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Publicado em número 135 - (pp. 9-12)

A igreja povo de Deus

Por Pe. Manoel Quinta

1. As imagens da Igreja

A Constituição dogmática sobre a Igreja do Concílio ecumênico Vaticano II, mais conhecida por Lumen Gentium, apresenta a Igreja como o novo Povo de Deus. A imagem do Povo de Deus peregrinante se impôs a outras imagens bíblicas, usadas pela eclesiologia e também presentes na Lumen Gentium, mas que não mereceram um capítulo próprio na Constituição.

É certo que a Igreja em sua realidade profunda não pode ser apreendida numa única imagem ou definição, dado seu caráter de mistério. A Igreja é mistério no seu peregrinar porque tem sua origem no êxodo de Deus Trindade, que saiu de si para comunicar-se com o homem e reconciliá-lo consigo. Ela é mistério pela contínua presença do Espírito do Ressuscitado que a vivifica e a coloca constantemente em movimento rumo ao Reino de Deus. Por ser fruto da iniciativa divina e pela presença do Espírito, a Igreja transcende qualquer imagem ou definição humana. Ela aparece aos olhos dos teólogos mais como aquilo que ela não é, do que aquilo que ela é. Nesse sentido, pode-se ver, nas múltiplas imagens, que a Sagrada Escritura e a Tradição oferecem mútua complementaridade.

A nova consciência que a Igreja tem de si mesma como Povo de Deus inaugurou uma nova era para a eclesiologia e teve boa aceitação, quer por teólogos católicos, quer por teólogos de outras confissões cristãs.

 

2. A imagem bíblica do Povo de Deus

A imagem da Igreja como Povo de Deus se enraíza na Sagrada Escritura. No Antigo Testamento, em virtude da eleição divina (Dt 7,6ss; Is 48,12) e da aliança (Ex 24,1-11), Israel se compreende como Povo de Deus (Dt 29,12; Jr 7,23), povo santo, povo consagrado a Deus (Dt 7,6; 14,2; Ex 19,6), sua propriedade (Ex 19,5), seu filho (Ex 4,22), sua esposa (Os 2,4; Jr 2,2), reino de sacerdotes (Ex 19,6), povo mediador e testemunho para os outros povos (Is 44,8; Gn 12,3). Israel é o Povo; os outros povos são nações estrangeiras. Na sua história, Israel vive a expectativa de uma nova aliança (Jr 31,31; Ez 37,26) e dessa nova aliança nascerá um novo povo (Is 2,2; Jr 4,2) e sobre este povo Deus infundirá o seu espírito (Ez 36,27).

A nova aliança, prometida e esperada pelo povo de Israel, se realiza no sangue de Cristo (1Cor 11,25). Os fiéis a Cristo, regenerados pela palavra de Deus viva e eterna (1Pd 1,23), não da carne, mas da água e do Espírito (Jo 3,5-6), constituem “a raça eleita, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido por Deus, para proclamar as obras maravilhosas daquele que chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,9). A novidade do Povo de Deus no Novo Testamento consiste na convocação do Pai em Cristo e na efusão do Espírito Santo.

 

3. A estrutura da Lumen Gentium

É interessante ter presente a estrutura da Lumen Gentium. A própria estrutura da Constituição é re­veladora de um modo de ver a Igreja teologicamente diferente, subordinando toda a estrutura eclesial à ontologia da graça. O capítulo primeiro trata da Igreja como mistério. O segundo, a alma da Lumen Gentium, apresenta a Igreja como Povo de Deus, e os demais capítulos tratam respectivamente da constituição hierárquica da Igreja, dos leigos, da vocação universal à santidade, dos religiosos, da índole escatológica da Igreja e, finalmente, o capítulo oitavo apresenta Maria como sinal da Igreja, enquanto ela deu ao mundo, em sua carne e em sua fé, Cristo, e com ele deixou entrar toda a Trindade na história da humanidade. Maria aparece como paradigma da missão. Poderíamos fazer algumas críticas a determinado tipo de linguagem presente na Lumen Gentium que trai a novidade da eclesiologia na Constituição, porém pensamos que seja de maior proveito apresentar a visão eclesiológica que daí deriva.

 

4. A Igreja Povo de Deus

O capítulo II da Lumen Gentium apresenta a Igreja como Povo de Deus. A intenção de Deus foi sempre reunir a humanidade num povo; com a nova aliança, que Cristo realiza no seu sangue, nasce o novo Povo de Deus. Os batizados fazem parte desse povo e recebem a dignidade de filhos de Deus. A meta desse povo é o Reino de Deus que deve ser construído na comunhão, na caridade e na verdade. A marca distintiva do Povo de Deus é a comunhão de (serviço à) vida, caridade e verdade. O Povo de Deus é enviado ao mundo inteiro como luz das nações (LG 9).

O novo Povo de Deus é um povo sacerdotal pela função do Espírito. Tanto o sacerdócio comum dos fiéis como o sacerdócio ministerial, apesar de distintos, são participação do mesmo sacerdócio de Cristo (LG 10). O exercício do sacerdócio comum se dá pela participação nos sacramentos e pela prática das virtudes. Pelo testemunho, os cristãos participam do múnus profético de Cristo e, em virtude da unção do Espírito Santo, não podem se enganar no ato de fé (consenso da fé) (LG 12). A santificação e a condução dos cristãos não se dá apenas pelos ministérios e sacramentos, mas também pelos carismas que tornam os cristãos aptos aos serviços e ofícios que contribuem para a renovação e incremento da Igreja (LG 12).

O Povo de Deus deve estender-se a todo o mundo e, mantendo a sua unidade, permanece em comunhão pelo Espírito Santo. Pertencem ou estão ordenados à unidade do Povo de Deus, mesmo que de modo diverso, os fiéis católicos, todos os que creem em Cristo, enfim todos os homens chamados à salvação (LG 13).

Reconhece a Lumen Gentium uma incorporação plena à Igreja, mas também que a Igreja está ligada a todos os batizados pela união do Espírito, que age em todos os cristãos santificando-os por seus dons e graças. Mesmo os não cristãos estão ordenados ao Povo de Deus (LG 14, 15 e 16).

Todo o Povo de Deus é missionário e chamado a tornar-se instrumento de unidade dos homens entre si e dos homens com Deus (LG 17).

 

5. A eclesiologia do capítulo II

A primeira característica da eclesiologia do capítulo II refere-se ao aspecto comunitário da salvação. O projeto de Deus é que os homens se salvem comunitariamente e não isoladamente. Ele constituiu um povo, Israel, e no sangue de Cristo, um novo povo (LG 9). Isso põe em xeque o individualismo que predominou e predomina em nossas igrejas. Individualismo espiritual, teológico e também pastoral. O Povo de Deus foi constituído para comunhão de vida, caridade e verdade. O individualismo faz com que cada cristão seja uma ilha e cada comunidade uma mônada. Falta muito para que os cristãos se tornem historicamente Povo de Deus.

Outra característica da eclesiologia do capítulo II refere-se ao lugar que este ocupa em toda a Constituição. O capítulo que trata do Povo de Deus precede o capítulo que trata da hierarquia.

Até o Vaticano II a característica principal da eclesiologia era o institucionalismo e o juridicismo. A Igreja era equiparada à hierarquia. Essa tendência de fixação no “visível” da Igreja iniciou-se nos fins da Idade Média e foi ampliada como reação à Reforma protestante. Os teólogos e canonistas responderam aos ataques da Reforma ao papado e à hierarquia, acentuando precisamente as características que os adversários negavam. Esse tipo de eclesiologia chegou até nós; basta lembrar a noção de Igreja que nos foi transmitida pelo catecismo, cujo acento está na visibilidade da Igreja e no seu aspecto jurídico: “sociedade de todos os cristãos que professam a mesma fé, recebem os mesmos sacramentos sob a autoridade dos legítimos pastores, o Papa e os bispos”.

Como reação à definição da Igreja como sociedade, em 1943, Pio XII escreveu a encíclica Mystici Corporis Christi e tentou integrar a noção bíblica de Corpo de Cristo à noção de sociedade perfeita, porém, o acento ainda foi jurídico e institucional. Na encíclica, o Papa e os bispos são designados como juntas e ligamentos do corpo de Cristo e, por exercerem o sagrado poder no corpo, são os primeiros e os principais membros. Na Mystici Corporis Christi percebe-se um conceito societário de corpo, adquirindo a realidade visível certo privilégio em detrimento do primado da graça como princípio sobrenatural. Paralelamente a essa preocupação da Igreja consigo mesma corre a negligência no seu inserir-se no mundo. Existia divórcio entre a Igreja e o mundo e, mais do que procurar entender os desafios que a interpelavam, a Igreja enclausurou-se, apelando sempre para sua autoridade.

A precedência da dignidade dos batizados reabilita o primado da graça sobre o institucional. A incorporação a Cristo pelo batismo é o importante e o decisivo. Essa incorporação é que reveste o não cristão da dignidade do ser cristão. A diferença está em ser ou não ser cristão, e não na hierarquização dentro do Povo de Deus. Não se pode pensar, dentro do seio do Povo de Deus, em cristãos de primeira e segunda classe. A dignidade do ser cristão está na participação na morte e ressurreição de Jesus (batismo) e na efusão do Espírito, e não no lugar que um possa ocupar dentro do Povo de Deus.

A participação nos serviços, mandatos, carismas, a especial participação do bispo no único sacerdócio de Cristo, não fazem alguém ser mais cristão ou menos cristão. O pastoreio exercido pelos bispos não os coloca na situação de donos da Igreja. O rebanho é de Deus.

Na Igreja, o único privilégio é ser cristão, e se há uma hierarquia esta é a da santidade. O dinamismo de morte e ressurreição iniciado no batismo, que exige constantemente conversão, deve marcar a vida de todos os cristãos. Todos são chamados à santidade. A hierarquia considerada como privilégio distorcia a ideia que os cristãos tinham e ainda têm dos padres e dos bispos. É comum os cristãos pensarem que aqueles que exercem um ministério ordenado na Igreja já estão investidos de santidade.

Essa precedência, de outra parte, afirma a unidade dentro do Povo de Deus mais do que a diversidade ministerial ou carismática. A afirmação do primado da graça, da vocação de todos os cristãos à santidade e principalmente da dignidade de todos os cristãos, permite colocar os ministérios exercidos na Igreja no seu justo lugar, enquanto se ordenam ao crescimento do Povo de Deus. Os ministérios são serviços e nada mais do que isso. É interessante lembrar que muitos padres pensam que fazem um favor ao Povo de Deus…

Ser papa, bispo ou cristão não faz alguém ser mais Igreja.

O primado da graça à instituição coloca a organização da Igreja no seu devido lugar. A instituição é necessária, mas é um meio e não um fim em si mesma. Dada sua qualidade de meio, deve continuamente adaptar-se às circunstâncias e ser renovada. Se a instituição não promove a comunhão entre os homens, ela é inútil e não presta nenhum serviço ao Povo de Deus; antes, presta um desserviço.

Outra característica da eclesiologia do Vaticano II refere-se ao ecumenismo. A imagem do Povo de Deus, constituído em dignidade pelo batismo, abriu novas perspectivas para o ecumenismo. A Mystici Corporis Christi era grande obstáculo ao ecumenismo, enquanto identificava a Igreja Católica Apostólica Romana com o corpo místico de Cristo. Segundo a encíclica de Pio XII, só deveriam ser incluídos como membros da Igreja os que foram batizados, professassem a verdadeira fé e não se tivessem afastado desafortunadamente da unidade do corpo. Nessa visão de Igreja era impossível admitir a salvação de um não católico. Isso gerava uma preocupação por parte da Igreja em converter os já batizados para salvá-los, trazendo-os para dentro da instituição. A Igreja não via a presença do Reino fora do espaço institucional.

Uma nova consciência missionária surge dentro da Igreja. Todo o Povo de Deus é missionário e deve se comprometer na construção do Reino de Deus. A evangelização é confiada a todo o Povo de Deus que, por participação no sacerdócio de Cristo, está investido da mesma missão de Cristo: promover a unidade dos homens entre si e com Deus. A missão não é privilégio dos ministros ordenados.

O reconhecimento dos carismas dentro da Igreja abre novas perspectivas para a participação de todo o Povo de Deus na organização e renovação de toda a Igreja. O centralismo de todos os serviços na pessoa do ministro ordenado faz com que os cristãos se sintam apenas clientes da instituição.

O Concílio Vaticano II, em toda a sua riqueza e nas possibilidades de renovação eclesial, está muito longe de se tornar práxis na Igreja. Alguns falam que estaria na hora de um novo Concílio; todavia muitos obstáculos têm que ser superados para que o Vaticano II se historicize.

O primeiro vício que deve ser extirpado do seio da Igreja é o clericalismo. O clericalismo é o maior empecilho para a Igreja se tornar Povo de Deus, onde se viva a comunhão e a participação. Ainda hoje é comum escutar dos católicos frases com o seguinte teor: “A Igreja é dos padres”. Expressões como essa revelam que ainda há muito caminho a ser percorrido no sentido de todo o cristão se sentir participante e, quando nós dizemos participante, não nos referimos só à participação litúrgica.

Podemos dizer que o clericalismo tem hoje na Igreja duas vertentes. Numa vertente estão os ministros ordenados que tendem a exercer o próprio ministério de forma centralizada, quase que menosprezando a capacidade do Povo de Deus. Na outra vertente encontramos os próprios fiéis, que muitas vezes são mais clericais do que os próprios ministros ordenados, não aceitando os ministros não ordenados ou, no exercício do próprio carisma, sentindo-se superiores aos outros cristãos.

Teologicamente é possível pensar numa Igreja mais democrática. É claro que não se trata de co­piar uma forma democrática e trazê-la para dentro da Igreja. (Poderá haver democracia em questão de dogma e moral?) Estamos ainda muito longe da fórmula do Concílio de Jerusalém, que inscreveu no enunciado do seu decreto: “Aprouve aos Apóstolos, aos Presbíteros e a toda a Igreja…” (cf. At 15,23.25). Apesar disso, há muitos campos onde o Povo de Deus pode e deve manifestar seu parecer e decidir. São muitas, hoje, as paróquias onde ainda não existe um conselho paroquial de pastoral, um conselho administrativo e onde praticamente se desconhece a prática dos ministérios não ordenados. Tudo é centralizado na pessoa do ministro ordenado.

A estrutura paroquial já de há muito se mostra inadequada; porém ainda hoje a paróquia é vista como sinal de unidade das várias comunidades dentro de seu território e centro jurídico, mas para além disso a paróquia é uma comunidade onde deve existir participação efetiva do Povo de Deus.

É alentador presenciar a multiplicação de Comunidades Eclesiais de Base, representantes de uma nova forma de ser Igreja, mais condizente com o espírito do Vaticano II. Nas CEBs vê-se mais comunhão e participação, mais ligação entre a fé e a vida, e da prática dessas comunidades nasce uma série de novos ministérios conforme as necessidades que vão aparecendo. Vemos nas Comunidades Eclesiais de Base uma realização da eclesiologia do Vaticano II.

Não se pode negar as dificuldades que essas comunidades enfrentam diante de uma paróquia que não se abriu a essa nova realidade eclesial e que não se renovou em sua estrutura para ser sinal de unidade das várias comunidades. O conflito às vezes é inevitável, redundando no autoritarismo em vez da comunhão e participação.

A eclesiologia de comunhão desejada pelo Vaticano II demanda esforço conjunto de todo o Povo de Deus. Muitas distorções estão arraigadas no seio da Igreja pela força da história. Essas distorções dificultam a historicização da novidade eclesiológica do Vaticano II. A imagem da Igreja como Povo de Deus deve iluminar a Igreja no seu caráter histórico e na sua solidariedade interna. Estamos muito longe ainda, como recorda a Relatio finalis no último Sínodo extraordinário, de vermos a eclesiologia da Lumen Gentium tornada história.

Pe. Manoel Quinta