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Publicado em número 222 - (pp. 9-13)

Ousar para crescer

Por Pe. Juvenal Arduini

Ousar é ter iniciativa. É arriscar-se para atingir objetivos de valor. “Tólmena”, no grego, significa ousar, ação valorosa, audácia. Ousar é gesto humano, é fenômeno construtivo. Ousar é o agir resoluto, responsável e solidário. Ousar é soltar-se para buscar o futuro.

Existe o ousar deformado. É o ousar tagarela, arrogante, cínico, violento e, até, criminoso. Mas há também o ousar autêntico, que defende a dignidade pessoal e promove a maturação da humanidade. Ousar é exigência vital numa era de desafios históricos, sociais, científicos e éticos. Vivemos numa época em que ousar é questão de sobrevivência humana. Permanecer de braços cruzados é perecer silenciosamente, pois o processo de extermínio humano já está em andamento. Há “holocaustos” disfarçados.

Para ousar não é preciso ter poder. É preciso ter razão e ter coragem. Também os empobrecidos e excluídos são chamados a ousar com bravura. Ousar é a força dos que não têm poder. Há os que têm poder, mas não têm a verdade. Perante o poder globalizado, é necessário suscitar a audácia das pessoas e nações e ousar propor a globalização alternativa, alicerçada na insurreição, na justiça e na solidariedade. Ousar é comprometer-se com as grandes causas da humanidade. Quando a sociedade cultiva a audácia, é difícil calá-la e dominá-la. O ousar dinamiza as energias pessoais e sociais. O povo brasileiro deveria ousar muito mais para edificar a história de sua autonomia e não a história de sua dependência. Sem ousar, a apatia frustra o potencial inventivo da sociedade. Para emancipar-se e crescer, a humanidade terá de ousar.


I. OUSAR RESISTIR

 

1. Império

Através da história houve diversos imperialismos. Atualmente, o imperialismo é diferente porque domina sozinho o mundo. O filósofo norte-americano Michael Hardt, professor de literatura e filosofia na Universidade Duke (EUA), e o cientista social e filósofo italiano Antonio Negri escreveram o livro intitulado Império. Hardt explica que “Império” é forma da globalização capitalista, “uma forma verdadeiramente ilimitada do poder”. Antonio Negri diz: “O Império é a constituição do mercado global”.

O Império é o “novo poder soberano e supranacional”[1]. É sustentado pelo poder econômico, pela força bélica, pela tecnologia sofisticada e pelos meios de comunicação. Segundo Paul Virílio, a comunicação moderna é “Bomba informática”. Perante esse poderio, a humanidade transforma-se em colônia mundial. O Império age com disfarce. Invoca ética e paz. Apesar de “banhar-se continuamente em sangue, o Império é poder unitário que mantém a paz e produz valores éticos”[2]. Mas, se isso não bastasse, o Império aciona armas arrasadoras que reduzem cidades e populações a cinzas. O Império tem “capacidade absoluta de destruição”[3]. E quem acompanha a história recente, já percebeu que o Império não hesita em provocar genocídio para expandir suas ambições dominadoras.

Os autores de Império estimulam o Contra-Império. “O ‘ser contra’ da multidão precisa reconhecer a soberania imperial como inimigo, e descobrir os meios adequados para subverter o seu poder”[4]. Há que enfrentar as ameaças imperiais. O Império avança quando a humanidade se amedronta, mas assusta-se quando a humanidade se rebela. É preciso ousar para resistir ao Império, antes que seja tarde.

 

2. Alca

34 chefes de Estado do continente americano compareceram à “Cúpula das Américas”, realizada de 20 a 22 de abril de 2001, em Quebec, Canadá. A Cúpula das Américas insistiu na criação da Alca (Área do Livre Comércio da Américas), projeto liderado pelos Estados Unidos que abrangeria 800 milhões de consumidores.

A Alca ilustra o procedimento do Império. Os Estados Unidos pressionam os países da América Latina para que se integrem, quanto antes, na Alca. O embaixador brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães foi demitido do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais por discordar da Alca. É necessário clarear bem a natureza dos critérios e compromissos para ingressar na Alca. Publicou-se que, na Alca, o Brasil aumentaria as exportações em 10%, mas as importações aumentariam em 30%. O Império poderia engolir gordos lucros, e nosso país poderia recolher apenas migalhas.

Referindo-se à Alca, o sociólogo Alain Touraine, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na França, registra: “O silêncio latino-americano indicou claramente que quase todos os países estavam dispostos a seguir o caminho indicado pelos EUA, seja por convicção, seja por dependência da América do Norte”[5].

O Conselho Permanente dos Bispos do Canadá manifestou-se sobre a Cúpula das Américas, mostrando-se preocupado com os países e populações que estão se tornando mais pobres. A voz profética do episcopado canadense repercutiu no mundo. “Como pensar que o mercado supostamente livre entre os países da América possa existir quando numerosas nações pobres estão permanentemente esmagadas pelo peso de sua dívida externa?”[6]. Até sindicalistas norte-americanos rejeitam a Alca, segundo o Financial Times, em julho de 2001.

A Alca seria extensão do Império? É hora de ousar para evitar que o Brasil se converta em vasto império da Alca — ainda que essa perspectiva passe por reavaliações, após os ataques terroristas praticados nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001.

 

 

 

II. OUSAR TRANSGREDIR

 

1. Transgressão

Ousar é também transgredir. E transgredir é ultrapassar barreiras, é ir além. O teólogo Yves Congar já escrevia: “Hoje, já não podemos saber que existe uma barreira sem que nos sintamos obrigados a transpô-la, para descobrir o que está além dela”[7].

Para alguns, transgredir tem sentido negativo. Indicaria atitudes indevidas, ações que violam o direito, procedimentos que desrespeitam normas de vida social. Em geral, “transgressor” é visto como culpado. Certamente, há limites que devem ser respeitados. Há limites necessários para que a liberdade não se transforme em tirania, para que valores fundamentais não sejam pisados.

Mas aqui, transgredir tem sentido positivo e ousado. Há limites injustos e arbitrários que devem ser transgredidos. Há muros que devem ser derrubados. Há vetos que devem ser descumpridos. Há leis injustas que não podem ser acatadas. Há fronteiras que precisam ser atravessadas. Sistemas econômicos que privilegiam os poderosos e desatendem as necessidades dos fracos devem ser transgredidos. Há que ousar para transgredir barreiras impostas pela exclusão política, pela desigualdade social, pelo moralismo farisaico, pelo fundamentalismo religioso.

Transgressão tem também sentido de passagem de uma fase histórica para outra, passagem do egocentrismo para a solidariedade. É legítimo transgredir fronteiras levantadas por países ricos que encurralam populações na miséria. “A realidade é maior que os limites e esquemas em que foi colocada, e compele a cruzar fronteiras e romper esquemas”, diz Felix Wilfred. E acrescenta: “A teologia precisa cultivar a arte de transgredir as fronteiras”. Arte de transgredir a inércia, o “pensamento único”, o adesismo. Yves Cattin acena para a utopia que ultrapassa fronteiras: “Há sempre um ‘mais-além’ com que posso sonhar”[8].

Fronteira tem cara de medo. Tranca as portas. “O medo é demais de grande”[9]. Transgredir não é apenas abater fronteiras, é transcender, é abrir estradas fechadas, é alargar horizontes estreitos, é descativar aspirações algemadas. Transgredir é inventar alternativas. E ousar é transgredir em favor da humanidade.

2. Transgressão evangélica

Jesus ousou transgredir. E transgrediu fronteiras que pareciam intocáveis. Transgrediu o sábado e considerou a vida como prioridade. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Transgrediu a lei de Moisés e não permitiu que a “mulher adúltera” fosse apedrejada (Jo 8,3-11). Transgrediu a prioridade do “sacrifício”. “Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt 9,13). Jesus transgrediu fronteiras judaicas e mostrou que o projeto de Deus ultrapassa limites etnocêntricos. Elias não foi enviado às viúvas de Israel, mas “a uma viúva”, em Sarepta, na região de Sidônia. Houve muitos leprosos em Israel no tempo de Eliseu, mas nenhum deles foi curado “a não ser o sírio Naamã” (Lc 4,25-27). E a transgressão foi tão contundente que provocou cólera, e os ouvintes expulsaram o “transgressor”. Jesus transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e compradores” instalados no Templo (Mc 11,15). E transgrediu frontalmente a desigualdade injusta: “Felizes os pobres” e “Ai de vocês, os ricos” (Lc 6,20.24). Clamor evangélico ousado que não tem recebido a merecida resposta pastoral e social.

Jesus ensinou a transgredir fronteiras que limitam o autêntico sentido do evangelho. Por isso, a Igreja ousou transgredir barreiras desde o início do cristianismo. O Espírito soprou e os Apóstolos decidiram libertar os cristãos de heranças estéreis. A comunidade eclesial cruzou fronteiras e passou a evangelizar os “gentios”, sem onerá-los com “jugo” insuportável (At 15). Essa memorável transgressão de limites universalizou a Igreja. O Vaticano II transgrediu limitações seculares para intensificar a inculturação do evangelho. E apontou a germinação de sementes do Reino, também em terrenos além da instituição eclesiástica. A transgressão através da “opção pelos pobres”, de Medellín, da Teologia da Libertação, dos mártires solidários com os excluídos, é audácia profética.

O perigo não é ousar transgredir. O perigo é fincar fronteira intransponível. Às vezes, em nome de duvidosa ortodoxia, impõem-se limitações repressivas e regressivas. Não se pode confundir veto arbitrário com fidelidade evangélica. Transgressão evangélica não violenta o evangelho, mas expurga posições que lhe adulteram o sentido legítimo. Ousar é atravessar fronteiras com responsabilidade. Ousar para assumir e viver autêntica transgressão evangélica.

III. OUSAR DESCONSTRUIR

Jacques Derrida analisa a “desconstrução” como processo filosófico. Desconstrução não é destruição, nem demolição da realidade. É forma de decompor criticamente a realidade e, se necessário, de reaprofundá-la ou de “recontextualizá-la”. O filósofo interpreta heranças culturais e procura ir além delas. Busca significado mais sólido e mais amplo. Inquieto e insatisfeito, Derrida pergunta se determinado fenômeno não poderia revelar-se mais profundo e dizer mais do que está dizendo no momento histórico. Há conceituações culturais sobre o homem, o direito, a vida e a ética que não respondem adequadamente às interrogações atuais. Importa ousar. Ir mais longe para radicalizar a compreensão da realidade. Há formulações filosóficas, científicas e éticas, tidas como definitivas e acabadas, que não respondem a indagações mais exigentes. E o filósofo questiona temas e propostas que pareciam inquestionáveis. Para ele, não há assuntos encerrados.

Derrida considera que é fundamental manter distinção entre conceitos e realidade. Há conceitos herdados da cultura que nem sempre traduzem fielmente o conteúdo da realidade. Há conceitos que, através do tempo, se mostram incapazes de revelar o significado medular do homem, da cultura e da ética. Derrida nega certos conceitos sobre o homem e a ética, mas não nega o homem nem a ética. A desconstrução trabalha para “construir outra lógica”[10].

É necessário refugar conceituações que se transformam em fetiches, em crenças intocáveis, em ídolos sagrados. Alguns cultuam múmias pensando que estão preservando valores vitais. Há que gerar conceitos antropológicos e éticos que contenham linguagem substancial. Ousar é transgredir concepções inexatas para alcançar valores mais densos. Ousar é reinventar soluções fecundas que respondam a novos desafios. Ousar é arriscar salto utópico — “O futuro, isto é, a vida”[11].

 

IV. OUSAR ANTROPOLOGICAMENTE

Perante o ser humano, pode haver três posturas. A postura do sistema neoliberal que deprecia o ser humano. “Homem” é apenas um nome. É ser vazio. A prioridade é a economia capitalista, é a especulação financeira, é a concentração de riqueza. Por outro lado o trabalho esteve frequentemente ligado à escravidão, ao esforço desvalorizado. Daí por que o capital tem tantos direitos, e o trabalho tão poucos direitos. Na lógica dessa postura, o valor é dado ao capital, e não ao ser humano.

A segunda postura enxerga o ser humano como feixe de problemas. O ser humano é inteligente e criador, mas está mordido por inúmeras dificuldades. A maioria sabe que o ser humano tem grande valor, mas não contribui para desatar os problemas que o martirizam. Percebe que o ser humano é vítima de muitas servidões, mas não faz passos para mudar o sistema social injusto. É a postura da expectativa. Espera-se que um dia surja solução mágica para socorrer o homem asfixiado.

A terceira postura compromete-se com o ser humano. Enfrenta os problemas e decide mudar a realidade desumana. Pois não basta ver, é preciso agir e transformar a sociedade injusta. Essa postura tem a coragem de ousar. Felizmente, está crescendo a consciência do valor humano. “De que se trata? Do próprio homem”, diz Yves Charles Zarka. E acrescenta: “Nunca o ser humano foi tão discutido como hoje”[12]. Chegamos ao tempo em que se pesquisa o significado radical do ser humano.

Habermas propõe o “paradigma da intercompreensão”, para intensificar o sentido e a ação do ser humano. “No paradigma da intercompreensão, o que é fundamental é a atitude adotada por aqueles que participam de uma interação, que coordenam seus projetos, entendendo-se uns aos outros sobre qualquer coisa que existe no mundo”[13]. Ativa-se a ação comunicacional para obter a intercompreensão que suscita reciprocidade, coparticipação e encontro interpessoal.

Hoje, exige-se nova solidariedade, fundada também na intercompreensão. O atual individualismo darwinista ensina a vencer, anulando os outros. Mas é necessário ousar antropologicamente e assumir a solidariedade com todo ser humano, seja quem for, esteja onde estiver. “Não há direitos e liberdades sem o bem do próximo”[14]. A nova solidariedade efetiva, e não apenas afetiva, supera o isolacionismo e elimina o medo, a inércia, o fatalismo e a subordinação. Ousar antropologicamente é manter-se de pé, na linha de frente.

 

V. OUSAR ETICAMENTE

 

1. “Ética dilacerada”

A ética carrega tensão dialética. Experimenta conflitos. Mas não pode ser discriminatória nem excludente. “As normas morais não podem proteger um, sem proteger o outro”[15]. A ética precisa avançar e não estacionar. Normas éticas ralas não têm fôlego para discutir problemas complexos. Falta-lhes lastro cultural para orientar saltos inovadores da humanidade atual. Ofertar soluções decrépitas a novos desafios não é responder à realidade exigente. É contorná-la. Perante avanços científicos, a ética não pode apenas repetir o passado. Cabe-lhe propor novos parâmetros que apontem rumos a situações inéditas.

Jacques Derrida preocupa-se com a “responsabilidade ética”. Não lhe basta receitar normas éticas estocadas. E diz: “O paradoxo é que, para haver decisão ética, é preciso que não haja regras nem normas prévias”. O filósofo quer sentir-se responsável pelas decisões éticas. Sem dúvida, há necessidade de elaborar, com responsabilidade, ética robusta que abra caminhos sadios ao crescimento da humanidade de hoje.

Grande desafio à ética é o avanço da engenharia genética, que pode melhorar a vida da humanidade, mas também pode desestabilizar o equilíbrio da espécie humana. Cientificamente, é possível aperfeiçoar a personalidade humana. Mas importa preservar a dignidade e autodeterminação das pessoas. É indispensável repensar a ética que se defronta com situações inesperadas. Zarca diz que atualmente “a ética está dilacerada”. A ética é chamada a estimular a ciência que favorece a saúde genética, mas, ao mesmo tempo, deve prevenir intervenções científicas que venham tumultuar o patrimônio genético humano. De qualquer forma, o futuro da ética é ousar responsavelmente, e não fugir medrosamente.

 

2. Ética e poder

Mais do que no passado, hoje a ética terá de ousar perante o poder. Compete-lhe questionar o poder corrupto, denunciar o poder autoritário e interpelar o poder injusto. A ética terá de ousar e contestar o poder imperial da globalização neoliberal. Ética subserviente tolera o poder abusivo e tenta legitimá-lo. Ética servil mantém “respeito a autoridades” que prejudica a sociedade. Porém, a ética audaciosa rebela-se perante o poder perverso e nega-lhe apoio. Ética não é diplomacia ornamental, mas exigência radical. O poder comprometido com a sociedade, sobretudo com a população pobre, revela traço ético. A ética da dignidade e da justiça deve exigir que o poder seja decente. Poder injusto que privilegia os poderosos e nega direitos aos fracos é poder eticamente espúrio. É preciso ousar para testemunhar que poder nocivo à sociedade é imoral. E deve ser deslegitimado pela ética.

 

3. Ética e miséria

O moralismo elástico amacia a miséria, aquieta aspirações, anestesia o sofrimento e induz o pobre ao conformismo. É a ética da “resignação”, tão detestada por Nietzsche. O moralismo frouxo sacraliza a esmola e descarta a justiça. É ética que sanciona a desigualdade social. O moralismo ensina o pobre a agradecer aos poderosos que lhe gotejam favores. Mas, se o pobre reclama seus direitos, é tido como ingrato ou subversivo. A moral alienada silencia o direito e consolida a pobreza.

A ética ousada assume a dignidade humana e acorda a consciência dos pobres. Ética profética mostra que, em grande parte, os pobres são vítimas das injustiças praticadas, direta ou indiretamente, pelos poderosos. A verdadeira ética é aliada da vida e não suporta a miséria. Ética coerente e vitalizante rechaça frontalmente a pobreza que agride a vida e violenta as pessoas. A miséria afronta os valores éticos.

Agostino Marchetto, observador permanente da Santa Sé junto às instituições das Nações Unidas, em conferência sobre biotecnologia na subnutrição do mundo, declara: “Estima-se que há 826 milhões de pessoas que vivem em condições de subnutrição crônica, e que a maioria delas morrerá de fome”[16]. É situação trágica porque se trata de fome que extermina vidas humanas. Para a ética responsável, a miséria é crime hediondo. Miséria não é só patologia social. É também aberração ética. É necessário ousar eticamente para extirpar a miséria que destrói o ser humano.

 

4. Ética sexual

A ética tem tido dificuldades para lidar com a sexualidade. Durante séculos, vigorou o moralismo “sexófobo”, o moralismo apavorado com o sexo. E, por isso, adotou procedimentos repressivos e punitivos em relação à sexualidade. Ainda perdura mentalidade pessimista sobre a sexualidade. O moralismo continua engasgado com o pecado sexual.

A reação ao moralismo sexual gerou o amoralismo. Alguns consideram que a ética não deve interferir na vida sexual. “Sexo é livre” é sentença mágica. Em nome da liberdade, dispensa-se a ética. Sexo não estaria sujeito a normas éticas. Porém, ser livre não significa ausência de referências éticas. Liberdade não é função solitária. Está integrada na personalidade que implica dimensão ética. De uma forma ou de outra, o ser humano norteia-se, por parâmetros éticos.

Sem balizas éticas, a liberdade pode praticar atos nocivos à sociedade. Muitas ações perversas são realizadas com liberdade. Há tiranos que, com liberdade, maltratam o povo; há corruptos que, com liberdade, roubam a sociedade; há criminosos que assassinam com liberdade; há pessoas que estupram com liberdade. Assim, em nome da liberdade, seriam legitimados crimes, roubos e assassinatos. A pessoa pode ser livre e cometer abusos sexuais. A sexualidade precisa de liberdade, mas precisa também de ética.

Atualmente cresce o mercantilismo sexual. Vende-se e compra-se o prazer sexual. Comercializa-se sexo como mercadoria. Além de “jovens de programa”, usam-se “garotas selecionadas” que vendem o corpo a clientes endinheirados. A ONU e outras instituições internacionais divulgaram, em maio de 2001, o tráfico de 75 mil brasileiras para a Europa como mercadoria sexual. Pensando bem, não é a sexualidade que degrada a pessoa. É a pessoa que degrada a sexualidade.

A sexualidade é dimensão constitutiva da natureza humana. Negá-la é mutilar o ser humano. A sexualidade deve ser cultivada e amadurecida como as demais dimensões do ser humano. O corpo humano tem valor antropológico. O teólogo francês Xavier Thévenot lembra que “o corpo não é apenas fenômeno bioquímico, mas é sobretudo realidade significante, isto é, ‘trabalhada’ pela palavra”[17]. Sexualidade está intensamente ligada à alteridade. O “Outro” é presença constante. Com sabedoria, Umberto Eco escreve: “A dimensão ética começa quando entra em cena o outro”[18]. E na vida sexual predomina o encontro interpessoal. Ao entrar em cena o outro, chegamos à ética.

A sexualidade deveria ser compreendida com grandeza ética. Mas tem sido amesquinhada pela mediocridade. A questão sexual é questão antropológica. E quem tem consciência antropológica resgata e preserva a dignidade da sexualidade. Há que ousar para repensar a ética sexual. Cabe à ética lúcida repersonalizar a sexualidade. Sexualidade não se trata com medo nem com malícia. Trata-se com amor e responsabilidade. A sexualidade também é estética, pois reflete a beleza de Deus.



[1] Hardt, M. & Negri, A., Império, Ed. Record, Rio, 2001, p. 27.

[2] Ibidem, pp. 15, 28.

[3] Ibidem, p. 367.

[4] Ibidem, p. 232.

[5] Touraine, A., “Mais”, em Folha de S. Paulo, 3/6/2001.

[6] Documentation Catholique, nº 2.249, 3/6/2001, Paris, p. 541.

[7] Congar, Y., Vasto Mundo, trad. Morais Editora, p. 16.

[8] Concilium, 1999/2, p. 8, 11, 17.

[9] Guimarães, R., Grande Sertão – Veredas, p. 427.

[10] Ferrié & Christian, Pourquoi Lire Derrida?, Ed. Kimé, Paris, p. 149.

[11] Ibidem, p. 25.

[12] Cites, 2000, France, p. 3.

[13] Habermas, J., Le discours philosophique de la modernité, Gallimard, 1988, p. 351.

[14] Habermas, J., De L’Éthique de la Discussion, Cerf, 1992, p. 68.

[15] Ibidem, p. 68.

[16] Documentation Catholique, nº 2.249, 3/6/2001, Paris, p. 514.

[17] Thévenot & Xavier, Lês Ailes et le Souffle, Cerf. Paris, 2000, p. 132.

[18] Eco, U., Em que creem os que não creem, Ed. Record, Rio, 2000, p. 83.

Pe. Juvenal Arduini