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Publicado em número 260 - (pp. 18-21)

Liberdade com responsabilidade: ética cristã nos escritos de São Paulo

Por Pe. Darci Luiz Marin, ssp

São Paulo lançou as bases para a ética da vida cristã nascente. No alvorecer do cristianismo, a originalidade da proposta desenvolvida pelo apóstolo consistiu em aliar à liberdade a responsabilidade: “tudo me é permitido, mas nem tudo convém” (1Cor 6,12).

Todos os seres humanos prezam a liberdade, tendo sido criados para ela. No entanto, para não diminuí-la ou até destruí-la, requer-se viver com responsabilidade. Essa foi a grande intuição de São Paulo, defendida em suas cartas dirigidas às primeiras comunidades cristãs.

Em tempos mais recentes, o Vaticano II resgatou essa intuição, sobretudo com a Gaudium et Spes, atribuindo grande valor à consciência das pessoas: “a consciência é o sacrário das pessoas” (GS 16).

Permeando a ética de São Paulo, é possível encontrar grande desafio lançado a todo ser humano: saber discernir quais são os melhores caminhos a percorrer no dia a dia. É assim que a pessoa se realiza e edifica o mundo à sua volta.

Em tempos de pensamento fraco e de relativismo, em que até o amor (síntese da mensagem cristã) é tido como líquido, revela-se mais do que oportuno revisitar as intuições éticas que nos foram legadas pelo apóstolo São Paulo.

 

1. Passagens éticas relevantes nas cartas de Paulo

O mais antigo escrito do Novo Testamento, 1 Tessalonicenses, é uma carta de exortação ética. O apóstolo Paulo lembra que a vida cristã constitui uma espera ativa do Senhor. Por meio de linguagem bastante emotiva, São Paulo recorda seus laços de fraternidade com os que abraçaram a mensagem de Jesus Cristo, recomendando-lhes não abandonar o que dele haviam aprendido. Tal recomendação era endereçada a cristãos que viviam em ambiente de bastante laxismo ético, de modo particular no que se referia à vida sexual. Ora, a adesão à mensagem de Jesus Cristo implica compreender de maneira nova a si mesmo, os outros e as relações humanas. Há, nessa passagem de 1 Tessalonicenses, defesa do respeito devido ao próprio corpo e ao corpo das outras pessoas (cf. 1Ts 4).

Outra carta que traz precioso ensinamento, em ótica cristã, é 1 Coríntios:

 

Quando lemos essa carta, vemos logo que Paulo usa algumas das mesmas espécies de apelos morais que em 1Ts. A maneira de ele introduzir esses apelos mostra que as semelhanças não nascem só dos hábitos do mesmo autor, mas também do fato de Paulo e seus colaboradores ensinarem crenças e normas semelhantes a novos cristãos nos dois lugares.[1]

 

Os destinatários de 1Cor encontram nela importantes balizas éticas para agir em situações concretas. Paulo valoriza a liberdade, mas aconselha a prudência: “tomai cuidado para que a vossa liberdade não se torne ocasião de queda para os fracos” (1Cor 8,9). A recomendação é que se mantenha sempre a sadia humildade perante as outras pessoas. Liberdade, sim! Responsabilidade, também!

Nessa carta encontramos grande incentivo ético à generosidade: “Ninguém procure satisfazer seus próprios interesses, mas aos do próximo” (1Cor 10,24). Semelhante linha de conduta foi bastante sublinhada em encontros do episcopado latino-americano. Bastaria lembrar, por exemplo, Puebla 31-39 (feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo), Santo Domingo 178 (descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor), Aparecida 407-430 (rostos sofredores que doem em nós).

Nas origens da teologia cristã deparamos com o apóstolo Paulo, que tem a grande lucidez de traduzir e testemunhar concretamente o cerne da mensagem de Jesus Cristo: “este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). No pedido à generosidade presente em 1Cor, temos a tradução concreta do mandamento maior deixado por Jesus.

Outra carta de Paulo, verdadeiro hino de louvor à liberdade humana, é endereçada aos Gálatas: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). A liberdade é um dos elementos éticos fundamentais da vida humana. São Paulo acentua e valoriza essa dimensão constitutiva do ser humano. Por outro lado, chama a atenção para a compreensão de que determinados comportamentos desencadeados pelo próprio ser humano podem torná-lo escravo. Alerta, então, para a vigilância. Somente quem é vigilante mantém sólida sua liberdade e nela cresce.

 

2. Fazer o que convém

O apóstolo Paulo codifica a originalidade da mensagem ética de Jesus, destinada particularmente aos cristãos, mas também a todas as pessoas de boa vontade: “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1Cor 6,12; 10,23). No contexto daquilo que Paulo escreve, é possível deduzir o que convém, especialmente aos cristãos: tudo o que congrega, edifica e tece a vida das pessoas. Agir desse modo é a recomendação!

É preciso, então, discernimento. O texto capital é o seguinte: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12,2). A esse respeito, o grande mestre da teologia moral contemporânea Bernhard Häring afirmou:

 

Para Paulo, a partir do momento em que consentiu em viver segundo as exigências do batismo, o crente está capacitado a descobrir por si mesmo a vontade de Deus no cotidiano de sua vida. E assim chegamos a um dos filões éticos mais importantes de Paulo, o tema do discernimento… O cristão tem de descobrir e realizar aquilo que a vontade de Deus lhe propõe no aqui e agora da situação.[2]

 

Qual é, para quem abraça a fé cristã, a encruzilhada para assumir esse novo estilo de vida?

Trata-se do sacramento do batismo. Quem se dispõe a assumir esse sacramento está se comprometendo a percorrer os caminhos propostos por Jesus e abraçar fielmente o seu evangelho (cf. Rm 6,1-12). O indicativo proposto por Jesus passa a ser um imperativo para o batizado: “Pela fé e o batismo, o crente se incorpora a Cristo, mas o cristão tem de se apropriar dessa realidade através de sua obediência ativa. Assim, a justificação batismal acarreta consequências éticas reais para a vida do crente”[3].

 

3. Importância da consciência

Ao longo do século passado, não obstante as duas grandes guerras mundiais, houve intenso desenvolvimento do mundo moderno. Esse contexto trouxe estímulo à corrente ética personalista, defensora dos indivíduos. Também a teologia moral deixou-se alcançar por esse modo de pensar. Com a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II por parte de João XXIII, ao final dos anos 1950, tudo estava posto para que também a instituição oficial da Igreja católica desse uma resposta em consonância com “os sinais dos tempos”.

Tal resposta apareceu com a Gaudium et Spes. Há passagem relevante, nesse sentido, que afirma: “A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo…” (GS 16). Vê-se aí a enorme importância dada pelo Concílio Vaticano II às decisões individuais das pessoas.[4] Até então, o que trazia tranquilidade moral aos fiéis era o seguimento da norma. O importante era “enquadrar-se” nas leis. O que vigorava era a heteronomia moral. De agora em diante, as leis passam a funcionar como importantes subsídios, mas nunca como elementos decisórios. A última palavra é sempre dada pela pessoa, em consonância com seu contexto vital, seu desenvolvimento psíquico e sua situação particular. O que passa a vigorar é a defesa da autonomia moral.

E a Gaudium et Spes prossegue: “Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito de pecar” (GS 16). Admite-se claramente que o julgamento moral de uma pessoa, do ponto de vista teológico, não pode ser feito a todos do mesmo modo. Cada um tem seu próprio estágio de vida, que deve ser respeitado. Por outro lado, há também a lembrança de que todos os seres humanos têm o dever de se aprofundar ao longo de toda a vida para aperfeiçoar a voz da própria consciência. Nada de acomodação! Nessa decisão conciliar, renova-se a essência da mensagem ética de São Paulo: liberdade com responsabilidade! O Vaticano II atualiza o que o apóstolo Paulo recomendou em Romanos 12,2.

E quem não adere à fé cristã pode ser salvo?

Paulo tem palavras de esperança também para essas pessoas: “Os pagãos não têm Lei. Mas, embora não a tenham, se eles fazem espontaneamente o que a Lei manda, eles próprios são Lei para si mesmos. Eles assim mostram que os preceitos da Lei estão escritos em seus corações” (Rm 2,14s). A proposta de Jesus está aberta a todos! O que importa moralmente é agir segundo a voz da própria consciência, tendo sempre presente que, enquanto se vive, há a obrigação de aperfeiçoar essa voz, em consonância com o querer de Deus para o presente histórico de cada pessoa.

 

4. Compromisso com o outro

A teologia e a pastoral da América Latina abriram, nas últimas décadas, novas perspectivas também para a ética fundamental. Do personalismo defensor da autonomia do ser humano passou-se à valorização da solidariedade compassiva. Diante de tanto sofrimento e carência de milhões de seres humanos, levantou-se o grito profético de muitas pessoas.

O apóstolo Paulo estimula essa proposta de sensibilidade compassiva e atuante perante o rosto do outro: “Ainda que eu falasse línguas, a dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como bronze que soa… Agora, portanto, permanecem fé, esperança e caridade. A maior delas, porém, é a caridade” (1Cor 13,1.13).

Os ventos eclesiais pelos quais passamos não são nada animadores. Prefere-se percorrer caminhos mais suaves, acompanhados de letras de melodias menos transformadoras das desigualdades existentes. Em parte, isso se deve também à cultura das imagens na qual nos encontramos, “que trocou a reflexão pela emoção, o espírito crítico pelo espetáculo animado”[5]. Essa cultura estimula o individualismo, desarticulando iniciativas éticas dos que procuram se organizar para atender às necessidades dos outros. De qualquer modo, sempre há quem continue a acreditar no valor permanente da caridade compassiva.

Em meio ao crepúsculo do dever de um mundo hiperindividualista[6], também há lugar para iniciativas de pessoas mais ousadas.

 

Ousar é mover-se e agir com destemor. Ousar é desprender-se do lugar onde se está. Ousar é desamarrar-se, é lançar-se, é atirar-se a um projeto. É atitude corajosa, é ímpeto arriscado… Ousar é promover a dignidade da pessoa humana que está sendo violentada pela crueldade e envergonhada pela miséria. Ousar é abrir clareiras que permitem enxergar horizontes fecundos para o futuro da humanidade.[7]

 

Essa ousadia de abrir-se à alteridade exige desprendimento:

 

O caráter misterioso da experiência de Deus é um importante elemento de seu poder de sedução… Essa sedução “altera” radicalmente o homem: expropriando-o da segurança de todas as normalidades pessoais ou sociais, da possibilidade de prever o futuro e planejar o presente, arrastando-o para algo que parece ser loucura insana aos olhos do mundo… Ao viver e sofrer essa entrega e suas consequências, no entanto, o homem percebe que o que é loucura para o mundo é sabedoria de Deus (cf. 1Cor 1,18ss)… é perceber, como o apaixonado Paulo de Tarso, ter “perdido” até mesmo a própria identidade para reencontrá-la, renovada, cristificada, no rosto de amor que o possui e o habita por inteiro.[8]

 

 

5. Tempo de indiferentismo

Nos últimos anos, tem-se alastrado mundo afora determinada cultura defensora do indiferentismo. Livros que defendem o ateísmo são bastante veiculados. Se, à nossa volta, a imensa maioria das pessoas afirma crer, na prática vive-se infantilismo na fé. Essa atitude reflete-se também na moral cristã. Declarações oficiais da Igreja são relativizadas ou ignoradas até mesmo por pessoas com prática religiosa regular. A superficialidade religiosa reflete-se na superficialidade dos comportamentos morais.

Em instâncias que se autodenominam científicas, há defesa de mão única à ciência. Somente ela bastaria para a vida e o progresso do ser humano. Essa posição já conquistou muitos corações e mentes, mas sem deixá-los satisfeitos.

É a fé em Deus que humaniza o ser humano. Lançar bases em volta desse princípio ajuda o ser humano a ter esperanças num mundo melhor para mais gente. Uma sociedade só é sólida se os membros que a formam forem portadores de valores sólidos. Para isso é necessária a preocupação com os valores éticos que oxigenam a vida social.

Mesmo em meio a uma cultura que propaga o indiferentismo, é possível construir pontes de resistência. As propostas que nos vêm do apóstolo Paulo são importantes alavancas para o fortalecimento da caminhada. Partindo de tais propostas, torna-se menos árdua a missão de testemunhar a boa-nova de Jesus Cristo no hoje da história. Que este Ano Paulino nos anime a assumir esse desafio!



[1] Wayne Meeks. O mundo moral dos primeiros cristãos. São Paulo: Paulus, 1996, p. 120.

[2] B. Häring. Práxis cristã (moral fundamental). São Paulo: Paulus, v. 1, 1983, p. 51.

[3] Idem, pp. 52ss.

[4] Cf. Concílio Vaticano II. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001, p. 556. Documentos da Igreja, 1.

[5] Gilles Lipovetsky. A sociedade da decepção. Barueri: Manole, 2007, p. 57.

[6] Expressões defendidas por G. Lipovetsky em várias de suas obras, entre as quais: Le crépuscule du devoir. Paris: Gallimard, 1992; O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004; A era do vazio. Barueri: Manole, 2006.

[7] Juvenal Arduini. Antropologia: ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002, p. 40.

[8] Maria Clara L. Bingemer. Alteridade e vulnerabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, pp. 82 e 84. Cf. também Márcio Bolda da Silva. Rosto e alteridade: pressupostos de ética comunitária. São Paulo: Paulus, 1995.

Pe. Darci Luiz Marin, ssp