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Publicado em novembro-dezembro de 2016 - ano 57 - número 312

Dom Helder: um testemunho para os presbíteros

Por Pe. Ivanir Antonio Rampon

Quão alegres são os presbíteros que escolhem como exemplo de vida a pessoa de Dom Helder Camara, este expoente da profecia, símbolo mundial da não violência ativa, místico, poeta, Dom de Deus… O papa Paulo VI frisava que Dom Helder era um grande homem do Brasil e da Igreja; um místico que havia recebido de Deus a missão de pregar a justiça e o amor como caminho para a paz. João Paulo II, por sua vez, intitulava-o, com muita propriedade, “Irmão dos Pobres, meu Irmão”. Certamente, a abrangência do testemunho de Dom Helder para os presbíteros é ampla. Neste breve artigo, destacarei quatro elementos, de forma muito resumida.

  1. Dom Helder tinha consciência de que sacerdócio e egoísmo não combinam

“Ser padre” exige da pessoa o “colocar-se a serviço”. Significa não buscar honras, aplausos, fama, vaidades pessoais de nenhum tipo. Esse modo de pensar e de ser, Helder herdou de sua família, especialmente do pai. Quando tinha entre 7 e 9 anos, o pai lhe disse algo inesquecível, que sempre procurou viver: “Filho, você está crescendo e continua a dizer que quer ser padre, mas você sabe de verdade o que significa ser padre?”. O menino ficou quieto, meio acabrunhado com o questionamento do pai, que prosseguiu: “Você sabia que, para uma pessoa ser padre, ela não pode ser egoísta, não pode pensar só em si mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, eu sei, são duas coisas que não combinam”. Atento, Helder não sabia o que dizer. O pai continuou: “Os padres acreditam que, quando celebram a eucaristia, é o próprio Cristo que está presente. Você já pensou nas qualidades que devem ter as mãos que tocam diretamente no Cristo?”. Helder, convicto, disse: “Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”. “Então, filho”, disse o pai, “que Deus o abençoe! Que Deus o abençoe! Você sabe que não temos dinheiro, mas, mesmo assim, vou pensar como ajudá-lo a entrar no seminário.”

  1. Dom Helder, antes de tudo, foi um místico

Desde menino, Helder se enveredara pelo caminho da oração, do contato profundo e amigável com Deus. Mas sobretudo quando estava perto da ordenação presbiteral é que percebeu que, graças ao seu temperamento e sua vontade de servir e doar-se, seria “engolido pela vida”. Resolveu, então, madrugar para realizar as vigílias. Nada fazia sem consultar o seu maior amigo. Emprestava seus olhos, ouvidos, boca, coração a Jesus. Tinha consciência de que sua ação e sua palavra eram expressões da sua união mística com Cristo.

Dom Helder geralmente acordava às 2 da manhã e permanecia em oração até as 5 horas. Nesse momento, avaliava o dia anterior e planejava o futuro, conversando com Jesus, com Maria, com anjos e com santos e santas; preparava homilias e conferências, escrevia meditações, cartas e circulares. Diante de Jesus e unido a ele, escrevia, dançava, chorava, brincava. Através da vigília, contemplava as verdadeiras dimensões do mundo, tal como “os anjos e Deus contemplam”. Às 5 horas, tornava a dormir e acordava às 6 para a Santa Missa – momento que considerava o mais importante e alto de todo o seu dia.

Durante a missa, emocionava-se – às vezes sorria, outras até chorava – ao tocar o Corpo de Cristo que se faz comunhão, partilha, alimento, vida, doação, sacrifício… Durante a jornada, geralmente, dedicava-se a atender e conversar com as pessoas (lideranças, religiosos, jornalistas de muitos países). Estava sempre cercado pelos pobres, pelos excluídos. Portanto, antes de ser profeta, ou peregrino da paz, ou bispo, ou fundador da CNBB e do Celam, ou um dos mais importantes padres do Vaticano II… era um místico.

  1. Dom Helder viveu profundamente a profecia

A profecia foi, em Dom Helder, expressão de sua experiência mística. De fato, sem a vigília e a Santa Missa, ele não teria sido o bispo das favelas no Rio de Janeiro, o arcebispo do Nordeste miserável, o advogado do Terceiro Mundo, o apóstolo da não violência, a esperança de uma sociedade renovada segundo o ideal cristão, o poeta e o profeta de uma fé jovem e forte; não seria o dom da justiça, da paz, do amor, da libertação… o Dom de Deus!

A profecia é a expressão mais conhecida da mística helderiana, tanto que parece – como disse Dom Antônio Fragoso – quase uma redundância associar Dom Helder ao profetismo. Parodiando Tomás de Celano, o primeiro hagiógrafo de Francisco de Assis, Dom Helder não apenas profetizava, mas era a profecia feita homem. Pouco antes de morrer, fez-nos seu último pedido: “Não deixe cair a profecia”.

  1. Dom Helder realizava um trabalho pastoral orgânico e em conjunto

Desde o seminário, Helder tinha uma capacidade enorme de trabalhar em equipe. Ele aglomerava, liderava, despertava para o bem, para a verdade, para o belo, para a unidade. Com isso, Deus fez grandes maravilhas em sua vida e, por meio dele, na vida da Igreja e do mundo. Esse seu modo de ser, essa sua espiritualidade e mística foram extremamente importantes para que fundasse a CNBB e o Celam, conduzisse o Congresso Eucarístico Internacional de 1955 e a renovação da Ação Católica Brasileira e fosse um dos grandes articuladores dos padres no Vaticano II.

Em Puebla, Dom Helder – com Dom Evaristo Arns, Dom Ivo Lorscheiter, Dom José Maria Pires, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Luciano Mendes de Almeida – conseguiu “salvar Medellín”, quando forças conservadoras queriam abafar a profecia que brotava das CEBs, da Teologia da Libertação e da educação libertadora, as quais cresciam em todo o país e continente, apesar das reações das ditaduras militares e de grupos direitistas.

O estilo helderiano de “governar” despertava para a “eclesiologia do povo de Deus”, na qual o clero se sentiu presbítero, corresponsável com seu bispo pela caminhada local, enquanto os leigos se organizavam em comunidades, em pastorais, em associações, em movimentos e setores paroquiais e, em comunhão com a hierarquia, assumiam suas responsabilidades na evangelização, dando conscientemente sua indispensável contribuição para a construção do Reino de Deus – Reino de paz, justiça e amor.

Citamos apenas quatro aspectos, sabendo que em muitos outros Dom Helder é testemunha e modelo espiritual para os presbíteros. Basta lembrar, por exemplo, sua fidelidade e resistência incondicional à causa da democracia quando difamado, execrado e silenciado pelo regime militar, que o viu como o “maior inimigo político”, o “arcebispo vermelho”; sua atuação missionária pelo mundo afora como “missionário da justiça e da paz”; sua amizade espiritual com várias expoentes da fé e da humanidade, como o Papa Paulo VI.

Neste tempo de “mudança de época”, no qual se carece de grandes testemunhas, o testemunho espiritual do Servo de Deus[1] e dos Pobres é um farol a iluminar a estrada dos presbíteros que querem: a) ser padres para servir, doar-se, sabendo que “padre” e “egoísmo” são uma horrível (des)combinação; b) experimentar a força do Mistério Trinitário e do Mistério da Encarnação libertadora do Filho de Deus; c) não deixar morrer a profecia, mas, ao contrário, atiçá-la neste tempo capitalista-neoliberal; d) trabalhar pastoralmente de modo orgânico, fecundo, articulado, promovendo as forças da vida, da justiça, da libertação, da fraternidade.

Finalizo recordando que precisamos dedicar cuidados especiais aos seminaristas. No dizer do próprio Dom Helder, “as vocações sacerdotais e religiosas merecem de todos nós cuidados especiais e orações. Não porque padres, religiosos e religiosas são mais importantes, são maiores, mas pelo papel que exercem dentro da Igreja e junto à humanidade. Quer dar uma alegria especial a Cristo? Trabalhe pelas vocações religiosas: numerosas e santas! Vocações sacerdotais: santas e numerosas!”.

[1] Desde 25 de fevereiro de 2015, Dom Helder foi declarado “Servo de Deus” pela Congregação para a Causa dos Santos. A mesma congregação autorizou o Processo de Beatificação e Canonização de Dom Helder, que está em andamento (cf. RAMPON, I. A. Francisco e Helder, sintonia espiritual. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 24-25).

Pe. Ivanir Antonio Rampon

O autor é presbítero da Arquidiocese de Passo Fundo (RS). Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte) e doutor em Teologia Espiritual pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). É autor de O caminho espiritual de Dom Helder Camara, Paulo VI e Dom Helder Camara – exemplo de uma amizade espiritual, e Francisco e Helder – sintonia espiritual, publicados pelas Paulinas. Estes e outros elementos foram desenvolvidos nos livros citados acima. [email protected]