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Publicado em número 221 - (pp. 3-10)

Ressurreição em vez de reencarnação Resposta de esperança da fé cristã

Por Prof. Renold J. Blank

1. Mensagem bíblica de esperança: Deus ressuscita os mortos

O que acontece conosco depois da morte? Essa indagação existencial preocupa o ser humano desde que se tornou consciente de si mesmo e de sua condição de mortal. Em inúmeras tentativas míticas, filosóficas e religiosas, ele tentou responder a essa pergunta — desesperadamente às vezes, cheio de resignação em outros casos, ou repleto de esperança. A religião do Egito desenvolveu um culto refinado dos mortos, na Mesopotâmia mencionava-se um destino nefasto num mundo ameaçador do além, na Índia e na Grécia a crença girava em torno de construções filosófico-religiosas de um sistema de reencarnações. No contexto não cristão das elites no Império romano, a ideia da reencarnação espalhou-se sobretudo a partir do século III d.C., inspirada em primeiro lugar pela filosofia do neoplatonismo e de seu interesse pelos escritos de Platão e de Pitágoras[1]. Também no judaísmo tardio, encontramos certos grupos minoritários que acreditavam na reencarnação. O sábio Saadja Bem Josef Gaon (882-942) diz, no seu livro sobre as doutrinas e crenças da fé[2], ter encontrado pessoas declarando-se judias, mas acreditando na doutrina da metempsicose ou da migração das almas[3].

 

2. A resposta alternativa da Bíblia

Em oposição a todas essas concepções religiosas muito diversificadas, a Bíblia formula, no conjunto de seus livros, uma resposta bem diferente e alternativa. Conforme a visão geral, dos textos bíblicos, Deus dá ao ser humano a vida, e, no momento em que ocorre a morte, o ser humano morre na sua totalidade. Não há parte imortal nem alma imortal que se separa do corpo; quem morre é a pessoa inteira, porque Deus retirou dela a vida. Esse modelo se formulou de maneira muito drástica, sobretudo na época em que Israel entrou em contato muitas vezes conflituoso com o dualismo do mundo greco-romano. O Eclesiastes alerta que nenhum ser humano alcança a imortalidade por sua própria natureza ou porque haveria nela algo imortal. O ser humano alcança imortalidade unicamente porque foi Deus que o destinou à vida eterna. Sem esse agir de Deus, não haveria distinção nenhuma entre a morte do ser humano e do animal:

 

Pois é a mesma a sorte dos homens e a dos animais: tanto morre um como o outro, todos têm o mesmo alento. O homem, pois, não leva vantagem sobre os animais, porque tudo é ilusão. Todos vão para o mesmo lugar: todos vêm do pó e ao pó retornam” (Ecl 3,19-20).

 

Exatamente por causa dessa compreensão da morte, porém, formulava-se, já bem antes desse texto, a questão a respeito de se essa morte global realmente poderia ser o fim da pessoa. Essa questão é respondida não de uma vez, mas no decorrer de um longo processo de reflexões, em cujo centro encontramos a ideia de que Deus é o Deus da vida. Será que a morte pode ser mais forte do que ele? Ou será que este Deus, sendo um Deus fiel, deixará a pessoa simplesmente desaparecer na morte?

Com base em tais indagações formou-se, passo a passo, um novo conteúdo da fé: Deus é mais forte do que a morte. A sua fidelidade ao ser humano vai além da morte. E essa fidelidade manifesta-se no fato de Deus ressuscitar a pessoa que morreu. “Essa convicção cheia de esperança se desenvolve e se revela gradativamente no decorrer da história de Israel, não obstante as experiências catastróficas e traumáticas por que passou este povo”[4]. Um dos primeiros indícios da nova perspectiva encontramos pelo início do século VI a.C., na grande visão de Ez 37,1-14, sobre a ressurreição dos ossos espalhados numa planície.

 

 “A mão do Senhor estava sobre mim e o Senhor me levou em espírito para fora e me deixou no meio de uma planície repleta de ossos. Fez-me circular no meio dos ossos em todas as direções. Vi que havia muitíssimos ossos sobre a planície e estavam bem ressequidos. Ele me perguntou: ‘Filho do homem, poderão estes ossos reviver?’ E eu respondi: ‘Senhor Deus, tu é que sabes!’ E ele me disse: ‘Profetiza sobre estes ossos e dize-lhes: Ossos ressequidos, ouvi a palavra do Senhor!’ Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Vou infundir-vos, eu mesmo, um espírito para que revivais. Dar-vos-ei nervos, farei crescer carne e estenderei por cima a pele. Incutirei um espírito para que revivais. Então sabereis que eu sou o Senhor.”

 

Mesmo não sendo um texto que fala sobre a ressurreição do indivíduo, a visão nele apresentada incita a esperança de que a morte não será o destino último do povo.

Em termos mais claros, a esperança na ressurreição individual está expressa no texto de Is 26,19, datado do século IV a.C.:

 

 “Teus mortos reviverão, os cadáveres ressurgirão! Despertai e alegrai-vos, vós que habitais o pó!”

 

O pressuposto religioso-cultural desse texto e de tantos outros é sempre a convicção de que a morte afeta a pessoa na sua totalidade. Ela, depois de morrer, continuará existindo como a sombra do que era, num lugar chamado Xeol.

Deus, porém, é Senhor também do Xeol, de tal maneira que o justo será resgatado por ele até daquele lugar, enquanto o ímpio, o pecador e inimigo de Deus, simplesmente desaparece no esquecimento.

A esperança de que Deus resgata o justo exprime-se em muitos Salmos, dos quais um exemplo típico é o Sl 49,16:

“Deus me resgatará do abismo (do Xeol), sim, ele me arrebatará”.

 

Por trás de tais esperanças encontra-se a profunda fé que Deus, sendo Deus da vida, é mais forte do que a morte. E, sendo também fiel, é inimaginável que deixe o justo na morte. Ele o ressuscitará.

A partir do século II a.C., esse conteúdo da fé exprimiu-se de maneira cada vez mais clara. Dn 12,2 formula a certeza de que o destino dos justos não pode ser a morte, mas sim uma nova vida com Deus.

 

 “Muitos dos que dormem debaixo da terra despertarão, este para a vida eterna, aquele para o vitupério, para a infâmia eterna.”

 

Tal concepção encontramos também no segundo livro dos Macabeus (por exemplo: 2Mc 7,22ss e 7,27-29).

Sob o impacto das perseguições e dos sofrimentos do século II, veio à tona, progressivamente, a ideia de que Deus não ressuscitará só os justos, mas todos, para que, assim, possa ser feita justiça. Tal expectativa radical de uma ressurreição para todos formula-se, por exemplo, no livro de Henoc, escrito na Etiópia, no século I d.C. Ali podemos ler no cap. 51,1:

 

 “Nestes dias, a terra devolverá o que foi confiado para ela; e o Xeol devolverá o que recebeu e o inferno devolverá o que deve.”

 

Em contraposição essa fé na ressurreição que marca a religião judaica, as elites do império greco-romano foram muito mais influenciadas pelo pensamento filosófico grego. Sob a influência das obras de Pitágoras e de Platão, desenvolveu-se na cultura greco-romana a convicção de que o destino humano será ligado a um processo de sucessivas reencarnações. Essa crença consolidou-se nos círculos não cristãos do império sobretudo a partir do século III d.C., por causa do muito influente neoplatonismo e da gnose.

 

3. Para a fé cristã, a crença na ressurreição baseia-se num fato histórico

A convicção cristã, porém, apesar de todas as influências também sofridas por parte da filosofia grega, continua dentro da linha da fé bíblica do Antigo Testamento, afirmando que Deus ressuscitará os mortos.

Essa afirmação, para a fé vetero-testamentária, era de pura esperança. A partir de Jesus Cristo, porém, ela se baseia num fato histórico-empírico — que é a ressurreição desse mesmo Jesus Cristo, depois de ele ter morrido na cruz. Esse novo fato torna-se de tal maneira dominante que não há, nos textos bíblicos do Novo Testamento, o mínimo interesse em falar de reencarnação. Eles têm algo melhor: transmitem uma mensagem diferente e tão convincente, que toda a referência a alguma crença reencarnacionista torna-se simplesmente supérflua.

A novidade que transmitem culmina nisto: o próprio Deus confirmou aquilo que a fé em Israel já tinha formulado como esperança. O próprio Deus confirmou ser um Deus que ressuscita mortos, e essa confirmação deu-se pelo fato de ele ter ressuscitado Jesus[5]. Aliás, porque Deus o ressuscitou, a causa de Jesus pôde continuar dentro de um contexto cultural em que a crucificação significava o fim de toda credibilidade, um fracasso total e até o sinal visível de que o próprio Deus rejeitou a pessoa crucificada (cf. Dt 21,23). De um crucificado, naquela época, simplesmente não era mais possível falar. Um crucificado havia se tornado uma não pessoa, nulidade pela qual ninguém mais se interessava — muito menos por aquilo que o crucificado tinha proclamado e pregado.

Mas, apesar dessa situação sócio-histórica, a causa de Jesus continuou. Por quê?

Porque depois da crucificação aconteceu algo tão chocante, tão novo, tão absolutamente deslumbrante, que a causa de Jesus podia continuar apesar da cruz. Apesar do escândalo que tal fato produziu, voltou-se a falar de Jesus. Encontramos nesse fato uma prova sociológica de que Deus ressuscitou Jesus.

Se Deus não tivesse ressuscitado Jesus, jamais alguém naquela época cometeria a loucura de continuar falando dele — uma vez que todo crucificado era tido como maldito pelo próprio Deus (cf. Dt 21,23). Desse fato, a maioria dos cristãos, hoje, não têm mais a mínima ideia e, com isso, esquecem que temos tal prova da ressurreição. Esquecem isso sobretudo diante do discurso reencarnacionista, que, em alta voz, proclama poder provar a reencarnação. O contrário é verdadeiro!

Não há prova científica da reencarnação. O mesmo se diga da assim chamada “terapia de vidas passadas”. Tal procedimento pode ter o seu valor terapêutico, assim como tantas outras terapias o têm, mas não é prova da reencarnação. Aquelas vidas passadas, das quais os pacientes se lembram, podem, passo a passo, ser explicadas, recorrendo-se a mecanismos psíquicos ou parapsíquicos. Sobre isso já se encontram informações no livro O homem e seus símbolos, do grande pai da psicologia analítica, Carl Gustav Jung[6].

Até o famoso e muito citado pesquisador espírita Ian Stevenson, depois de ter pesquisado em torno de 2.500 casos de recordações espontâneas de vidas passadas, querendo provar a reencarnação, exprime-se de maneira muito prudente. Ele fala de indicações que poderiam sugerir uma explicação reencarnacionista. De todos os casos analisados, ele apresenta 20 em 1966 e mais 44 nos anos 1975-1983 como “possíveis”, sem nunca falar de prova[7].

Não há provas para a reencarnação. O que pode ser provado, isto sim, é o fato da ressurreição de Jesus, porque sem ela, jamais alguém, hoje, falaria dele[8].

A proclamação da ressurreição de Jesus tornou-se o primeiro credo da Igreja primitiva, e os primeiros seguidores do Nazareno se consideraram testemunhas vivas dele. Tão convicto foi esse testemunho, que todos deram a sua vida por causa dessa sua convicção.

 

 “Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos. Disso nós somos testemunhas” (At 3,15).

 

Baseado na total convicção de que Deus, de fato, ressuscitou Jesus, Paulo — e com ele toda a Igreja primitiva — exclamou aquilo que se tornou cerne e núcleo da boa nova desta Igreja:

 

 “Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará a nós pelo seu poder” (1 Cor 6,14).

“… Quem ressuscitou Jesus Cristo dos mortos também dará vida a vossos corpos mortais por virtude do Espírito que habita em vós” (Rm 8,11).

 

Diante de tal novidade, simplesmente não havia mais interesse por outras concepções. A ideia de voltar a viver muitas e muitas vidas terrenas não despertava interesse nenhum, diante da perspectiva apaixonante de ser ressuscitado, para continuar existindo em dimensões a respeito das quais o próprio apóstolo Paulo, balbuciando e buscando palavras, exclama que

“nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu, nem jamais penetrou no coração do homem o que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9).

 

É essa a razão pela qual nos textos bíblicos não encontramos referência alguma à reencarnação da alma humana — de maneira que ela, depois da morte, voltaria em outra época e com outro corpo para cumprir novas etapas de vivência. Tal proposta não despertava interesse algum. Tal ideia não exercia atratividade nenhuma diante da perspectiva nova, apaixonante, da ressurreição. Por causa disso, a Bíblia não fala de reencarnação. Sua mensagem é melhor.

 

4. Qual é a diferença entre ressurreição e reencarnação?

 

4.1. A ressurreição

A respeito do significado da ressurreição, é importante frisar ainda que se trata de ação exclusiva de Deus. Depois de uma única vida vivida pelo ser humano aqui na terra, Deus transforma-o em nova forma de existência junto dele. A diferença entre nossa forma nesta única vida terrena e a nova forma de existir como ressuscitados é descrita por Paulo por meio da imagem de uma semente que se transforma em planta[9]. Deus transforma tudo aquilo que somos numa nova forma. A essa transformação damos o nome de ressurreição. Ela é obra exclusiva de Deus, realizada em cada um de nós no momento de nossa morte:

 

 “Mas alguém perguntará: como ressuscitam os mortos? Insensato! O que semeias não nasce sem antes morrer. E, quando semeias, não semeias o corpo da planta, que há de nascer, mas o simples grão, como o de trigo ou de alguma outra planta. E Deus lhe dá o corpo segundo quis, a cada uma das sementes o próprio corpo” (1 Cor 15,35-38).

 

É essencial ter bem claro mais um fato, expresso por Paulo no texto acima. O apóstolo não adota a ideia grega de uma alma que se separa, na morte, do corpo. Conforme Paulo, Deus ressuscita o homem inteiro, corpo e alma, no momento de sua morte. Nesse momento, a pessoa inteira é transformada. Nessa transformação, ela sai de suas ligações com o tempo e entra numa dimensão sem tempo. A essa dimensão chamamos de eternidade. A entrada na eternidade significa para a pessoa humana o final dos tempos. O tempo, para ela, não existe mais, e é esse o momento da ressurreição. Seria falso, então, compreender essa ressurreição como o último acontecimento de uma evolução, que primeiro passou por inúmeras reencarnações. É exatamente isso, porém, que muitos adeptos cristãos do reencarnacionismo imaginam.

 

4.2. A reencarnação

Em contradição frontal com essa concepção bíblica da ressurreição, a doutrina da reencarnação pressupõe que a pessoa humana, no decorrer da história, deva passar por inúmeras vivências terrenas. Essas vivências, diz-se, acontecem em épocas diferentes e em corpos distintos. Elas seriam possíveis porque uma alma espiritual seria capaz de, na morte, separar-se do corpo e existir numa forma de espírito.

Encontramos aqui mais uma das bases problemáticas do reencarnacionismo. Ele se fundamenta numa visão de ser humano superada claramente pela antropologia, pela psicologia e pela psiquiatria. Todas essas ciências veem a pessoa humana, hoje, como um ser multidimensional complexo. É muito simplista imaginar que, na morte desse ser, uma parte espiritual, chamada alma, se separa de um invólucro, chamado corpo. Essa era a maneira pela qual se tentou explicar o complexo fenômeno da morte no pensamento filosófico-religioso grego do século VII a.C. Entretanto, hoje sabemos mais sobre o ser humano. Aquele modelo, hoje, está superado. É interessante, aliás, lembrar que a Bíblia nunca viu o ser humano assim. Para a Bíblia, ele é unidade indivisível, e tudo o que lhe acontece, acontece à totalidade de seu ser, nunca somente a uma alma ou a um corpo. Esse é mais um dado importante de nossa fé bíblica, que muitos cristãos desconhecem até hoje.

Conforme a concepção reencarnacionista, porém, esse espírito desencarnado na hora da morte, depois de anos, de séculos ou de milênios, encarna-se num novo corpo e experimenta mais uma vivência humana e depois mais outras. O objetivo de todas essas vidas repetitivas, assim o formula o espiritismo kardecista, é uma progressiva evolução daquele espírito. Ele limpa o seu carma, para chegar assim a um nível de evolução plena. Quantas vivências terrenas serão necessárias para alcançar esse nível, ninguém sabe. Mas quem pensa que serão só algumas engana-se: Já Gabriel Delanne, um dos teóricos do espiritismo, num livro publicado pela Federação Espírita Brasileira em 1937, fala de “uma longa série de encarnações terrestres”[10]. Allan Kardec insiste que “o progresso dos espíritos faz-se gradualmente e, algumas vezes, com muita lentidão”[11]. A essas encarnações terrestres acrescentam-se ainda outras, das quais o espiritismo pensa que acontecerão em outros planetas do universo[12]. É só através dessa suposição, aliás, que o reencarnacionismo consegue responder a mais uma das muitas objeções críticas que se lhe apresentam. Tal objeção parte da afirmação de que os supostos espíritos encarnados, vivência após vivência, evoluem e se tornam seres melhores.

Como esse processo de sempre novas reencarnações desses espíritos já estaria em curso há milhares de anos, depois de tantos ciclos reencarnacionistas, hoje não deveríamos encontrar neste mundo muitas pessoas superdesenvolvidas? Já não seria tempo de encontrar pessoas que teriam alcançado os últimos níveis de sua evolução?

Depois de muitos milhares de anos, o mundo deveria estar repleto de tais pessoas. Mas por onde andam esses seres superevoluídos? Há quem diga que estão em outros planetas — afirmação que não pode ser comprovada.

Levando em consideração a ideia de a evolução do espírito ser, no fundo, ilimitada, chega-se a admitir uma infinidade de sempre novas reencarnações. Fato, aliás, que muitos dos adeptos da doutrina reencarnacionista desconhecem. Da mesma maneira, também ignoram muitas vezes que, a bem da verdade, não há céu para a doutrina da reencarnação. Sendo ilimitados os ciclos de sempre novas possíveis evoluções, o suposto espírito desencarnado, apesar de não mais ficar sujeito à necessidade de reencarnar[13], nunca chega realmente a um fim que significaria a sua felicidade plena. Há sempre mais um passo evolutivo possível. Consequentemente, diz-se na teoria do reencarnacionismo kardecista que a felicidade, à qual o espírito chega, é a oportunidade de ter sempre novos passos evolutivos diante de si. A rica, maravilhosa e tão consoladora mensagem sobre uma convivência de amor entre a pessoa humana e Deus se reduz, assim, a uma pura experiência intelectual. Projeta-se para um futuro inimaginavelmente longe toda aquela ternura infinita de um encontro com Deus, depois de uma única vida, descrito pelo Apocalipse de João por meio de imagens comoventes como estas:

 

 “Eis a tenda de Deus entre os homens. Ele levantará sua morada entre eles e eles serão seu povo, e o próprio Deus-com-eles será o seu Deus. Enxugará as lágrimas de seus olhos e a morte já não existirá nem haverá luto nem pranto nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Ap 21,3-4).

 

Fascinados pela ideia de possíveis evoluções, muitos cristãos esquecem ou não percebem a problemática da concepção evolucionista defendida no reencarnacionismo. Esquecem também que, em nossa própria religião, conhecemos uma dinâmica evolutiva muito mais complexa e atraente do que a oferecida pela hipótese da reencarnação.

 

5. Nossa religião conhece a concepção de uma evolução dinâmica

Infelizmente, a concepção cristã de uma evolução que não acabe na morte oculta-se por trás de um nome medieval que a maioria, hoje, não compreende mais: purgatório.

Muitos, quando ouvem essa palavra, ficam indiferentes. Mas “purgatório nada tem que ver com as imagens medievais de uma câmara de torturas. O nome purgatório designa um processo dinâmico e central que acontece no momento exato do primeiro encontro da criatura com Deus. Ao longo deste processo, a pessoa humana pode evoluir de tal maneira que possa chegar à plenitude da vida”[14].

O cardeal Carlo Maria Martini formulava essa possibilidade de evolução na morte no sétimo simpósio dos bispos europeus, já em outubro de 1989: “Não é que o homem moderno, tão marcado pelo estresse, poderia descansar quando aprende que, na fé a na confiança num Deus misericordioso, pode ir para a morte, sendo incompleto, porque o amor de Deus lhe dará a paz, salvando-o em plenitude, purificando-o assim como se purifica o ouro… (cf. 1 Cor 3,11-15)?”[15].

É fato que aquilo que a palavra purgatório realmente quer exprimir se apresenta como a grande verdade oposta à doutrina da reencarnação. Ela diz que perdão e conversão às portas da morte são possíveis, que o ser humano não deve fazer tudo sozinho, que Deus, na morte e depois de uma única vida terrena, oferece-lhe nova e dinâmica possibilidade de conversão e evolução. Evolução que permite a esse ser chegar à plenitude de suas potencialidades. Evolução que possibilita vida plena.

Nessa evolução, a pessoa humana não é deixada por conta de si mesma, dependendo unicamente de suas possibilidades. Pelo contrário, será convidada por Deus à realização, junto com ele e ajudada por ele, para que se torne capaz de aceitar tudo aquilo que o Deus de amor quer lhe oferecer. Tal evolução não se realiza por meio da repetição de novas vivências terrenas. Ao contrário, é evolução dinâmica por dentro de novas dimensões nunca antes vividas. Dimensões que se abrem para novos horizontes, em cujo centro a pessoa humana encontra o seu parceiro de amor, Deus, fim último e definitivo de toda a evolução.

É esta a grande e profunda verdade da religião cristã: depois de uma única vida terrena, Deus oferece a toda pessoa, na morte, uma última possibilidade de evolução e conversão. Essa evolução lhe abre dimensões novas, que vão infinitamente além de tudo aquilo que a repetição de uma vida terrena poderia oferecer. Ela abre aquilo que chamamos céu[16].

 

6. Mas não há textos bíblicos que sustentam a reencarnação?

Essa pergunta aparece sempre de novo, apesar de sua resposta já ter sido formulada tantas vezes. A Bíblia não se interessa pelo tema da reencarnação, empenha-se em testemunhar a ressurreição. Essa é a sua grande mensagem de consolo e de esperança. Quando se analisam os textos citados para provar um pensamento reencarnacionista na Bíblia, nota-se sempre o mesmo erro: os textos foram tirados de seu contexto e interpretados de maneira errada, sem levar em consideração aquilo que a exegese diz sobre o seu significado. Em vez de ouvir aquilo que os especialistas da interpretação bíblica descobriram, constrói-se nova interpretação para sustentar a tese reencarnacionista. Tal procedimento, porém, contradiz toda a prática científica.

Na verdade, não há hoje nenhum exegeta de peso que interpretaria os textos geralmente mencionados como textos que falam de reencarnação[17]. O grande tema da Bíblia é a ressurreição, não a reencarnação.

 

7. A teoria da reencarnação está em contradição com elementos fundamentais da doutrina cristã

Às vezes, ouve-se que a religião cristã teria proclamado a ideia da reencarnação até o século VI. Quando do conflito com as teses de Orígenes, teria purgado os seus textos, de tal maneira que, depois do Concílio de Constantinopla, em 553 d.C., teria eliminado até dos textos bíblicos todas as referências à reencarnação.

De novo devemos recorrer à ciência. Nenhum historiador e nenhum exegeta, hoje, sustentam tese semelhante a essa. Apesar disso, ela está sendo repetida. Tese errada, sem fundamento algum, negada pela ciência. O que na realidade aconteceu no século VI é que o Sínodo da Província de Constantinopla, em 553 d.C., e mais tarde o Sínodo de Braga, em Portugal, em 561 d.C., rejeitaram a ideia de uma preexistência da alma, antes de sua vida terrestre. Tal rejeição significa a rejeição de mais um dos pressupostos básicos de toda a teoria da reencarnação: a ideia de uma preexistência da alma.

A mais acentuada oposição entre a doutrina da Igreja e a teoria da reencarnação, porém, acha-se naquilo que é o centro da concepção reencarnacionista, assim como está sendo formulada hoje pelo espiritismo. Nele, enfatiza-se muito a ideia da evolução. Evoluindo, a pessoa humana limpa o seu carma e se aproxima progressivamente de níveis cada vez mais elevados. Tais evoluções, porém, realizam-se sempre pelo esforço da própria pessoa. É ela que, por meio de suas ações e de seu agir, deve limpar o seu carma, responsabilizar-se e pagar. Mesmo quando se admite ajuda de outros espíritos, fica descartado rigorosamente aquele elemento que fez a religião cristã ser uma “boa mensagem”. Fica descartada a graça divina. Nada se recebe de graça, nada se perdoa, nada se esquece. Caso queiramos falar de salvação, essa não seria, em última análise, a obra de um Deus que ama, mas o resultado do esforço da própria pessoa. Aquela doutrina que, aos olhos de muitos cristãos, se apresenta inicialmente como uma boa alternativa contra as ameaças de uma religião cristã erroneamente interpretada, revela-se bem mais ameaçadora do que a mais ameaçadora interpretação das verdades cristãs.

Muitos adeptos do reencarnacionismo optaram pela crença na reencarnação porque acharam nela uma resposta aos seus anseios diante dos sofrimentos deste mundo. Outros começaram a defender a reencarnação por achar terem encontrado aí a possibilidade de escapar de uma religiosidade cristã experimentada como ameaça ou medo. Diante dessa realidade, torna-se urgente para nós redescobrir e reativar aquilo que, na sua época, fez de nossa religião uma “boa nova”, uma boa mensagem que era atraente exatamente porque não era ameaçadora.

 

8. Redescobrir as bases da boa nova cristã

Não podemos negar que, no decorrer dos séculos, a nossa religião muitas vezes foi deturpada, transformando-se em mensagem inspiradora de medo. Não nos ateremos aqui à busca das razões desse processo histórico. É suficiente lembrar que, até hoje, para muitos cristãos, Deus em nada se identifica com o Pai cheio de ternura, assim como Jesus o apresentou. É verdade que muitos desses cristãos esqueceram ser uma das verdades centrais de nossa fé a crença de que Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Se ele, porém, é verdadeiro Deus, então temos nele a clara resposta de como Deus é. Deus é assim como Jesus é, porque Jesus é Deus.

Olhando para a vida e a mensagem de Jesus, não encontramos em lugar algum um Deus castigador, punitivo, diante do qual se deve ter medo. O que descobrimos é um Deus misericordioso, um Deus que perdoa, um Deus que corre atrás da ovelha que se perdeu. Recuperando essa imagem do Deus verdadeiro, podemos superar aquelas inúmeras angústias que se tornam muitas vezes o motivo inconsciente da decisão de aderir à doutrina da reencarnação.

A grande tarefa de uma nova evangelização no século XXI consiste, consequentemente, nisto: mostrar que a religião cristã, assim como é apresentada pela nossa Igreja, não é algo aterrorizante. Conscientizar que Deus não é um Deus legalista, que contabiliza transgressões de mandamentos e leis. Devemos reacender um novo amor por Deus cujo coração está inquieto enquanto não estamos amparados no seu amor.

Deus nos chama para junto de si não num futuro muito distante e depois de inúmeras vivências terrenas. Deus nos quer reunir consigo porque nos ama. Que amante seria esse que deixa passar um tempo indefinido de sempre novas reencarnações para, enfim, poder abraçar quem ama? Uma única vida terrena basta, porque Deus nos espera. Por isso nos ressuscitará depois desta única vida para uma união eterna de amor com ele, “para que o homem seja amparado no amor de Deus, e — embora hesitando, tenho a coragem de o formular — para que Deus seja amparado no amor do ser humano. Eis o nosso último fim e nosso destino final: ser amparado no amor, na plenitude da vida que é o próprio Deus, ressurreição e vida para todos nós”[18].

À medida que os cristãos redescobrirem essa verdade básica de sua fé, a atratividade da reencarnação irá desaparecer por si mesma, porque no seu lugar será redescoberta a alternativa grandiosa, proposta a todos nós: ressurreição depois de uma única vida.

 



[1] Cf. Norbert Bischofberger, Werden wir wiederkommen?, Mainz, Grünewald, 1996.

[2] Cf. Saadja Gaon, The Book of Beliefs and Opinions, New Haven, Yal University Press, 1948.

[3] Saadja Gaon, op. cit., p. 259.

[4] Renold J. Blank, A morte em questão, São Paulo, Loyola, 1995, p. 101.

[5] Sobre o significado teológico da ressurreição de Jesus, cf. Renold J. Blank, “O significado escatológico da ressurreição de Jesus”, em Revista de Cultura Teológica nº 20.

[6] Carl Gustav Jung, Der Mensch und seine Symbole, Olten-Freiburg, 1968, p. 37.

[7] Cf. em termos de exemplo: lan Stevenson, Cases of the Reincarnation Type, vol. 1-4, University of Virginia Press, Charlottesville (1975-1983).

[8] Para uma apresentação detalhada daquilo que aqui está sendo chamado “a prova sociológica da ressurreição de Jesus”, cf. Renold J. Blank, Reencarnação ou Ressurreição, São Paulo, Paulus, 1995, pp. 89-105.

[9] Cf. 1Cor 15,35ss.

[10] Gabriel Delanne, A reencarnação, Rio de Janeiro, 1992, p. 67; também: Allan Kardec, O que é o espiritismo, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1990, pp. 26, 96.

[11] Allan Kardec, op. cit., p. 106.

[12] Cf., por exemplo, Allan Kardec, O céu e o inferno, Araras, Instituto de difusão espírita, 1991, p. 8.

[13] Cf. Allan Kardec, O céu e o inferno, pp. 56,98.

[14] Renold J. Blank, Reencarnação ou Ressurreição, p. 117.

[15] Citado por Questions Actuelles, Le point de vue de l’église (O ponto de vista da Igreja) nº 2, maio, 1998, p. 27.

[16] Sobre o purgatório e suas várias dimensões, cf. Renold J. Blank, Escatologia da Pessoa, São Paulo, Paulus, 2000, pp. 192-242.

[17] Uma correção detalhada dos textos, geralmente apresentados erroneamente como textos que sustentam a reencarnação, encontra-se em Renold J. Blank, A morte em questão, São Paulo, Loyola, pp. 107-121.

[18] Renold J. Blank, Auferstehung oder Reinkarnation, Mainz, Grünewald, 1996, p. 159.

Prof. Renold J. Blank