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Publicado em número 251 - (pp. 5-11)

Religião verdadeira ou boa?

Por Pe. Luiz Roberto Benedetti

As instituições religiosas detêm cada vez menos o controle sobre seus símbolos. Semelhante processo — chamado por Michel de Certau de disponibilização de símbolos — faz que estes sirvam a todo tipo de experiências e circulem livremente não apenas entre os vários grupos religiosos, sendo frequentemente fonte de problemas. Já se tornou emblemático, no Brasil, o caso do carnaval. As escolas de samba querem utilizar imagens religiosas nos carros alegóricos e enfrentam a oposição da Igreja. Não raro o caso acaba parando nos tribunais.

Esta constitui talvez a maior dificuldade para os católicos, sobretudo para os seus quadros dirigentes: enxergar a mudança radical em curso, de acordo com a qual um fato tem dimensões que só podem ser vistas fora de um universo estritamente cristão de referência. Em um encontro de pastoral urbana, realizado há três anos em Belo Horizonte, o mais difícil para os participantes era despir-se de seu olhar estreitamente católico para entender as mudanças religiosas em andamento. Até o documentário , quando exibido em reunião do episcopado brasileiro em Itaici, suscitou uma espécie de desaprovação por sua “dispersão”. As manifestações religiosas do povo brasileiro apareciam na tela tal como se apresentam na realidade, sem uma hierarquização, sem que fosse constituída uma escala do “mais verdadeiro” ao “menos verdadeiro”. Eram o painel de uma realidade sem nenhum retoque ou juízo de valor acerca do “legítimo” e do “ilegítimo”. Bispos se perguntavam o que o diretor do documentário queria “dizer” com aquelas imagens, expressivas por si mesmas da diversidade e da multiplicidade de formas religiosas na sociedade brasileira. Seu mal-estar expressava a incapacidade de compreender a mudança cultural profunda que o processo de urbanização carrega como uma de suas marcas: todas as manifestações religiosas postas em pé de igualdade. Essa mudança ressalta uma característica a que os eclesiásticos costumam se referir para justificar o “fracasso” da evangelização: a mentalidade do brasileiro de que todas as religiões são boas; todas falam de Deus e ele é de todos.

O processo de urbanização — na falta de melhor expressão — vem aguçar esse fato. Cria uma cultura do aparente, do momentâneo, do efêmero, da busca da satisfação imediata, que reduz o campo da verdade ao da eficácia — entendida em termos os mais amplos possíveis, incluindo aí a satisfação pessoal. Eficaz porque agrada. Eficaz porque traz resultados palpáveis e imediatos.

Numa cultura urbana, livre do controle social rígido — feito em nome de escolhas pessoais, subjetivas —, os indivíduos sentem-se livres para buscar o que é bom para si. E, no campo religioso, isso não é diferente.

No universo da tradição e da comunidade, a religião fornecia um quadro de referência, um universo de sentido que tornava o viver previsível. A vida se desenvolvia num “lugar”, isto é, lá onde espaço e tempo se encontravam. A festa do padroeiro era um lugar. Lá se afirmava a identidade do grupo que habitava determinado espaço geográfico. Em torno de um rito religioso, tempo e espaço adquiriam sua significação, configurando o conjunto das relações sociais ali vividas. As fases da vida — tempo e idade — reservavam poucas surpresas. Costumes relativos à vida pessoal e social, tais como vivência da sexualidade, respeito à propriedade e à hierarquia, eram rigidamente controlados pela religião — basta pensar no papel dos pecados na configuração do universo de significação. Sexo, respeito e obediência aos pais, pequenas travessuras (como furtos insignificantes) constituíam o núcleo das perguntas que eram feitas pelo padre nas confissões e aterrorizavam os penitentes. Como figura que encarnava a presença de Deus na terra, o padre era, por excelência, o guardião da ordem e da permanência desse mundo, feito de verdades prontas e de normas inflexíveis. Não crer e não observar as normas religiosas punha em risco esse mundo onde, como diz Baumann, o único imprevisto era a morte, que, por isso mesmo, era solenemente reafirmada e ritualizada. Céu e inferno descreviam sem nenhuma sutileza os gozos e os tormentos físicos que o imprevisto da morte punha à nossa frente.

As imagens, representações e ritos mudaram. Mas terá se alterado o quadro de referência — constituído de verdades objetivas, prontas, estabelecidas — sobre o homem e seu destino? A mesma objetividade das ciências estava presente na religião. As duas — religião e ciência — atribuíam-se a capacidade de conferir certezas objetivas. E, talvez por isso, vivessem em confronto permanente. Ambas diziam a verdade do mundo, o certo e o errado. A opinião só cabia para o que era irrelevante. Mais: a verdade era algo objetivo, dado e pronto. Na vida das Igrejas, os dogmas e normas de moral ocupavam lugar de destaque. No mundo da ciência, as leis imutáveis.

Este novo contexto explica a passagem da religião-verdade para a religião de respostas a problemas e mesmo da religião com o sentido da vida pessoal e social para a religião show — aquilo que Carranza[1] denomina, num caso específico, catolicismo midiático. Alteram-se as formas institucionais e as técnicas de proselitismo. Como reação, emerge o fundamentalismo e seus derivados. Recentemente, num encontro da AEC (Associação de Educação Católica), um professor perguntava sobre a idolatria do relativismo, apontada pelo papa Bento XVI como um dos grandes males, senão o grande mal do mundo contemporâneo. Na realidade, o diagnóstico é correto. Só que ainda não sabemos lidar com esse problema. O espírito de cristandade, somado ao etnocentrismo, faz parte do modo católico de ser. E quase sempre nos impede de enxergar as mudanças ocorridas no mundo da religião.

 

1. Lidar com o diferente

O universo multifacetado das religiões, quase impossibilitando uma classificação, como demonstrou o último censo realizado pelo IBGE — foram encontradas as mais diversas respostas à pergunta sobre o grupo religioso a que se filiava o entrevistado —, põe cada vez mais em xeque a ideia de conversão como ressignificação da vida. O universo religioso se desloca: de um campo objetivamente constituído passa ao de uma subjetividade pela qual transitam as várias religiões — ou melhor, elementos, fragmentos de religiões quase sempre sem ligação estruturada entre si. Mais: esse quadro variegado, múltiplo, apresenta- se em movimentação permanente. A fragmentação e a precariedade da filiação têm sua contrapartida nas instituições que se esforçam por responder às demandas, diversificando sua oferta de “produtos” religiosos.

Há os grupos religiosos que mantêm fidelidade estrita à sua tradição — caso dos Mórmons, das Testemunhas de Jeová e dos Adventistas do Sétimo Dia. Uma socióloga francesa fala de religiões com espírito de linhagem. Para ela, todos os grupos religiosos que se adaptam ao novo alimentam-se de uma tradição continuamente reinventada — uma forma de estar presente numa realidade social movente. A necessidade de pôr-se em dia com as mudanças faz que a criação e a recriação contínuas da tradição predominem sobre o processo de sedimentação e cristalização do passado. A criação de comunidades emocionais substitui a memória coletiva que une o grupo. Esse fenômeno, ausente nos grupos religiosos citados, faz-se presente até mesmo nas Igrejas cristãs com tradição e história assentadas. O exemplo mais flagrante é o chamado movimento carismático, cuja presença notória na Igreja Católica suscita debates apaixonados. As sutilezas da teologia ficam em segundo plano em face do espírito do tempo, alimentador dessas comunidades emocionais.

É engano pensar que as classes médias sejam imunes à atração desse tipo de agrupamento religioso. O grande temor da classe média é a sua proletarização, um processo que, no mundo globalizado, constitui quase a regra. Os membros dessa classe, ou progridem, ou a proletarização os ameaça. Basta ver o caso dos professores universitários, agora sujeitos ao mesmo processo que atingiu os que trabalhavam no ensino médio e fundamental. Weber já detectara a busca de uma religião emocional por parte desses grupos. Às vezes espanta ver a classe média à procura de bênçãos, como solução para seus males, e sua dificuldade em aderir a uma perspectiva mais ética de mundo. É notória sua recusa em engajar-se em religiões éticas e sua facilidade em aderir ao movimento carismático. Sua ética tem como limite as relações interpessoais: “Sem dúvida, em semelhante terreno, os elementos emocionais de uma ética religiosa se desenvolvem mais facilmente do que os elementos racionais. Em todo caso, nunca é nesses grupos sociais que uma religiosidade ética encontra sua base de alimentação”[2].

É necessário considerar que foi no trato com esses grupos que a Igreja Católica apoiou sua pastoral nas três últimas décadas, mantendo a ilusão de forte presença na sociedade. A confiança das Igrejas nos grupos de classe média (em movimentos organizados ou não, de caráter fundamentalista-carismático) talvez agora revele o equívoco pastoral em crer que eles poderiam indicar uma presença cristã significativa no mundo. São grupos que giram em torno de si mesmos. Seu elo de “comunhão” tem quase sempre caráter meramente subjetivo-emocional. A própria crença de aferrar-se à literalidade do que a Igreja diz — é verdade o que ela diz e porque é ela que diz — comporta certo elemento de irracionalidade que não contrasta, antes reforça, esses laços emocionais. São grupos incapazes de dar as razões de sua esperança, como pede a carta de Pedro.

Olhando o lado oposto, crescem os grupos religiosos que não mantêm fidelidade à tradição, mesmo porque não a têm. A Igreja Universal do Reino de Deus e a Internacional da Graça, por exemplo, são grupos religiosos recentes, com fundadores ainda vivos. Alimentam-se menos da recorrência a uma história passada — não a têm — do que da premência do presente. Sem a continuidade com um passado inexistente, também não há futuro, não há promessa messiânica, não há apocalipse. Suas promessas resumem-se ao aqui e agora: saúde, riqueza, vida feliz, amor e beleza. Essa salvação, de caráter “presentista”, tem um inimigo: o demônio, causa de toda a infelicidade pessoal. O horizonte social não cabe nesse mundo sem sentido de história e de tradição.

Não basta uma crítica de caráter moralista a esse tipo de agrupamento. Ele expressa, no interior do campo religioso, mudanças sociais profundas, não compreendidas com cânones (religiosos ou não) prontos. Tal situação não é exatamente definida pela ideia de globalização, por ser um conceito complexo, que designa mudanças tanto econômicas (a desregulamentação do mercado financeiro, a “precarização” da força de trabalho, a instabilidade das economias locais — basta um boato para pô-las em risco —, a produção e o consumo “transnacionalizados”) quanto políticas (crise do Estado nacional e dos canais tradicionais de participação e de defesa de interesses, como partidos e sindicatos) e culturais (subjetivismo e individualismo exacerbados, afirmação da identidade pessoal e social fundada no consumo, “presentismo” quase absoluto — estar em todos os lugares ao mesmo tempo). No entanto, é só nesse quadro que se entende a proliferação das multinacionais da fé e das chamadas Igrejas de fundo de garagem — termo que não deixa de ser preconceituoso.

Se as Igrejas históricas mantêm a tradição, esta, contudo, nunca é uma volta pura e simples ao passado como forma de refúgio contra os desafios de uma realidade em constante mudança. Há uma oscilação contínua entre a manutenção da tradição sagrada e sua reinterpretação. Por isso mesmo, é ilusório pensar que as Igrejas se alimentam de sua fidelidade. Na realidade, a ação delas é sempre pendular. No caso da Igreja Católica, sua adaptação aos tempos nunca altera um ponto de fixação: o caráter divino da autoridade. Mas aqui talvez resida uma questão mais fundamental: a nova situação religiosa não põe em xeque formas institucionais consagradas? Se, numa visão bastante redutiva, a Igreja se define pela manutenção de uma tradição sagrada e as “seitas”, pela separação reivindicadora da pureza dessa mesma tradição, o que dizer dos grupos que se definem exatamente pela oferta de bens religiosos? As curas, bênçãos e unções são para todos. Recentemente, a Igreja Internacional da Graça, em suas concentrações públicas, recusava a sua identidade, apresentando-se como portadora de uma unção para todos. O apresentador da manifestação religiosa dizia literalmente que não estava lá para “falar de religião, mas para apresentar uma bênção de Deus para todos os que passavam”.

Verifica-se, na realidade, a convergência de dois fatos. De um lado, o seguimento de nova forma de religiosidade, marcada muito mais pela sua aproximação com o mundo mágico (e, em sentido amplo, místico-esotérico) e, paradoxalmente, com o mundo da mercadoria. De outro, a formação de nova forma institucional, a agência de bens religiosos, termo cunhado por Monteiro[3].

Em 1983, Prandi constatava a crise da religião ética, exemplificada pelas comunidades de base e pela teologia da libertação, e o “renascimento” da magia. A sociedade pós-ética, representada pelos privilegiados, agia “de acordo com interesses individualizados, próprios, específicos e privatizados de cada um, guiados por valores meramente pragmáticos, justificadores mais da diferença que da igualdade. (…) Uma sociedade do vale-tudo”[4]. No polo oposto, uma sociedade pré-ética, tendente para o pentecostalismo e para as religiões afro-brasileiras, os quais, embora consolidados desde os anos 60, passavam por modificações acentuadas. “Se as alternativas sacrais desses grupos religiosos são diferentes, têm, entretanto, algo em comum: a valorização da magia, apelo direto e constante a forças sagradas que são entendidas como capazes de interferir no mundo da natureza e da cultura”[5].

Mas não se pode ignorar que a situação produziu seu oposto, a reação de caráter fundamentalista, tomando o termo em sua acepção bem ampla de objetivação do mundo e da história, que são o que são porque assim foram feitos por Deus e cuja verdade só pode ser expressa pela literalidade de um GRANDE TEXTO. Ao se analisar os folhetos de proselitismo religioso distribuídos nas ruas, constata-se sua insistência na interpretação literal dos textos sagrados e a elaboração de uma “teia de leitura” seletiva, graças à qual a verdade de um texto é provada pela recorrência a outros de conteúdo igual ou semelhante. Descontextualizado, um texto prova a verdade de outro e vice-versa. O sentido de mundo fica fechado numa teia de leitura.

Na realidade, o que se observa é uma grande polarização: por um lado, a interpretação literal de um grande texto a funcionar como norma num mundo que erige a escolha pessoal como critério decisivo do agir; e isso não só pela fragmentação das estruturas que garantiam o controle social, como também, e, sobretudo, pela busca de uma satisfação imediata, sempre adiada, mas experimentada na provisoriedade efêmera do consumo. O refúgio numa verdade total livra os indivíduos dessa peregrinação. Por outro lado, nota-se nos encontros religiosos — realizados em grupos de oração e mesmo na mídia televisiva — um integrismo, uma verdade pronta de fundo, subjacente a uma série de pequenos relatos, quase sempre testemunhos que provam a verdade do que se crê. O que Deus fez lá no grande texto é o mesmo que está acontecendo aqui, no microrrelato. O mundo religioso reduz-se, nos dois casos, a uma realidade que ocorre na subjetividade, sem nenhum componente histórico-social que sirva de mediação. O pequeno milagre — testemunhado — prova a verdade professada literalmente.

A essa primeira polarização, entre o macro (texto objetivado) e o micro (experiência imediata de sua verdade), soma-se uma segunda, verificada entre instituições religiosas. As que estão mais em evidência são aquelas que se especializam em responder a problemas. Adere-se menos a uma verdade sobre o mundo e sobre Deus e a um sentido de história ligados a determinada instituição que à eficácia na solução de problemas. Sob esse aspecto, aparecem como opostas a Congregação Cristã do Brasil e a Igreja Internacional da Graça de Deus. Nem sempre se trata, propriamente falando, da solução de um problema, mas da busca de um bem desejado, da prosperidade econômica, da beleza e da felicidade no amor. Na Igreja Universal do Reino de Deus há a “terapia do amor”, exemplar dessa instauração da eficácia como valor decisivo da verdade religiosa.

Mas pode-se ir além. O milagre tem direção “mundana” nesse caso. Ele não se orienta para provar a verdade, mas para angariar consumidores que, por sua vez, garantam o crescimento da instituição do ponto de vista econômico. A questão da verdade, que, no caso da Igreja Católica, pode ser atestada por milagres, desaparece do horizonte de ação dessas grandes multinacionais da fé. A religião é boa, não verdadeira, ou é verdadeira porque se mostra boa para garantir a satisfação de necessidades. É eficaz.

Da mesma forma que se pode falar em polarização, pode-se abordar o assunto sob o prisma da aproximação, da quase identificação entre opostos: assim a Igreja Católica tem suas agências devocionais, seu marketing católico — aspecto que a aproxima, por exemplo, da Igreja Universal do Reino de Deus. Mas o que as aproxima?

Aqui é preciso fugir de uma visão apologética e moralista. Há um fundo antropológico comum, além daquele sócio-histórico já apontado. A Igreja Universal do Reino de Deus se apropriou de toda uma simbologia do catolicismo popular brasileiro de caráter marcadamente mágico e mesmo de símbolos sacramentais — como o fogo, o sal e a água, elementos que seriam configuradores da humanidade do homem. Não são puramente culturais — e, enquanto tais, situados —, mas expressam o próprio caráter sacramental da gestualidade humanamente significativa.

 

2. Em busca de eficácia

Não deixa de ser significativo que os estudiosos das religiões, do ponto de vista das ciências sociais, se debrucem cada vez mais sobre as novas formas de religiosidade, encarando-as menos sob o aspecto das classes sociais e mais da influência das novas formas de organização do trabalho. Há a sensação de que todos os assalariados, em grau maior ou menor, estão sujeitos a formas de exploração cada vez mais sofisticadas e o chamado trabalho precário constitui uma espécie permanente e estrutural de desemprego. Já não há o exército industrial de reserva, que servia para controlar o preço pago à força de trabalho e garantir, mediante mecanismos ideológicos, um controle mínimo, ainda que de maneira mais ou menos temporária, ao emprego formal. Fica cada dia mais claro que todos, de uma maneira ou de outra, estão num processo contínuo de desemprego. A razão disso não é apenas o crescente desaparecimento das garantias legais em favor dos trabalhadores, resultantes de conquistas e lutas seculares. É a própria “natureza” do capitalismo que gera uma sensação de ameaça permanente de que nada há de sólido a garantir a sobrevivência, a não ser uma competição feroz. Já não há inimigo contra quem lutar. O próprio capitalista, visível, parece estar sujeito a uma entidade etérea, invisível, cuja força aumenta à medida de sua invisibilidade. A cadeia produtiva tinha elos fixos, um conjunto preestabelecido de atos, uma verticalização hierárquica que garantia, até certo ponto, um mínimo de estabilidade. Ocorre aquilo que Sennet denomina “casualização” da força de trabalho: não se trata apenas de trabalho terceirizado ou subempreitado, mas, no interior da própria empresa, o trabalhador é submetido a contratos de curta duração, podendo ser transferido de uma tarefa a outra e tendo os contratos adaptados à evolução da empresa. Esta se contrai ou se expande, dispensando ou contratando pessoal. O trabalhador tem cada vez mais tarefas e menos trabalho.

A característica dessa economia é a exacerbação da desigualdade: “Remunerações descomunais para os altos executivos, uma defasagem cada vez maior nas corporações entre os salários mais elevados e os mais baixos, estagnação das camadas médias de renda frente às das elites, a competição ao estilo tudo-ou-nada geram extrema desigualdade material”[6]. Há, além disso, elevado custo emocional, também objeto de análise e de muita preocupação por parte de cientistas sociais comprometidos. Para descrever o estado de espírito dentro das corporações, Sennet destaca ainda a ansiedade — que diz respeito ao que poderia acontecer — e o medo — que diz respeito a tudo o que sabemos que vai acontecer. Centra-se nessas duas emoções para mostrar como a reengenharia das empresas põe os indivíduos em estado permanente de ansiedade, uma vez que a reestruturação é ditada “de fora”, isto é, impulsionada pelo passivo e pelo valor das ações no mercado financeiro. O funcionamento interno da empresa vai ocupando cada vez menos peso. Ou seja, a própria imagem da empresa é a de uma situação que escapa cada vez mais ao controle. Que dizer, então, da vida dos indivíduos?

A tecnologia agrava ainda mais esse estado de precariedade. As tecnologias de computação calculam em velocidades cada vez mais inalcançáveis ao ser humano. As máquinas substituem a mão de obra, sendo cada vez mais capazes de poupar trabalho humano em qualquer setor da produção. A capacitação profissional, mostra Sennet, é um bem cada vez menos durável. Desapareceu do horizonte a ideia de uma carreira definitiva propiciada pela capacitação universitária. No ramo da computação, calcula-se que um técnico terá de refazer seu aprendizado pelo menos três vezes ao longo de sua carreira.

Pode-se objetar que os exemplos apontados estão situados na esfera do trabalho altamente qualificado, no nível da classe dos que, até há pouco, apareciam como privilegiados do ponto de vista profissional. Mas aqui valem duas perguntas: se isso ocorre nesse grupo de assalariados, que dizer dos demais? E como não pensar na desestabilização geral que essa situação provoca, em termos financeiros e mesmo emocionais? A quebra de emprego no setor mais bem remunerado e a instabilidade nesse setor têm efeito cascata.

Nessa situação é que deve ser pensada a religião. Aqui talvez seja necessário reconsiderar o que dizia Reginaldo Prandi. Não se trata de invalidar a sua análise perspicaz, mas perguntar se o patamar já não é outro. Espanta ver a ansiedade de profissionais bem qualificados buscando bênçãos para sair do desemprego. Esses gestos mágicos, sempre associados àquilo que Weber chamava religiões de salvação, próprias às camadas desassistidas, aos pobres, aos destituídos, fazem-se presentes até mesmo entre empresários. Será por acaso que a Igreja Universal do Reino de Deus tem cultos específicos para empresários? Será só para atrair a prosperidade? Não será expressão de um estado generalizado de ansiedade? Não será para “não ficar” ou “sair do vermelho”? A racionalidade empresarial é substituída por uma espécie de fluidez generalizada, um jogo no qual o formal e o informal convivem como duas faces de um mesmo mundo. O mundo informal — do tráfico de drogas, do terrorismo, da lavagem de dinheiro, da violação de sigilo bancário, do comércio de armas, da falsificação e do suborno —, quer queiramos, quer não, faz parte do cotidiano. Há que sobreviver…

As respostas religiosas devem ser vistas no interior dessa situação, que pode gerar descrença generalizada. Em tom informal, muitos analistas do fenômeno religioso mostram que a descrença — não necessariamente o ateísmo militante — já faz parte do horizonte de percepção da realidade. Expressaria o desencanto em face de determinada conjuntura e a espera do milagre ou da euforia provocada pela sua realização. O milagre constitui sua própria verdade, a eficácia. Quando não ocorre, a religião não é boa, por não ser eficaz. No polo oposto estão os fundamentalistas já mencionados.

Mas é importante notar: o próprio fundamentalismo se relaciona menos com o verdadeiro do que com o bom, o funcional. O que não dá resultados é obra do demônio, provém de sua intervenção imediata. Tudo o que é bom vem de Deus. Não há dogmas, verdades de fé, e sim uma reduplicação de realidade, entendida como campo de luta entre o bem e o mal. Bem é tudo o que a vida oferece de bom: curas, milagres, bem-estar. Mal é o desemprego, a doença, os problemas emocionais… No plano simbólico, isso se traduz como luta entre Deus e o demônio. Essa “verdade” é ela mesma um mecanismo a serviço da eficácia. É aqui que se insere a chamada crise de sentido. Não há sistemas de verdade — religiosos ou não — que respondam às questões fundamentais da condição humana.

Surpreende o pesquisador o fato de pessoas ligadas à Renovação Carismática se referirem de modo desabonador à encíclica de Bento XVI sobre a caridade, dizendo que nela não há nenhuma espiritualidade. Chega-se a dizer: agora vou deixar tudo, até a Igreja…

 

3. Abandonar as certezas?

Tem razão Bento XVI nas suas duras críticas ao relativismo, características a todos os seus últimos escritos, mesmo dos anteriores ao papado. Mas ele sucede a um pontífice cuja marca era a de um homem sem nenhuma dúvida. E pense-se em Paulo VI, com sua postura de diálogo e sua visão de uma Igreja a serviço da humanidade, tendo como modelo o bom samaritano, visão expressa no discurso de encerramento do Concílio Vaticano II. Surpreendia a todos a popularidade de João Paulo II, sobretudo entre os jovens. Deixando de lado seu carisma pessoal, explorado à exaustão pela mídia, é preciso vê-lo com um olhar nos tempos atuais. Sua aceitação era muito menos expressão da verdade do cristianismo do que sintoma de um mundo que precisa que alguém diga que as coisas têm de ser como devem ser. E que acomodar-se ao espírito do tempo aumenta a ansiedade.

Qual o problema? Na realidade, são dois: gostar de João Paulo II não significava necessariamente que sua pregação fosse posta em prática. Além disso, aferrar-se à verdade, não ter dúvidas, produz uma situação de “eclesiocentrismo” — traduzida, na prática, na incapacidade de ver a realidade tal como se apresenta.

Sim, a humanidade precisa de certeza, precisa de convicções. Não é abrindo mão do que sempre se ensinou — numa época de relativismo generalizado e de ansiedade como estado de espírito permanente — que se resolvem os problemas. Mas entre o histórico — caótico — e a verdade professada há que existir a mediação, os teólogos, as pontes. A qualidade destes deve ser a sensibilidade aos fatos e o amor à Tradição. A expressão “sinais dos tempos” é feliz por expressar essa dupla fidelidade.

Nossa situação eclesial não se estará apresentando tão sombria por conta dessa incapacidade de ver as mudanças sociais — com uma atitude de donos da verdade, na perspectiva da hierarquia, e não daquilo que Arendt chamava de amor do mundo? Em nome da verdade, sacrificou-se o amor. E, hoje, quem busca a verdade busca cada vez mais um remédio que faz bem para incertezas, e não um sentido profundo para uma existência feliz, o qual, para o cristianismo, repousa no amor ao próximo, tal como o entendeu e expressou — na palavra e na vida — a geração que está saindo de cena, a do Vaticano II.



[1] CARRANZA, Brenda. Movimentos do catolicismo brasileiro: cultura, mídia, instituição. Campinas: Unicamp, 2005.

[2] WEBER, Max. Economia y sociedad. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica. p. 508.

[3] MONTEIRO, Duglas Teixeira. “Igrejas, seitas e agências: aspectos de um ecumenismo popular”. Diogenes, nº 2, l985, pp. 5-26.

[4] Cf. BOFF, Leonardo. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1978.

 

[5] SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 55.

[6] Idem, ibidem.

Pe. Luiz Roberto Benedetti