Elementos teóricos de fundamentação da formação inicial

Os primeiros três passos poderiam ser chamados de fundamentos teóricos da formação inicial. Trata-se de verificar quais concepções estão na cabeça dos formadores e dos formandos. O primeiro deles se refere à visão de ser humano. É de suma importância que os educadores vocacionais tenham clareza disso, pois, no mundo atual, fragmentado e confuso, podem aparecer visões e concepções totalmente distorcidas da pessoa. Muitas vezes, apesar de discursos bonitos, nossas ideias são o resultado de concepções reducionistas que limitam a visão de pessoa a um único aspecto. Por isso, é muito importante que os educadores vocacionais verifiquem como está isso neles mesmos e nos jovens vocacionados que chegam aos seminários.

A partir disso, faz-se indispensável resgatar a visão bíblica de ser humano, na qual há uma integração plena entre corpo (soma), alma (psiquê), espírito (pneuma) e fragilidade (sárx). Segundo a Bíblia, o ser humano não é só corpo, ou só alma, e assim por diante. Ele é totalmente corpo, totalmente alma, totalmente espírito e totalmente marcado pela fragilidade. Essa concepção bíblica possibilita uma pedagogia formativa que valorize todas as dimensões da vida humana, evitando a fragmentação ou o descuido de uma delas.

Por isso, o segundo passo é superar o dualismo filosófico e teológico que há séculos macula a vida da Igreja e, particularmente, a formação presbiteral. Por causa da ausência dessa visão bíblica de ser humano, temos criado verdadeiras dicotomias entre humano e divino, corpo e alma etc. Tal concepção vem desde a entrada do maniqueísmo no cristianismo dos primeiros séculos. Francisco García Bazán, no seu livro Aspectos incomuns do sagrado (Paulus, 2002), lembra que o maniqueísmo é “uma gnose intelectual helenística baseada na concepção de que o conhecimento é a causa determinante da salvação” (p. 179). Prega a existência de dois princípios ou naturezas, o bom e o mau, que são eternos, anteriores à criação do mundo, e estão em nítida oposição e separação entre si.

A tradução disso para a prática levou os maniqueístas a valorizar excessivamente a gnose, a alma, e a desprezar tudo aquilo que está revestido de humanidade. De fato, para a visão maniqueísta, a corporalidade, a dimensão humana da pessoa, é expressão ou resultado da queda do homem primordial. Logo é preciso separar as coisas, pois o resgate só virá por meio da separação que permitirá o triunfo do Bem. E se olharmos para o cristianismo atual e para o processo formativo, perceberemos como estão infestados de maniqueísmo. A desconfiança para com os aspectos humanos da pessoa (corporalidade, sexualidade, liberdade, autonomia etc.) são visíveis. E tal desconfiança leva a não trabalhar isso na formação, empurrando muitas questões para “debaixo do tapete”. Mais tarde, pressionados por situações da vida concreta, o “lixo” sai de debaixo do tapete e suja completamente a “pureza virginal” da mãe Igreja! Como aconteceu de forma impressionante nos Estados Unidos e na Irlanda, embora no Brasil não faltem exemplos disso.

Por essa razão, é indispensável um terceiro passo: ter consciência de que a pessoa é história encarnada. Também os vocacionados que chegam ao seminário trazem consigo uma história, com suas marcas bem definidas. Hoje, na quase totalidade dos casos, os jovens chegam quebrados, fragilizados, destruídos. Não porque sejam ruins, mas porque são vítimas de tantos problemas e situações que os afetam. Por isso, torna-se quase impossível encontrar um jovem sem problemas mais sérios e complicados. No dizer de Zygmunt Bauman (Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003), quase todos eles são “fugitivos” de si mesmos, dos outros, da realidade, contentando-se com uma maneira bastante “rebaixada” de viver. Assim sendo, a dimensão antropológica da formação precisa cuidar bem disso.

  1. Elementos de pedagogia vocacional

Em virtude do que foi dito antes, além dos fundamentos teóricos, é preciso processos pedagógicos que, de fato, facilitem e possibilitem um trabalho sério de acompanhamento vocacional. Tais processos pedagógicos devem, sobretudo, permitir que os jovens vocacionados se deem conta do que se passa dentro deles e queiram assumir a própria história com coragem e determinação. Isso é muito importante, pois, no momento atual, existe tanto da parte dos educadores vocacionais como dos próprios jovens o medo de olhar para a própria realidade. Infelizmente, como diz Bauman, o que encontramos hoje são “comunidades de fugitivos”, de pessoas distanciadas de si mesmas. Nesse sentido, proponho mais quatro passos, os quais comporiam a pedagogia da formação inicial.

Em primeiro lugar, o cuidado com o tempo justo. A maturidade do ser humano tem o seu ritmo e nós não podemos forçá-lo, antecipando ou prolongando etapas. No atual esquema canônico, as etapas de formação costumam ter prazos nos quais todos os formandos são incluídos, sem nenhum respeito pela história e pelo ritmo de cada um. Todos começam e terminam as etapas no mesmo dia e horário. Assim, o processo formativo se torna verdadeiro “balaio de gatos” no qual é possível encontrar pessoas diferentes, com histórias diferentes, situações diferentes e para as quais são aplicados os mesmos métodos, conteúdos e dinâmicas. Isso quer dizer que a formação, no atual contexto, precisa ser personalizada. O acompanhamento não pode ser genérico, igual para todos. Quando isso acontece, há o risco de precipitações e de queimas de etapas. E “apressar” ou “congelar” o tempo ou o ritmo de cada pessoa pode ser extremamente problemático.

Por essa razão, o acompanhamento vocacional deverá ser revestido de outro elemento, que é o discernimento e o cuidado com cada vocacionado. Toda formação terá que ser essencialmente discernimento. Ela precisa ser educação (do verbo latino educere), entendendo isso como processo que faz a pessoa tirar de dentro de si mesma aquilo que ela já é ou possui. Todo o processo formativo deve levar ao discernimento (do latim discernere = separar, cortar ao meio), ou seja, àquela capacidade de ir separando e analisando criteriosamente, dentro de si, os diversos elementos existenciais para conhecê-los melhor e verificar se é possível, com tais condições existenciais, assumir determinada vocação específica. Por essa razão, todo discernimento é doloroso e sofrido, mas precisa ser feito, pois, do contrário, não ajudará a formar pessoas sadias. Forjará apenas pessoas hipócritas e ambíguas. Tudo isso, porém, com muito cuidado, pois o ser humano é delicado, e certas dinâmicas e pedagogias podem aumentar ainda mais os problemas e transformar as pessoas em verdadeiros monstros.

Nesse sentido, um terceiro elemento pedagógico se faz necessário. O cuidado com a dimensão ética da formação. Trata-se de ver, em primeiro lugar, o que é melhor para aquela pessoa que está diante do educador vocacional. Sabemos, por experiência, que, infelizmente, na questão da formação presbiteral, costuma-se pôr, em primeiro lugar, os interesses da instituição. A falta de padre e o desespero diante da quantidade de “trabalho pastoral” a ser feito levam bispos, superiores e formadores a apressar as etapas, a formar de qualquer jeito, pouco importando a situação concreta dos sujeitos.

Há verdadeira falta de ética na maioria dos seminários. Pensa-se no número, na quantidade, nas demandas existentes, e não nas pessoas concretas. Dificilmente, na formação, faz-se a pergunta: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9). Dito de outra forma: em que situação se encontra o irmão formando? Será que posso exigir dele tamanha responsabilidade? Será que o processo formativo o está preparando de verdade para exercer um ministério tão exigente? Toda formação séria deve ser “guarda” do irmão formando, e cada formador deve sempre se perguntar: o que fiz? De fato, diz-nos ainda Zygmunt Bauman, no seu livro Ética pós-moderna (Paulus, 1997), eu sou “guarda de meu irmão” independentemente do que ele faz, vê ou pensa. Do ponto de vista ético, a minha responsabilidade é sempre maior que a dos outros.

Com base nisso, surge um quarto elemento pedagógico para a formação: avaliar constantemente os efeitos do processo formativo. Infelizmente, boa parte dos bispos, superiores e formadores nunca param para fazer avaliação. Têm medo da avaliação. Tremem diante da possibilidade de uma verificação corajosa que aponte falhas no processo. Por essa razão, ficam repetindo o que todo o mundo já está cansado de perceber que não deu certo. Com isso, provocam verdadeiros desastres, pois fomentam um tipo de formação que prepara monstros, e não seres humanos simples e responsáveis. Aliás, de modo geral, é típico da formação presbiteral criar pessoas irresponsáveis, incapazes de assumir sua própria responsabilidade diante dos outros. Infelizmente, os seminaristas saem dos seminários como padres que aprenderam a mentir, a fingir, a enganar, a pôr a culpa nos outros. Não aprenderam a assumir os próprios atos. Por isso, hoje, quase todos os padres ficam agarrando-se a normas firmes, a autoridades, à obediência cega, à infalibilidade. Porque, no fundo, como diz muito bem Bauman, na sua Ética pós-moderna, são homens-camaleão, que se escondem debaixo dos disfarces da lei para sufocar a própria insegurança e a própria incapacidade de assumir por si mesmos a própria responsabilidade. E nisso, ainda de acordo com Bauman, está a crise pós-moderna, pois a atitude de agarrar-se à segurança da lei transforma-se em insegurança dos sujeitos, pois nunca haverá para eles uma autoridade suficiente para lhes garantir que estão agindo certo. Por isso, facilmente acabam transgredindo todas as leis, agindo como se elas não existissem. Assim, os que parecem “conformistas”, por baixo dos panos e na calada da noite, fazem o que bem querem.

  1. Dimensão “política” da formação inicial

Podemos, então, concluir que há uma dimensão “política” da formação, entendendo esse termo no sentido de politichè, ou seja, de cuidado com o bem público, com o que é de todos. Porque o ministério presbiteral não é algo destinado para a vantagem dos próprios sujeitos, mas para o bem da comunidade (At 20,22-35; 1Pd 5,1-4), torna-se necessário que todo padre chegue à ordenação revestido dessa consciência. É claro que o exercício do ministério, quando resultado de um chamado divino, traz realização para os ministros. Mas isso é apenas consequência, e não fim. Desse modo, mais dois elementos são importantes para o processo formativo.

Antes de tudo, verificar que tipo de formação está sendo realizado. De fato, dependendo dos métodos e pedagogias usadas, a formação poderá ser apenas refúgio para fugitivos, para “órfãos”. Quando a formação forma apenas fugitivos, no sentido mencionado anteriormente, ela se torna um desastre, uma tragédia para as comunidades que receberão os futuros padres. Isso porque, como observa Bauman, no seu já citado livro Comunidade, fugitivos costumam juntar-se a outros fugitivos e criar padrões rígidos e exigentes com a finalidade explícita de não permitir que “intrusos” se metam na vida deles.

A consequência disso é o distanciamento cada vez maior do povo e a ausência de compromissos sérios com a comunidade, uma vez que a fuga não permite nenhuma forma de comprometimento com um povo que é visto como ameaça para a liberdade privatizada. Por isso, hoje está se tornando cada vez mais comum entre os padres, especialmente entre os midiáticos, a agorafobia, ou seja, o medo de lugares públicos, de multidões. Essas ameaçam sua fragilidade e sua superficialidade. Contatos mais intensos podem desmascarar o sujeito. Por isso ele prefere ficar em um palco muito alto e distante, onde não é possível enxergar as suas “rugas”.

Como consequência, um penúltimo passo se faz urgente: tomar consciência da relação entre a formação e a dimensão salvadora e libertadora da evangelização. Nos seminários, são formados os futuros guias do povo. Não temos o direito de brincar com algo tão sério e tão significativo para o amanhã da própria Igreja. É claro que Deus não vai ficar dependendo da figura de um padre para salvar a humanidade. Mas, mesmo assim, os presbíteros não deixam de ter importância decisiva para as comunidades católicas. E, nesse sentido, a salvação, pelo menos para os católicos, vai depender também deles, mesmo porque a própria hierarquia prega isso.

Conclusão: valorizar a dimensão antropológica da formação

Logo, como último passo desse itinerário, podemos afirmar que a antropologia vocacional não é algo irrelevante, mas essencial para a formação dos padres. Ela não pode ser, de forma alguma, descuidada, pois, se assim acontecesse, estaríamos pondo em sério risco o futuro de tantos presbíteros e de tantas comunidades. Não basta pensar na espiritualidade, na formação teológica, na pastoral e na vida comunitária. Se a formação não cuidar da dimensão antropológica, todas essas outras dimensões desaparecerão como fumaça. E os escândalos envolvendo padres estão mostrando que os seminários não estão cuidando dessa dimensão como deveriam.

Querer ordenar alguém que não trabalhou suficientemente o seu humano é o mesmo que entregar uma taça de cristal para que uma criancinha brinque com ela. Logo a criança vai deixar a taça cair ou vai arremessá-la por terra. E o desastre será total. Enquanto sacramento do Cristo Pastor, o padre deverá ser alguém que vai viver em favor das pessoas, capaz de ser compreensivo, especialmente com os que erram e fraquejam (cf. Hb 5,1-4). Mas, para que o futuro padre seja alguém realmente comprometido com as causas da humanidade, vai precisar ter plena consciência de que também ele “é acometido de todos os lados pela fraqueza” (Hb 5,2).

E essa consciência só se adquire quando trabalhamos de modo suficiente a dimensão humana, antropológica, da nossa vocação. Quando chega ao ministério pela via da arrogância (Hb 5,4-5), e não pela vida da encarnação, da kénosis (Hb 5,7-10; Fl 2,4-11), dificilmente um padre poderá ser sinal sacramental de Cristo, “causa de salvação eterna” (Hb 5,9). Será, pelo contrário, sacramento do diabo, pois não terá ideias e projetos de discípulo de Jesus, mas intentos e atitudes próprios de Satanás (Mc 8,32-33). E como costumava repetir um místico do século passado, Justino Russolillo, Deus nos livre desse tipo de padre!

José Lisboa Moreira de Oliveira

Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1982), mestrado em Teologia Sistemática pela Pontificia Facoltà Teologica dell’Italia Meridionale – Sezione San Luigi (1989) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1991). Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília (2008). Professor titular de Ética e Antropologia da Religião na Universidade Católica de Brasília e, na mesma universidade, gestor do Centro de Reflexões sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear). Professor convidado do Curso de Especialização lato sensu para Formadores de Seminários e da Vida Religiosa no Instituto Santo Tomás de Aquino (Ista) em Belo Horizonte. Tem diversas publicações na área da Teologia das Vocações e da Espiritualidade. O teólogo José Lisboa faleceu em 1º de março de 2015, e este artigo foi-nos encaminhado por ele alguns dias antes de sua partida. Nossa gratidão a Deus pelo dom da vida deste grande homem e por todo o bem que fez à Igreja.