Artigos

Publicado em maio-junho de 2013 - ano 54 - número 290

A psicanálise, as depressões, a culpa e o perdão

Por José Del-Fraro Filho*

A psicanálise pode ajudar o cristão a depurar e amadurecer sua fé e a não deslocar para Deus e a religião as fantasias, frustrações infantis, neuroses, excessos de culpa, rigidez e de moralismo.

1. A psicanálise e as depressões

É muito comum, como psicanalista, receber no consultório pessoas arrasadas pela angústia e em estado depressivo considerável. Nos dias de hoje, as depressões assolam jovens, adultos, idosos (vinte vezes mais comum nessa faixa etária) e até mesmo crianças… As depressões são distúrbios que muitas vezes necessitam de auxílio medicamentoso por se relacionarem às alterações bioquímicas passíveis de ser harmonizadas com psicofármacos. Porém, sempre recomendo aos meus clientes que naveguem em águas mais profundas e aproveitem o momento para uma análise, ou seja: para uma viagem ao interior de si mesmos.

Os remédios bloqueiam os sintomas ao harmonizarem a bioquímica alterada. Porém, além de fatores genéticos, a pós-modernidade com seu individualismo, competitividade, afrouxamento dos laços afetivos, neoliberalismo, associada à história singular de cada sujeito, vai definir a saúde ou doença e o grau de saúde psíquica das pessoas. Nos conflitos psicológicos, os medicamentos pouco podem fazer… Muitas pessoas chegam desesperadas aos consultórios e demandam verdadeiros milagres através dos psicofármacos. É preciso contextualizar e ponderar a complexidade do distúrbio e não embarcar no imediatismo, outro engodo de nossos tempos.

Ajudar o cliente a criar uma demanda, uma questão, uma pergunta fundamental, uma dúvida sobre suas neuróticas certezas, um hiato no seu discurso projetivo e muitas vezes sem faltas é tarefa fundamental na tentativa de diminuir sua alienação a respeito de si mesmo. Seria aparentemente muito mais fácil buscar solução que venha de fora, sem esforço ou trabalho psíquico, sem ter de tocar em suas feridas, sem ter que revirar a intimidade.

Apesar de ser inerente ao ser humano, a ambivalência de sentimentos nas pessoas depressivas chega a extremos, desencadeando a doença. As perdas reais e imaginárias que o deprimido passa ao longo de sua vida, principalmente em sua infância e adolescência, o conduzem processualmente à depressão. Essas perdas e falta de cuidados, a maioria inconscientes, levam o sujeito a fantasias de destrutividade e retaliação em relação às pessoas amadas. Odiar e destruir, inconscientemente, aqueles que mais amamos é um conflito árduo para nossas frágeis almas.

Os depressivos geralmente são muito exigentes consigo próprios e têm ideais muitos altos, já “engoliram muitos sapos”, justamente das pessoas que mais amam, e estão cheios de mágoas e ressentimentos.

Processar lentamente essas feridas estampadas e escondidas pela própria depressão é desafiador, porém grandemente libertador. E a energia psíquica envolvida no conflito poderá ser utilizada para outros fins, melhores para o sujeito e a sociedade.

Uma análise existe para processar todos esses conflitos inconscientes, uma pessoa poderá reviver sem julgamento do analista, sua dor, mágoa, ódio, sua destrutividade.

2. A psicanálise, a culpa e o perdão

Nessa etapa, gostaria de abordar de onde vem boa parte de nossos sentimentos de que estamos em pecado ou em dívida com as pessoas, com o mundo, com Deus.

Nós temos em nossa consciência, um espaço de liberdade e discernimento a nos implicar em nossas ações e escolhas. Porém o inconsciente se interliga ao consciente de forma inextricável e constitutiva da consciência. Isso nos leva ao raciocínio de que nossa liberdade é apenas parcial no que se refere às nossas condutas. Muito daquilo que denominamos pecado é na verdade limitação histórica, falta de cuidados recebidos, falta de amor que acirra nossa destrutividade e culpa inconsciente, e não pecado.

A criança e o adolescente, ao se tornarem adultos, carregam, independentemente de terem alguma religião, mais ou menos grau de culpa. Isso se dá pelas seguintes situações vividas por todos nós no amadurecimento emocional (apenas enumerando algumas delas):

•             Culpa por ter desejado ser exclusivo no desejo e na vida da mãe (e os desejos inconscientes não morrem nunca).

•             Culpa por ter desejado, na fantasia, destruir o seio e o corpo materno e a própria mãe como pessoa, por ter sido frustrado no desejo de exclusividade e por ela não ter satisfeito todos os nossos desejos e necessidades.

•             Culpa por ter desejos incestuosos pelo genitor do sexo oposto e pela rivalidade com o genitor do mesmo sexo.

•             Culpa por não ter pelos pais apenas sentimentos sublimes, construtivos.

•             Culpa por ter desejado a morte de irmãos rivais.

•             Culpa por ter desejado excluir o pai da relação mãe e filho(a).

•             Culpa por ter desejado, de maneira homoerótica, ou seja, o genitor do mesmo sexo ou criança do mesmo sexo.

•             Culpa por não corresponder totalmente aos ideais que os pais gostariam, e por atos que a criança, ao crescer (superego), percebe serem contrários aos interesses civilizatórios e familiares.

•             Culpa pela ambivalência afetiva constitutiva: o amor e ódio pela mesma pessoa (pais).

* A culpa é constitutiva da natureza humana, o excesso de culpa é patológico.

Mediante esse rosário de culpas a criança, para não sucumbir, elabora fantasias e atos reparadores. O amor e a sobrevivência dos pais são fundamentais para que as reparações inconscientes possam integrar melhor o seu amadurecimento. A reparação pode acontecer de várias formas, sadias e neuróticas, e pode nos transformar em adultos éticos, criativos, bondosos, sublimes ou submissos, excessivamente escrupulosos, obsessivos etc. Tudo isso movidos pelo desejo de reparação interna e externa.

Quando, na vida adulta, alguma situação apresenta semelhança com aquilo já vivido, o inconsciente se manifesta e vem à tona algum rastro ou marca de culpa em nossas consciências. A angústia sobrevém e sentimos necessidade de dar um nome ao vivido. Esse descompasso, essa inadequação, essa coisa fora de lugar que incomoda e gera desconforto costumamos associar, em nossa cultura judaico-cristã, a pecado.

Há Igrejas e modelos de Igrejas que tentam trabalhar a pessoa, bem ou mal intencionadas (não cabem aqui julgamentos), pelo prisma do moralismo, do dogmatismo e fundamentalismo. O ser humano, nesse estado, acaba perdendo muito de sua espontaneidade e criatividade, além da capacidade de crítica. Movidas e freadas pela culpa inconsciente, mais vivida na consciência como pecado, as pessoas se tornam massa de manobra, escravas de líderes carismáticos, de normas e regras farisaicas. E elas passam a tratar o próximo com enorme severidade e rigor, como seus superegos as tratam.

Escutando tantas pessoas todos os dias e há tantos anos em consultório, a cada dia mais me convenço que a culpa mal trabalhada leva não somente a excesso de escrúpulos, mas a neuroses, precipita doenças como a síndrome do pânico, obsessões e até mesmo graves doenças psicossomáticas. Mas, principalmente, conduz o ser humano a uma infelicidade crônica, a um boicote quanto a uma boa qualidade de vida.

A misericórdia que Jesus teve e tem por todos nós – filhos pródigos e herdeiros de nosso próprio inconsciente e ideologias – deveria ser emblemática para nossas condutas quanto a nós mesmos e aos outros. Realmente, não sabemos com exatidão aquilo que fazemos conosco e com o próximo. Muito menos sabemos as reais motivações quanto às condutas dos outros em relação a nós mesmos.

O amor a Deus e ao próximo e o maior conhecimento e amor por nós mesmos são as principais fontes de restauração aos danos reais e imaginários e às culpas reais e imaginárias que carregamos. São as principais formas de restaurarmos nosso ser e aqueles que amamos.

 3. Psicanálise, perdão, culpa e religião

Falar a respeito de pecado e perdão sempre tocou o inconsciente e as emoções das pessoas. Em dias atuais, é comum a palavra “pecado” provocar reações díspares. Em um extremo pode mobilizar tristeza, pânico, graves inibições. No polo oposto poderá sobrevir deboche, indiferença, pois, para algumas pessoas, falar sobre esse tema é “careta”, ultrapassado.

Nesse grupo existe uma subdivisão interessante: há aqueles que se afastam completamente dessa questão por não acreditarem em nada que se refira à religião e aqueles que não suportam sequer escutar a palavra “pecado”. Associam-na a sacrifício e penitências absurdas. De seus inconscientes, retornam cenas de abuso de poder dos pais e de igrejas. Percorreram um árduo caminho para se libertarem das amarras do castigo, do medo e, após alto custo emocional e tortuoso caminho, descobriram, enfim, o amor de Deus.

Penso que nos extremos desse grupo pode existir como pano de fundo, um intenso sentimento de culpa inconsciente, forjado na infância dessas pessoas e não trabalhado por elas. Os pais, as famílias, as igrejas podem colaborar e muito para evitar esse excesso de culpa, que paralisa o ser humano. As crianças leem no comportamento e no inconsciente dos pais como elas devem ser para se sentirem amadas. E para angariar estima e amor se moldam no que imaginam corresponder ao desejo deles. Muitas não puderam expressar e reprimiram excessivamente suas raivas, mágoas e a sexualidade. Para essas pessoas, as religiões podem desencadear novas culpas, reagudizar conflitos inconscientes ou ser uma alavanca em que se submetem compulsivamente a normas, regras, numa obediência cega e infantil. Perdoam o próximo simplesmente “porque Jesus mandou”, não se permitindo sentir raiva, questionar, refletir, elaborar os fatos vividos.

O perdão é um processo gradual, lento, doloroso, em que muitas vezes precisamos vivenciar angústia, indignação e sentimentos contraditórios. Conflitos, ambivalência, medo, raiva, culpa podem ser mobilizados e não devemos reprimi-los excessivamente.

A fé, infelizmente, pode ser utilizada como válvula de escape para a pessoa não se dar conta de sua própria agressividade. E perdoar pode se transformar em compulsão a reprimir a agressividade sentida, mediante a ofensa recebida. O motor de todas essas defesas é o terrível sentimento de culpa inconsciente desse grupo de pessoas, nada desprezível em termos numéricos.

As religiões podem funcionar como fuga de uma agressividade mal canalizada, e a pessoa não somente reprime a raiva que sente como retorna a mesma para o seu próprio interior. Uma fé assim vivida pode levá-la à depressão, pânico e até graves doenças psicossomáticas ou, no mínimo, a uma má qualidade de vida. Algumas pessoas rompem bruscamente ou não aderem a nenhuma religião, criticando todas elas.

A psicanálise é a ciência que lida com esses sentimentos de culpa da pessoa. Essa ciência promove um maior espaço de liberdade e responsabilidade na construção de sua história e do mundo.

Infelizmente, Freud só percebeu a religião como uma neurose coletiva movida pela culpa e pelo infantilismo, em que a criança projeta na figura de Deus seu desamparo infantil e transfere (quando adulto) seus anseios de amor infinito, dos pais para um “deus de prótese”.

Para um psicanalista cristão chega a ser doloroso esse fosso, esse abismo aparentemente existente entre psicanálise e religião, que o próprio Freud tentou sustentar. Porém, é preciso lembrar que Freud sofreu muito em sua infância com as humilhações e desprezos que seu pai, Jacob, passava por ser Judeu. Além disso, tinha grande receio de que o puritanismo vitoriano, vigente na sua época, rechaçasse suas desconcertantes descobertas psicanalíticas. Apesar disso, nunca recusou pacientes que se declarassem adeptos de quaisquer religiões e se tornou grande amigo de um pastor chamado Pfister. Esse último se tornou psicanalista e amigo para sempre.

A psicanálise pode ajudar o cristão justamente nos pontos que Freud criticou. Ela pode nos ajudar a desfazer mitos inconscientes, idealizações quanto aos nossos pais da infância, auxiliar na elaboração de nossa agressividade e a desfazer os conflitos de nossa sexualidade. Articulada a uma fé madura nos ajuda a não deslocar para Deus e a religião nossas fantasias e frustrações infantis.

E assim depurados pela psicanálise, as ilusões e idealizações infantis, e de nossos excessos de culpa, estaremos mais aptos na descoberta do verdadeiro Deus: o Deus do perdão, da misericórdia e do amor. Integrados pela fé madura e mais livres de nossos conflitos inconscientes, estaremos mais abertos para sentir e viver Deus em tudo e em todos.

 4. Psicanálise e perdão

Parece estranho à primeira vista, mas algumas vezes em nossas vidas, não conseguimos perdoar em profundidade, porque não sabemos exatamente o que e a quem realmente perdoar.

É que a força e o conteúdo maior de nossos sentimentos, mágoas, feridas se referem a situações tão penosas e antigas – nos reportam à nossa infância e adolescência – que os recalcamos em nossos inconscientes e nos tornamos alienados desse saber. Porém, na vida adulta, quando situações semelhantes acontecem conosco, deslocamos com toda força nossas indignações e mágoas reagudizadas para a situação atual. A mesma ganha fortes pinceladas emocionais, e a mágoa dirigida às pessoas das relações atuais é desproporcional. Assim, é comum escutarmos pessoas falando que “não foram com a cara” de alguém, mesmo que esse jamais tenha feito qualquer coisa de prejudicial a elas… Isso não se refere apenas ao “narcisismo das pequenas diferenças” como nos ensinou Freud. O inconsciente é formado por traços de memória, por representações e fantasias que a criança produz a partir de suas vivências, principalmente com os pais e irmãos. Muito do que sentimos, na atualidade, vem dessa fonte que se aproveitou de um gancho, de um dado atual para se reatualizar em nossas vidas. Até mesmo um olhar, um lugar, um jeito de falar pode detonar a angústia ou o amor… Não somos senhores de nossa própria casa, de nosso eu e o inconsciente penetra e se apodera de boa parte dessa casa. Algumas vezes tratamos um vizinho ou algum colega de trabalho com desconfiança ou frieza. Pequenas desavenças se transformam em grandes confusões e disputas, pois no inconsciente, vizinho, colega, por associação, pode representar um próximo, um irmão rival da infância. Na vida amorosa, catástrofes, brigas, separações muitas vezes seguem a lógica do inconsciente, da realidade psíquica.

Corremos o risco de deslocar, projetar, transferir para o cônjuge todos os nossos anseios e desejos de sermos amados incondicionalmente. Idealizamos uma relação como gostaríamos de ter tido com nossa mãe (ou pai). No momento em que o cônjuge sai desse lugar ou “falha”, todos esses anseios primitivos de amor ideal podem vir à tona e a desilusão e a mágoa inconscientes podem reaparecer ou nos causar angústias inexplicáveis ou até mesmo depressões.

A figura de um político, policial, padre, professor ou alguém que se coloque como autoridade, lei, pode ter o poder de nos remeter às nossas mais primitivas angústias, medos e raivas enraizados nas formas como essas leis foram passadas por nossos pais e introjetadas por nós.

Muitas vezes perdoamos as pessoas de nossa realidade atual, fazemos um esforço tremendo para resolver a situação. Mas a ferida mais profunda inconsciente e infantil continua intocável. Somente aparamos a planta desse mal, mas suas raízes psicológicas continuam vivas e prontas para se manifestar na primeira oportunidade que tiverem.

Perdoar é um processo complexo de libertação emocional e espiritual. Conversar com Deus, com o padre, o amigo, o psicanalista, com o agente da dor, tudo isso pode fazer parte desse belo, doloroso e lento processo. Silenciar, negar, sufocar a raiva inicial que o acontecimento provoca são as piores soluções, pois isso não ajuda a elaborar o acontecimento e a realmente se livrar e aprender com a situação. O ideal é que a pessoa consiga expor para o outro o quanto foi atingida, e que no diálogo possa haver crescimento para ambos e a reconciliação se faça. Porém, nem sempre isso é possível. Não controlamos o outro, sua capacidade de rever a si mesmo e seu grau de espiritualidade. Quando a ferida é muito profunda, ela ainda deixa um resto, uma cicatriz pela vida toda. Ela só irá esmaecer-se por completo no instante final, quando o ser humano em sua liberdade final estará mais próximo de suas verdades derradeiras: a bondade e a misericórdia de Deus presentes.

A capacidade de perdoar se diferencia de pessoa para pessoa. O grau de maturidade da fé e a história singular da pessoa definem esse potencial. Para aqueles a quem foi dada pouca oportunidade, em sua infância, de restaurar os outros, quando diante de sua destrutividade, o perdão é mais difícil. A criança é dotada do desejo de destruir a si e aos outros quando sente falta de cuidados ou excessivas frustrações. Cabe aos pais a tarefa de diminuir essa destrutividade através do amor. Caso este falte, as fantasias destrutivas aumentam e a capacidade de reparação da criança pelos danos feitos em fantasia aos pais, diminui. Quando adultos, terão menos capacidade de reflexão e implicação nos seus atos, menos capacidade de perdoar a si e aos outros.

Perdoar significa avanço psicológico e espiritual. É restaurar o outro e o mundo interno. Ao perdoar o outro, estamos inconscientemente dando uma trégua ao nosso próprio eu. Em termos de psicanálise, nosso superego – nossa parte da mente que observa, julga e pune nossos desejos (Id) e atos – se torna, no ato do perdão, menos exigente, menos carrasco. Nosso eu se torna mais livre e saudável. Tratamos os outros conforme o nosso superego nos trata. Quando perdoamos o outro, automaticamente nos apaziguamos.

Fazer o bem ao próximo deveria ser tão caro a nós, quanto o bem que gostamos e precisamos receber dele. Porém, a psicanálise nos ajuda a penetrar na profundidade das palavras de Jesus na cruz: “Pai, perdoai, eles (TODOS NÓS) não sabem (AO CERTO) o que fazem” (SABEMOS APENAS PARCIALMENTE O QUE FAZEMOS).

José Del-Fraro Filho*

* Psiquiatra, Psicanalista, autor do livro Os obstáculos ao amor e à fé: Amadurecimento Humano e Espiritualidade Cristã, Paulus.
Email: [email protected]