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Publicado em número 197 - (pp. 9-15)

Uma Igreja para o próximo milênio

Por Fr. Clodovis Maria Boff, osm

Como deve ser a Igreja para o III Milênio? Deve ser, em primeiro lugar, o que ela é, em sua essência mais profunda. E, em seguida, deve ser tal que responda, a partir do que é, às demandas do mundo. Ora, a nosso ver, para o III Milênio, a Igreja há de ser, entre outras coisas:

— uma Igreja espiritual ou mística;

— uma Igreja querigmática;

— uma Igreja hospitaleira de todas as diferenças;

— uma Igreja misericordiosa diante de toda a miséria humana;

— e, finalmente, uma Igreja da esperança.

 

I. IGREJA ESPIRITUAL

Poderíamos usar uma palavra mais forte e falar em Igreja “mística”. Aqui nos referimos à experiência de Deus, à união com ele no fundo do coração.

 

1. Situação espiritual do mundo. A espiritualidade responde a uma demanda aguda dos tempos atuais: “Vivemos na Igreja um momento privilegiado do Espírito” — asseverou Paulo VI na Evangelii Nuntiandi (nº 75,6). Efetivamente, existe hoje, nas Igrejas cristãs, uma intensa busca de espiritualidade: despertar do monaquismo, crescimento da Renovação Carismática, avanço do Pentecostalismo e a procura em geral por mais oração e interioridade.

Também na sociedade cresce o interesse pelo fenômeno religioso e espiritual. É a “volta ao sagrado”. É a busca pelas religiões orientais, pelo esoterismo e pelo misticismo em geral. E essa “sede de Deus” assedia toda a sociedade e todas as classes: ricos e pobres. Para esses últimos, fala-se em “seitas”; e para aqueles, em “New Age” ou “gnose”. Tinha, pois, razão, o grande escritor A. Malraux quando afirmou: “O século XXI será místico, ou não será”.

2. Igreja-mistério. Se a Igreja quer responder, em primeiro lugar, à sua vocação mais íntima; se ela quer responder eficazmente ao mundo de hoje, ela terá de redescobrir sua identidade mais profunda, que é a de ser “mistério”. Isso mostra a face oculta da Igreja, enquanto voltada para Deus. Antes de ser a “ecclesia ex hominibus“, a Igreja é a “ecclesia de Trinitate”.

Na verdade, na constituição dogmática Lumen Gentium o cap. I trata do “mistério” da Igreja. É, com efeito, no mistério salutar que mergulham as raízes mais profundas da realidade da Igreja. Essa nasce do coração da Trindade, da comunhão de amor intratrinitária. A Trindade é a fonte e, ao mesmo tempo, o ícone perene da comunidade eclesial. Uma das mais belas definições da Igreja é a que deu S. Cipriano, citado pelo Vaticano II: “É o povo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (LG 4). A Igreja nasce e se mantém unida no abraço dos Três-Um.

Portanto, uma Igreja adequada ao século XXI e, antes ainda, adequada à sua essência íntima e à sua vocação fontal, será uma Igreja “mistérica”. Será uma Igreja impregnada da irradiação do Espírito, resplandecente de Deus, transfigurada na luz taborítica. Entrando no Novo Milênio, crescerá com novo vigor o aspecto mistérico, místico, misterioso da Igreja; será mais viva e vivida sua dimensão interior, sobrenatural, “sacramental”.

Sem dúvida, a Igreja não deixará de ser uma grandeza social: uma Igreja de compromisso, de intervenção social, uma Igreja militante. Mas tudo isso ganhará tanto mais força quanto mais se alimentar das raízes espirituais da identidade eclesial profunda. É de sua profundidade mística que a Igreja recebe sua “força de atração”, seu fascínio e seu encanto. É porque se entende como “corpo místico” de Cristo, “esposa do Espírito”, “povo de Deus”, povo de profetas, de sacerdotes e de reis, que a Igreja finalmente interessa. Aí está o segredo último de sua energia e eficácia.

 

1.3. Que significa uma Igreja “mística”? Significa, entre outras coisas:

1)    Uma Igreja pneumática. Uma Igreja do Espírito Santo e não apenas do Cristo “segundo a carne”. Por isso será uma Igreja mais sopro que eficiência, mais inspiração que instituição, mais carisma que poder, mais amor que lei, mais comunhão que organização, mais comunidade que sociedade.

2)       Uma Igreja contemplativa. Uma Igreja orante e adorante. E, antes ainda, uma Igreja-discípula, que esteja à escuta da Palavra. Uma Igreja, quem sabe, neomonástica, no sentido de saber estar só, diante de Deus, em “anacorese”. E que seja também eucarística: que celebre festivamente a graça e o amor de Deus pelos humanos. Uma Igreja de louvor e ação de graças pelo Reino que chegou. Por isso também uma Igreja da gratuidade, sem funcionalizações de espécie alguma, mesmo libertadoras. Uma Igreja amorosa, de comunhão e de alegria. Quem sabe até, uma Igreja-menina, que saiba extasiar-se diante da existência, rir de si mesma e brincar diante do Criador e Pai.

3)    Mistagógica. Que saiba iniciar à experiência do Espírito, aos mistérios divinos. Uma Igreja catecumenal: que encaminhe, passo a passo, para o encontro vivo com Cristo. Por isso também uma Igreja que guarde o “pudor dos mistérios”. Que “não jogue suas pérolas aos porcos” (Mt 7,6). Que redescubra a “Palavra perdida”, a palavra da profundidade, a “santa gnose”. E que, para isso, talvez tenha de restaurar a tradicional “disciplina do arcano”, o legítimo “esoterismo cristão” da Igreja Antiga (cf. 1Cor 2,6-16).

4)    E a história e seus conflitos? Há que dialetizar sempre, de modo vigoroso, o espiritual e o social. A dimensão política da missão da Igreja é uma conquista definitiva do século que termina e constitui, doravante, patrimônio de todo o cristianismo adulto. Portanto, nada de uma espiritualidade “alienada” da história.

 

Contudo, é preciso também dar-se conta de que a Igreja incide na história não só via intenção subjetiva, mas também, e sobretudo, via efeito objetivo. As “revoluções espirituais” são, naturalmente, as mais profundas e duradouras. Por isso mesmo não deixam de ter “recaídas históricas” seguras e benéficas.

A Igreja “espiritual” do início do III Milênio não é uma Igreja que “foge à luta”. Ao contrário, mantém-se nas margens do Jaboc da história e enfrenta o “agon” mais dramático que seja: a luta de Jacó com o Anjo (Gn 32). Não é Igreja intimista, mas a Igreja que combate por um eu aberto e liberto e que, por isso, entregue, com a necessária radicalidade, às causas de Deus na arena da história.

 

II. IGREJA QUERIGMÁTICA

Falamos aqui de uma Igreja anunciadora, missionária, pregadora da boa nova do Reino de Cristo.

 

1. Atual contexto cultural. A situação que vive o ser humano nas vésperas do Novo Milênio é de desorientamento, de vazio e solidão. Sente-se falta de uma “âncora existencial” onde amarrar a vida e os sonhos para não ser tragado pelos embates da história. Parece que o mundo atual vai à deriva, não sabendo a que destino aportar.

Talvez essa situação esteja ligada à “época de transição” que estamos hoje vivendo. Não se trata só de transição de um milênio para outro, coisa que sempre acende o imaginário popular e suscita temores estranhos. Trata-se também da transição de um modelo de sociedade e de civilização para outro. Ora, esses são sempre períodos de lusco-fusco, de nevoeiro e, por isso, de angústia e perplexidade.

A modernidade “desencantou” radicalmente o mundo e a vida. Busca-se agora, com nova sede, a esfera do “maravilhoso”. A cultura dominante é rasteiramente materialista, dominada pelo consumo, hedonista, banalizadora e, por certos ângulos, niilista. A atual “miséria existencial” faz surgir e crescer a expectativa de algo diferente, de uma palavra que confira “sentido” e vibração interior à vida.

 

2. A chama interior. Para sustentar sua dimensão querigmática, a Igreja deverá fundá-la sobre a dimensão há pouco referida: a mística. Com efeito, para que a Igreja seja realmente anunciadora de um sentido transfigurador da existência; para que, portanto, “reencante” a existência dos seres humanos, é preciso que esteja possuída por uma “chama” verdadeiramente mística. Só a essa condição terá a Igreja poder de apelo e de convocação.

Em outras palavras, para poder aquecer, a Igreja deverá arder: arder com o fogo do Espírito. Só uma “descoberta” deslumbrante faz comunicar e clamar; só um “encontro” luminoso faz falar. “Brilhe a vossa luz diante dos homens para que, vendo vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está no céu” (Mt 5,16).

Daí porque a irradiação querigmática da Igreja não surge nem se mantém senão a partir da chama da experiência espiritual. Só essa ateia fogo na alma e a faz flamejar para fora. A fonte da missão é interna. Sem isso não existe anúncio evangélico e evangelizador, mas apenas proselitismo religioso e marketing da fé. Sem isso não nasce um engajamento apaixonado pela causa, mas tão somente militantismo, pastoral ou político que seja. Então, não só é realmente atraído, mas só compelido. Vemos, assim, que o querigma chama a espiritualidade, como o rio à fonte.

 

3. Concentração cristológica. O anúncio da fé para o próximo século há de se reconcentrar em Cristo. Não se trata de pregar sem mais a totalidade da doutrina cristã, mas de reanunciar o núcleo originário do Evangelho, o “querigma”: o amor do Pai, Jesus Salvador.

Por isso, mais que ser uma Igreja simplesmente “missionária”, a Igreja do próximo futuro precisa ser uma Igreja querigmática. O que importa sobre todas as verdades da fé é seu cerne essencial: Jesus Cristo vivo. Assim, o esforço da pregação da Igreja deve ser mais intensivo que extensivo. Há de ganhar em profundidade em vez de em extensão.

Efetivamente, a verdadeira e grande Palavra que foi confiada à Igreja e que esta tem a missão de proclamar é a Palavra feita carne: Jesus Cristo, o Crucificado e o Ressuscitado. E essa é palavra da “salvação”: palavra que não somente ilumina, mas também transforma, recria e ressuscita. “Só tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68).

Agora, concentração querigmática no mistério de Cristo leva, no nível da prática, à “concentração agápica”. Pois o núcleo ético da mensagem de Cristo é o amor, o “ágape” neotestamentário. O que é a “compaixão” para o budismo e a “submissão” para o islamismo, é o “ágape” para o cristianismo. Mas aqui, também, trata-se de um “amor” que tem em Cristo sua inspiração e sua medida. E assim, aqui também, se permanece solidamente ancorado no cerne da fé.

 

4. Recondução de tudo ao seu núcleo. “Concentração cristológica” significa que a Igreja deve apenas ficar repetindo o nome Salvador (cf. At 4,12)? E onde fica a riqueza da tradição cristã? Será deixada de lado? Não. “Concentração cristológica” não é redução, mas antes recondução de tudo ao mistério de Cristo. Significa que, seja lá do que fale, a Igreja deverá sempre voltar a esse centro irradiador de tudo, que é Cristo e seu Reino. É nesse eixo que todos os raios da roda se encontram e é daí que todos partem.

Assim, toda a herança da tradição cristã — dogma, moral e sabedoria de vida — é recuperada a partir do núcleo querigmático. É esse que estará no topo da assim chamada “hierarquia das verdades” (UR 11). Sem esse núcleo, a doutrina cristã cai no dogmatismo, no moralismo e, finalmente, na sensaboria geral. Igualmente, o compromisso social dos cristãos há de se manter sempre mais enraizado no “coração do Evangelho”, pois é daí que deriva toda a sua capacidade renovadora e o seu dinamismo criador.

Concretamente, a mensagem eclesial será cada vez mais bíblica e, especialmente, evangélica. Com efeito, a Sagrada Escritura constitui a “mensagem fundadora” do evento cristão. Ela é a “testemunha primária” da revelação. E o coração da Bíblia é o Evangelho. Desse modo, voltamos à “concentração cristológica”, mas a partir de seu contexto original mais amplo.

 

5. Modo de evangelizar. Mas Jesus Cristo não é só o conteúdo nuclear da pregação da Igreja. Ele exige também uma forma de anúncio. E essa forma deve ser correspondente ao conteúdo. O modo de a Igreja pregar será adequado à matéria: será, pois, um modo alvissareiro, ardoroso, entusiasmado e irradiante.

Não poderá, portanto, adotar uma maneira legalista e condenatória de falar. Nem assumirá um tom amargo. Se há reivindicações a fazer (e são muitas e exigentes), essas hão de estar todas impregnadas da luz do anúncio e da esperança que ele suscita num mundo pacífico e amoroso.

 

III. IGREJA HOSPITALEIRA

Queremos nos referir a uma Igreja de diálogo, que seja acolhedora de todas as diferenças. Trata-se de uma Igreja includente, que evita toda forma de mesquinhez mental e de exclusão. Falamos de uma Igreja aberta, larga, magnânima e generosa. Uma Igreja que seja verdadeiramente “mãe”, que acolha em seu regaço toda a diversidade que a vida traz. Uma casa em que todos possam “se sentir em casa”. Um arco-íris feito de todas as cores do céu.

Falamos por ora do “outro” no sentido horizontal, do simplesmente “diferente”. Não falamos ainda do “outro” como “contrário” e, eventualmente, antagônico, que trataremos no próximo item.

 

1.Pluralismo atual. Marca da sociedade moderna e do futuro é a tolerância, a convivência, o intercâmbio, a comunhão entre os diversos. A categoria do “outro” é central numa nova cultura.

Persiste, contudo, o perigo do fundamentalismo. Sob as mais variadas formas, esse afirma: Só vale a minha cultura, a minha religião, o meu cristianismo. Isso destrói as diferenças, apelando para a violência, para impor sobre todos a monotonia da “mesmidade”.

O último milênio da história da Igreja foi marcado pela intolerância para com o “diferente”. Esse foi tratado muitas vezes pela Igreja como inimigo: ou foi submetido, ou foi destruído. É só lembrar a inquisição, as cruzadas, as guerras de religião e as missões de cruz e espada. Além do mais, a Igreja ocidental mostrou forte tendência à centralização, marginalizando formas alternativas de liturgia, teologia e comunidade.

Mas, no extremo oposto, existe outro desvio que milita contra a riqueza das diferenças: é o sincretismo, como se evidencia na religião popular. O sincretismo diz: Tudo vale. E acaba banalizando as diferenças, tornando-as “indiferentes”. Dispensa o trabalho paciente do discernimento lúcido e respeitoso, o “labor do conceito”, para submergir todas as diversidades no “tanto faz” generalizante e “facilitão”.

 

2. Acolhida das pessoas. Mas antes de todas as diferenças, reina a unidade: a da dignidade básica de toda pessoa humana. A Igreja do próximo século reaprenderá a ser “mestra de hospitalidade” para todas as pessoas, para cada pessoa, em sua individualidade única e irrepetível.

Numa sociedade que valoriza a individualidade até o extremo do individualismo; numa economia caracterizada pelo “gerenciamento de qualidade total”, que busca atender bem cada pessoa e de modo individualizado (contra a produção em massa do passado), a comunidade eclesial é chamada a superar todo o comportamento meramente burocrático, frio e impessoal, e a estabelecer uma relação pastoral personalizada.

A Igreja de Jesus deve oferecer hospitalidade particularmente para os desancorados existenciais, os “sem-teto religiosos”, os nômades espirituais, perdidos em busca do lar de um sentido.

Mas as pessoas são sempre marcadas por suas diferenças. Acolher uma pessoa é acolher também sua diferença irredutível, sua singularidade. E aqui surge a face do “outro”. Ora, quais são os “outros” da Igreja? O “outro”, do ponto de vista da Igreja, constitui um leque bastante largo: são as mulheres, as outras Igrejas cristãs, as outras religiões, as outras culturas e, até mesmo, a natureza.

 

3. A “outra” da Instituição eclesiástica. Esta é estruturalmente marcada pelo “gênio do varão”. Uma Igreja do futuro há de crescer em sua outra metade atrofiada, dando um espaço muito maior à mulher. Na verdade, pesa sobre as Igrejas cristãs (e também sobre a sociedade em geral) uma dívida imensa em relação à mulher.

Passos já foram dados. Mas existem muitos outros a se dar. A Igreja do século vindouro há de ter uma face marcadamente feminina. É previsível que o papel da mulher, também nos postos de decisão, será consideravelmente maior que no milênio fortemente patriarcal que está terminando.

 

4. Diálogo religioso. O “diálogo da salvação”, inaugurado por Deus com sua criatura livre, há de, ser o protótipo da Igreja em sua relação com as religiões. Alguns parceiros particulares apresentam-se hoje para a Igreja em termos de diálogo religioso:

1)    As outras Igrejas cristãs, em primeiro lugar. É o ecumenismo, que não pode não prosseguir. E há de envolver especialmente o Pentecostalismo, por ser este um dos processos mais dinâmicos das Igrejas evangélicas e que envolve especialmente os excluídos da sociedade.

2)    As outras religiões. É o macroecumenismo. Na “aldeia global” o diálogo é também um imperativo da situação. Nesse diálogo se verá quanto as religiões têm em comum, quanto têm a aprender umas das outras e quanto também devem preservar sua riqueza própria, para ser fiéis à multiforme inspiração do alto.

 

Mas o diálogo, quer ecumênico, quer macroecumênico, pressupõe o diálogo interno entre as várias correntes no seio da mesma Igreja. Aqui temos todo o desafio da “democratização” das relações internas da Igreja, o reconhecimento do mais largo pluralismo litúrgico, teológico e organizacional entre as várias comunidades eclesiais e a necessária descentralização da estrutura eclesiástica. Esse último ponto representa um problema imenso, que se cristalizou exatamente no milênio cessante e cuja dívida a Igreja levará consigo milênio adentro.

 

5. Inculturação do cristianismo. O diálogo entre fé e cultura é uma exigência do presente e do futuro. Implica a pergunta de como a Igreja de Cristo pode e deve fazer sua a riqueza dos povos. E isso para “glória de Deus, confusão do Demônio e felicidade do Homem” (LG 17).

A base teológica desse diálogo é que a presença de Deus, de seu Verbo e de seu Espírito lateja em todo o mundo. A palavra profética e o sopro de vida devem ser descobertos, honrados e acolhidos pela Igreja também a partir de fora. Por isso ela deve pôr-se à “escuta do mundo”, auscultar a palavra de Deus que passa pelas palavras da sociedade. A partir daí também há lições para a Igreja aprender, um chamado à conversão, uma interpelação profética. “O que o Espírito diz às Igrejas” a partir dos gritos do mundo, e através dos “sinais dos tempos”? Para isso, o “diálogo com o mundo” deverá prosseguir e se manter em profundidade. Grande é, efetivamente, o “auxílio que a Igreja recebe do mundo” (GS 44).

6. Realização da catolicidade. Para acolher o “outro” em todas as suas formas, a Igreja não precisa alterar sua identidade, mas, pelo contrário, basta ser consequente com ela. Ela é “católica” não porque tenha uma identidade fechada numa confissão determinada (com isso seria antes “catolicística”), mas porque pode acolher todos os humanos e todo o humano.

Se a identidade cristã é “católica”, quer dizer que ela é aberta e cresce através do relacionamento crítico com a mais vasta gama da diversidade. Certo, há na identidade cristã um núcleo irredutível que se chama Jesus Cristo. Mas é um núcleo que, se compreendido segundo o Espírito, possui particular capacidade de assimilação, filtragem e crescimento (cristologia pneumatológica).

Na relação com o “outro”, a Igreja cristã se pauta pelas palavras do Profeta à nova Jerusalém: “Estende tua tenda e firma tuas estacas” (Is 54,2). “Estende tua tenda”, para abrigar todos os povos e suas riquezas: é o movimento de acolhida. E “firma tuas estacas”: é o movimento de estabelecer a própria identidade nuclear. E isso é condição daquilo.

 

IV. IGREJA DA MISERICÓRDIA

Podemos aqui falar também em compaixão, ternura e piedade. Referimo-nos a uma Igreja que seja aquela “escola de compaixão” de que falava Santo Isaac, o Sírio (séc. VII) e que recordou a recente Assembleia Ecumênica da Europa, reunida em Graz (Aústria), junho 1997.

O que está em questão neste item não é mais a relação da Igreja com o “outro”, o meramente diferente, simétrico a mim mesmo. Trata-se, sim, do outro realmente diverso, divergente. É o outro “mais outro”, o outro assimétrico comigo: o sofredor, o excluído, o perdido, e até o inimigo.

A misericórdia é uma das formas mais radicais do “ágape” cristão. É o “ágape” para com o que está no chão, fora, longe ou contra.

 

1. Uma atitude “feminina”. O milênio que está terminando foi marcado pelas virtudes ditas “masculinas”: o poder, a dominação, a guerra. O próximo milênio será, deverá ser, um século feminino. Em hebreu misericórdia, rahamim, vem de rehem = entranhas. É o amor “entranhado”, o amor da mãe pelo filho, amor incondicional, fundado apenas nos laços de sangue.

E tal é o amor do Criador por suas criaturas, o amor do Pai celeste por seus filhos e filhas. Sobre o Pai do filho pródigo, diz o evangelho que, vendo o filho voltar, “comoveram-se-lhe as entranhas” (Lc 15,20). O mesmo amor “visceral” de compaixão sentiu Cristo, quando “viu a multidão cansada e abatida como ovelhas sem pastor” (Mt 9,36).

Assim há de ser a Igreja. Sua misericórdia verdadeiramente materna há de se estender a muitas categorias: os socialmente excluídos, os espiritualmente perdidos, seus perseguidores e a criação ferida e ameaçada de destruição.

 

2. Os socialmente excluídos. As tendências atuais vão no sentido não de um mundo polarizado, segundo a dialética senhor-escravo, mas de um mundo dividido, partido pelo meio, segundo a dialética do incluído e do excluído. O mundo se globaliza, mas é uma globalização perversa: a da “apartação” das imensas maiorias.

O sistema de mercado não tem alma, não tem um “coração de carne”, um coração humano. Tem, sim, um “coração de pedra”, e este chama-se “lucro”. Segue as assim ditas “leis férreas”, que sacrificam o corpo e a vida do povo no altar da competitividade e da acumulação. Ora, os cristãos são chamados a introduzir na história uma outra lógica: a de um “coração novo”, um coração de carne, coração compassivo (cf. Ez 36,26).

A compaixão está na raiz da “opção pelos pobres”. Amar os pobres é, antes de tudo, estabelecer, com eles um “nexo afetivo”. É, em seguida, respeitar seu coração machucado, pisado. Pois o que é mais doloroso para o pobre em sua pobreza não é o sofrimento físico, mas o fato de não ser considerado, de ser tido por um zé-ninguém, a redução à insignificância, ao anonimato, é, em suma, o desprezo. Ora, sem reabilitar a subjetividade do pobre, não há modo de despertar sua “sujeitidade” social e histórica. Com quem está no chão, não há como pedir nenhum engajamento. E aqui está, em parte, o segredo das “seitas”: elas reforçam a subjetividade dos últimos. Esses se sentem “eleitos”, e “salvos”. Com gente assim de pé pode-se marchar politicamente para um lugar qualquer.

A misericórdia só deixa de significar piedade paternalista e sentimental quando existe proximidade e partilha da vida com os “miseráveis”. Isso implicará uma mudança de “estilo de vida”, estilo que esteja mais próximo do deles e que contribua a questionar os atuais padrões de consumo. Daí também nasce o compromisso pela justiça e a luta sem tréguas até o fim, mesmo até o martírio, se preciso, para a vida e a dignidade dos excluídos.

A “opção pelos pobres”, com a luta por sua libertação, quando alimentada pela misericórdia, adquire outra qualidade: torna-se mais humana. Sem deixar de ser firme e corajosa, assume traços ternos e mesmo maternos, os da mansidão evangélica, que, ao contrário da violência que pretende conquistar o mundo, garante a “posse da terra como herança” (Mt 5,4).

 

3. Os moralmente “perdidos”. A misericórdia se estende também a todos os que os sistemas morais e religiosos condenam e que são tidos como “pecadores”, proscritos, perdidos, desgraçados. A lista aqui é longa, repartida entre categorias tradicionais e outras novas: as prostitutas, as mães solteiras, os recasados, os sacerdotes e religiosos(as) que “deixaram”, os homossexuais, os envolvidos no tráfico, as vítimas da Aids etc.

A Igreja de Cristo não pode fechar o coração a pessoa alguma, por mais perdida que possa parecer. Há de imitar seu fundador, que se chamou “o amigo dos publicanos e pecadores” (Mt 11,19) e que praticou a “comensalidade” com todos os que, eram moral e espiritualmente desprezados (ef. Lc 15,1-2). A Igreja do crucificado não pode conhecer nenhuma sorte de exclusão. Só os arrogantes estão fora, não porque sejam por ela excluídos, mas porque, por sua presunção, não se dignam de participar dela.

A forma primeira, elementar e inaugural de relação da Igreja com os outros é o “ágape” que já lembramos. Independentemente das etiquetas, sejam elas culturais, políticas, morais ou religiosas, cada pessoa deve ser respeitada, acolhida e amada. A porta de entrada da Igreja de Cristo deve ser a “porta de ouro” do amor incondicional, da simpatia, da amizade. Nela devem encontrar abrigo os pobres de toda a sorte. E cada um deve poder encontrar aí realmente a família, achar-se “em casa”.

Mas, em nome do mesmo amor que acolhe, a Igreja deve ajudar todos esses “perdidos” a refazer sua existência, a encetar um caminho de ressurreição e vida nova. Pois o amor é sempre convite à liberdade e libertação, ao crescimento e à superação de si.

 

4. Compaixão por toda a criatura. É toda a questão da natureza ferida, ameaçada. Os budistas têm uma longa tradição de “compaixão” por todo o ser vivo e em geral por todas as coisas. A Igreja cristã é hoje provocada a resgatar sua própria tradição de amor à criação, tradição essa que foi esquecida, sepultada, mas não de todo, como se vê de modo claro na luminosa figura de Francisco de Assis.

Não basta à Igreja ser pastora dos humanos Ela precisa também ser “pastora da criação”. Melhor, sua missão é ajudar a humanidade a ser a “guarda da natureza”, como foi Adão nos inícios da criação.

Na verdade, o cuidado das criaturas não é para a Igreja de Cristo um elemento optativo, mas é parte inerente de sua missão. E a base teológica disso é o mistério divino da criação, bem como o mistério da redenção. Por esse mistério, como se vê nas cartas do cativeiro de Paulo, o “céu e a terra” se acham envolvidos em termos de uma obra de pacificação cósmica.

 

V. IGREJA DA ESPERANÇA

Quando falamos em esperança, queremos significar o dinamismo projetivo da Igreja, sua capacidade de sonho e de utopia.

 

1. O contexto cultural do “fim da história”. Grassa na cultura de hoje um novo determinismo, extremamente infausto aos pobres. De fato, os processos em curso: primazia do mercado, globalização, avanço tecnológico, são apresentados como inexoráveis: nada haveria a fazer, senão adaptar-se. É o fatalismo do “pensamento único”. Essa ideologia, extremamente funcional ao capitalismo neoliberal, é uma doutrina de resignação. É, para os últimos, a ideologia do desespero.

 

2. Inconformismo constitutivo da fé. Por mais que os cristãos façam para esvaziar a força de irrupção da fé, existe nela um componente de rebeldia congênita impossível de evacuar. “Não vos conformeis com esse mundo, mas renovai-vos em vosso entendimento” (Rm 12,2). “Renovai-vos pela transformação espiritual de vossa mente e revesti o Homem Novo” (Ef 4,22-24).

A Igreja do próximo milênio haverá de reativar, em novos termos, o potencial revolucionário da fé. A Igreja não é só Igreja da fé e da caridade. É também a Igreja da esperança. Trata-se, em primeiro lugar, da esperança escatológica sobre todo o pecado e sobre a morte; ou seja: de que finalmente o Reino de Deus sobrevirá “em poder e glória” e fará justiça às esperanças mais recônditas dos seres humanos. Mas em nome e no vigor da esperança escatológica, a Igreja seguirá desfraldando também a bandeira da esperança histórica. Teima em afirmar que a história permanece aberta ao projeto divino e à invenção humana, e que é possível sonhar um mundo diferente, onde todos possam gozar das condições básicas de vida.

Especialmente contra o atual processo neoliberal, que privilegia o ídolo do dinheiro, “Mamona”, a Igreja de Cristo não pode não passar à oposição, à profecia contracultural. Pois em sua mensagem fundadora, o Evangelho, ela encontra as palavras mais vigorosas contra o sistema do dinheiro, hoje mundialmente hegemônico. “Ai de vós, ricos” (Lc 6,24); “Não podeis servir a Deus e ao Mamona” (Mt 6,24); “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus” (Mt 19,24).

No Novo Testamento encontramos outras palavras, igualmente incandescentes, contra o sistema do capital: “(Deus) despedirá os ricos de mãos vazias” (Lc 1,53); “A avareza é uma idolatria” (Cl 3,5); “O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1Tm 6,10); “Chorai, ricos” (Tg 5, 1). Bastam esses ditos para fazer sentir como o ímpeto do capitalismo só poderá encontrar na mensagem cristã um freio resistente e um surpreendente potencial contraofensivo.

 

3. Fazer sinais. Todavia, a Igreja não pode ficar só na profecia. Precisa passar à ação. Certo, não compete a ela sozinha transformar o sistema. A Igreja deverá assumir com coragem seu caráter quenótico, de fraqueza institucional. Deverá aprender que sua força é de caráter radicalmente evangélico e místico.

Mas se não tem força para transformar sozinha o sistema, a Igreja pode abrir o caminho para tanto, através de alguns sinais antecipadores que ela pode oferecer. Sinais que vão a contracorrente do presente e que se põem no sentido do futuro. Serão “serviços exemplares”, portadores de uma força de demonstração e irradiação que se legitimam na qualidade com que são feitos. Serão ações dotadas de um valor como que “sacramental”, sinais e instrumentos de um futuro não só desejável, mas também possível.

 

4. Igreja do Apocalipse. No contexto atual de dominação crescente do capital tecnológico, a nova Besta-fera emergente, acompanhada de seu infalível pseudoprofeta, o neoliberalismo, a Igreja do próximo século se sentirá talvez numa situação análoga à das pequenas e fracas comunidades cristãs do Apocalipse. E como Igreja do Apocalipse, a Igreja do futuro próximo precisará ser:

— uma Igreja resistente. Diante da sedução do neoliberalismo, ela não pode tergiversar, mas há de “continuar profetizando contra muitos povos, nações, línguas e reis” (Ap 10,11);

— uma Igreja agônica. Estará disposta a enfrentar o peso do sistema e a sofrer por isso, mesmo que seja o martírio, sem, contudo, se dobrar;

— uma Igreja esperançosa. Ela sabe que a vitória final e total está garantida graças ao Pantocrátor, o Senhor dos tempos, e que já na história não é ilegítimo esperar um “milênio” de liberdade e; justiça básica para todos (cf. Ap 20,1-6).

 

Que surpresas esperarão a Igreja de Cristo no milênio que está para se abrir? O dever da Igreja não é se ocupar com tais especulações. Não lhe compete “conhecer os tempos e os momentos que o Pai se reservou em seu poder” (At 1,7). Compete, sim, a ela manter-se fiel ao Espírito de Jesus e pôr-se, como ele, ao serviço despretensioso da humanidade, de sua vida plena e de sua esperança maior.

Fr. Clodovis Maria Boff, osm