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Publicado em número 203 - (pp. 2-8)

Espiritualidade para os tempos atuais

Por Pe. J. Marcos Bach, sj

1. Espiritualidade cristã

Precisamos rever os conceitos básicos da espiritualidade? Ou podemos continuar usando a mesma linguagem, os mesmos princípios e os mesmos parâmetros e critérios de aferição de tempos passados?

Não há área do saber em que não esteja presente a consciência de que é preciso mudar. Só representantes de entidades culturais muito conservadoras dão-se por satisfeitos com o que o passado lhes legou.

No terreno religioso sua convicção se apoia na crença de que no final do sexto dia o Criador deu a sua obra por acabada, completa e perfeita.

Por cima de nossas cabeças Deus colocou o firmamento, uma abóbada misteriosa destinada a fixar as estrelas em seus respectivos lugares.

Sob os pés o Criador colocou a terra firme, com a finalidade de dar ao homem um apoio logístico, em meio às águas irrequietas dos oceanos.

A Terra era vista como um lugar, onde cada qual tinha por sua vez o seu lugar. Era muito importante que cada pessoa ocupasse o seu lugar e se contentasse com o que lhe fora destinado pelo Criador.

O conceito de firmeza era dominante como critério de fidelidade ao plano de Deus. Tudo tinha que ser sólido para ser confiável. Sólido como uma rocha, dizia-se.

Era esse o mundo em que cristãos, como Descartes e Newton, acreditavam. Viam assim a Igreja à qual pertenciam.

O universo deles era perfeito e funcionava como uma boa máquina. A sociedade humana também era vista assim. Sua finalidade era produzir tipos humanos adequados às diversas funções e necessidades do corpo social. Cada indivíduo era considerado membro dessa sociedade maior à semelhança dos membros e órgãos do corpo humano.

Tanto o universo físico como o social eram vistos como partes e peças de uma grande máquina. Um gigantesco Relógio — diria Leibniz.

A unidade desse conjunto todo, composto de partes aparentemente contraditórias, como a matéria (res extensa!) e os pensamentos (mente!), era mantida pela vontade do Criador, dizia Descartes.

Cabe à Divina Providência garantir a coesão das peças e o seu bom funcionamento. Características próprias e inseparáveis da cosmovisão mecanicista é a impossibilidade de unir entre si espírito e matéria. Máquinas não têm alma nem necessitam dela.

Se a alma humana não necessita da matéria para se realizar como espírito, o universo material, em compensação, não precisa da mente do homem para evoluir e progredir.

Dessa concepção nasceu um tipo de espiritualidade essencialmente dualista e mais inimiga do corpo do que parceira.

É essa espiritualidade, muito mais pagã do que cristã, infiltrada de concepções maniqueístas, que está sendo questionada.

De um lado por correntes espiritualistas esotéricas, importadas do Oriente pré-cristão. E do outro lado pelas concepções da moderna física. A teoria da relatividade de Einstein, assim como os conceitos associados à teoria quântica contribuíram para abalar em seus fundamentos as teorias anteriores.

Já não nos é mais permitido representar o universo como um edifício, construído com tijolos, os átomos, artificialmente unidos e mantidos em unidades maiores por meio de um poder superior e externo, o poder conservador de Deus. Temos que mudar nossos critérios de interpretação, se queremos acompanhar o ritmo do pensamento científico. À primeira vista parece absurdo submeter o progresso da reflexão teológica à evolução do pensamento científico. Nada há, no entanto, de herético nessa sugestão.

O conhecimento científico do universo pode fornecer à inteligência humana conhecimentos e insights tão preciosos quanto as Escrituras Sagradas. Deus se revela e se manifesta primariamente através da obra de suas mãos. Se essa obra é uma flor, uma fruta ou o sorriso de uma criança, isso pouca diferença faz.

Além da palavra revelada de Deus, existe outra codificada, à espera de quem a decodifique.

 

2. Paradigma holístico

O novo paradigma, oposto ao mecanicista, é chamado de holístico porque concebe o universo como um todo (holos, em grego) uno e individual, em lugar de concebê-lo como um conjunto de fragmentos separados, frouxamente ligados entre si.

O universo é um todo indivisível. A natureza é um todo igualmente indivisível. Nela cada ecossistema é o todo em porção menor. O que definimos como parte, nada mais é do que uma reprodução menor de um todo maior.

O holograma espelha essa verdade como nenhuma outra realidade. Num holograma não há partes: cada segmento, por pequeno que seja, reproduz o holograma todo. É assim que cientistas como Capra e Bohm, ambos físicos atômicos, concebem o universo.

Essa é uma concepção que os sábios do Antigo Oriente já conheciam. O Taoísmo chinês interpretava o universo dessa forma. No mundo ocidental ela foi substituída aos poucos pela cosmovisão dualista.

Torna-se cada vez mais difícil sustentar a distinção entre matéria viva e matéria morta. Toda matéria é viva até certo ponto, porque se autossustenta. Na opinião de biólogos de renome, a gaia, a mãe Terra, é um organismo vivo.

Se a essência da matéria é espiritual, quanto mais deve sê-lo um corpo vivo. Até uns poucos decênios atrás, predominava entre biólogos a crença de que a biosfera não era mais do que uma camada fina, cobrindo apenas a superfície do nosso planeta. Hoje se sabe da presença de bactérias vivas no fundo dos oceanos, no interior de vulcões, no interior de rochas e de espessas camadas de gelo. No meio de ácidos sulfurosos já foram encontradas, lépidas e com boa saúde, estas pequenas portadoras de vida que são as bactérias.

A vida é muito mais teimosa e inteligente do que se pensava. Possui uma extraordinária capacidade de adaptação. Não se fixa numa única forma. E mais do que isso: muda de forma com rapidez incrível. A lentidão com que nossos cientistas avançam em seus laboratórios, dá ao vírus HIV anos-luz de vantagem sobre os que pretendem erradicá-lo. A incapacidade de aproveitar o tempo útil sempre acaba sendo fatal para a sobrevivência de uma espécie. Isso vale também para o homem, tanto no plano individual quanto no social.

Progredir sem mudar é tão absurdo quanto avançar sem sair do lugar. Em nossos dias são precisamente as instituições religiosas as que menos se dispõem a operar mudanças. Quem quer ingressar no futuro e participar das promessas que lhe são reservadas, tem de ter a coragem de romper com o passado.

Abraão, pai de uma nova geração de “filhos de Deus”, recebeu juntamente com a promessa a ordem de “sair de sua terra”.

Jesus não convidou seus discípulos a que permanecessem fiéis à religião judaica.

Quem quer evoluir e progredir tem de ter a capacidade e a coragem de romper com o passado. A vida é mestra na arte de ultrapassar o passado e inaugurar tempos novos.

O Reino de Deus proposto por Cristo pode ser visto como uma espécie de estuário cósmico, uma espécie de vertente histórica. O Reino de Deus é menos um ponto de chegada do que um ponto de partida. Falando desse Reino, Jesus deixou claro: ele está no meio de vós! Já foi inaugurado! Onde? No interior do coração daqueles que depositam o melhor da sua fé e da sua esperança nas promessas de Jesus.

Um cristão se reconhece antes de mais nada no modo como organiza seu próprio futuro, como no grau de confiança que deposita no futuro da humanidade. É indiferente à existência de Igrejas, à medida em que representam mundos separados. Um cristão sabe que só merecem o nome de valores cristãos os que contribuem para unir. Anticristão é todo pensamento ou atitude destinados a justificar separações totalmente incompatíveis com o mandamento do amor, fundamento de toda autêntica “catolicidade” eclesial cristã.

O cristianismo é um fenômeno histórico-cultural que ainda não conseguiu explicar à humanidade a razão de ser de sua existência.

 

3. Biosfera e noosfera

O ser humano se distingue do animal por viver simultaneamente em quatro esferas distintas: a geosfera (o chão), a atmosfera (o ar), a biosfera (a esfera da vida) e a noosfera (a esfera do pensamento). Essas esferas se interpenetram e ao mesmo tempo pertencem a universos diferentes, irredutíveis entre si.

A evolução físico-biológica do homo sapiens é um processo em fase de acabamento qualitativo. O cenário da evolução do homem será de agora em diante a noosfera. De momento é esta última a esfera menos evoluída e mais descurada de todas.

O homem como ser pensante surgiu na face do planeta em época relativamente recente: há 300.000 (trezentos mil) anos, ao que parece. Não admira, pois, que sejamos ainda tão bisonhos na arte de pensar.

Sabemos fabricar instrumentos maravilhosos, mas não sabemos o que fazer com eles. Cultivamos a arte do pensamento útil e correto, e esquecemos que o sentimento é tão inteligente quanto a própria razão. Nosso cérebro possui dois hemisférios, um dos quais ser destina à sensibilidade e ao sentimento. O conhecimento é sempre fruto de uma experiência interior, o resto é informação, dizia Einstein. O homem é infinitamente mais do que máquina ou animal pensante. A verdade não é apenas uma questão de fé. É, em sua essência, uma forma de amor. É isso que Cristo veio anunciar. E tudo isso deve tomar em conta quem quer ter uma ideia de como vai ser o futuro espiritual da humanidade.

 

4. Pessimismo antropológico

Que o homem pode ser bom ou mau, isso todos nós sabemos. O que não sabemos é como explicar o fenômeno.

De um lado estão os que atribuem a Deus tudo o que de bom há no homem. Mas o que nele há de mau corre por conta e responsabilidade da própria humanidade. Deus é inocente, o culpado único é o homem: é o que dão a entender! O culpado maior chama-se Adão. E sua cúmplice chama-se Eva. Tudo começou no paraíso e através de um ato de rebeldia. Pecar é desobedecer e o oposto do pecado é a obediência. Tudo isso aprendi no catecismo, quando criança.

Cristo veio para corrigir esse modo de interpretar a origem do pecado. O pecado existe, mas não é o que os penitentes contam ao padre no confessionário. É muito pior do que uma desobediência ou um simples desvio do caminho certo (hamartia, na versão grega do Antigo Testamento) ou apenas, um erro. É traição, vilania, ruptura com a fonte da vida espiritual que é o Amor. É um atentado de “lesa-majestade Divina”.

A maioria dos “pecados” fustigados pelos moralistas de plantão não possuem a malícia, sem a qual o pecado deixa de ser pecado. Falta, à maioria dos pecadores, a liberdade psicológica e moral, além da capacidade de medir as consequências do que fazem.

É pena que se fale tanto sobre moral e tão pouco sobre espiritualidade. Comparada com a falta de amor, a falta de moral e o desapreço por valores éticos, chega a ser inofensiva. O que torna uma pessoa livre e consciente da sua verdadeira missão na terra é o amor com que ama, não o que prega, mas não pratica. A moral não tem o condão mágico de tornar o homem melhor, mais humano e mais semelhante a Deus. Esta é uma função que só o Amor está em condições de desempenhar. A lei é para principiantes. Só serve para escravizar aos que dela já não necessitam mais.

O homem foi criado bom, mas imperfeito, incompleto. Comparada com um adulto, a criança é apenas um “esboço”. E, contudo, Jesus nos adverte: “se não voltardes a ser crianças (‘como esta criança’), não entrareis no Reino dos céus” (Mc 10,15).

Crescer: esta é a ordem a que o Criador submeteu não só o homem, mas a criação toda (Gn 1,22). Crescer não significa apenas multiplicar-se. O mundo das bactérias é composto de micro-organismos que há milhões de anos se multiplicam com rapidez estonteante. Mas os de hoje são basicamente iguais aos seus ancestrais de 600 milhões de anos atrás. Crescer, em sentido evolutivo, é mais do que repetir-se e continuar a ser o que já se foi no passado.

O tempo em que o Criador nos colocou é de natureza evolutiva. A vida veio para vencer, e não apenas para sobreviver. O mesmo vale para a vida espiritual. Instituições ou pessoas que pensam apenas em sobreviver estão se condenando a si próprias ao desaparecimento.

Santo Agostinho foi um dos primeiros pensadores cristãos que se deu conta de que a vida de fé é mais do que uma simples questão de desenvolvimento. O verdadeiro caminho da fé, diz ele, passa pela transformação.

Os instrumentos e meios capazes de fazer feliz uma criança já não servem mais para realizar uma pessoa adulta. Não são os anos que separam um adulto do seu tempo de criança. A diferença está nos instrumentos de que se serve para dar um significado e um conteúdo gratificante ao tempo, que é o dia de uma criança.

Quem é refratário a mudanças nega-se a cumprir a ordem básica do Criador: “Crescei e multiplicai-vos”. Fundamental é o crescimento. A propagação vem depois. Quem não cresce, perde o direito de multiplicar-se. Se nos dispomos a concordar com Agostinho, então devemos concordar também com as consequências lógicas da sua tese. Os que temem mudanças são, em boa parte, os mesmos que têm medo da verdade. São os que usam peneira para encobrir a luz do sol.

Basta abrir um exemplar do Codex Juris Canonici para perceber que quem “dá as fichas” na Igreja católica já não são mais os pregoeiros: do amor misericordioso do Pai celeste, mas os que têm o poder de fazer leis.

L’Univers Morbide De La Faute é o título de um livro escrito pelo Dr. A. Hesnard e publicado em 1949 pela editora Presses Universitaires de France, obra em que o autor tenta definir o pecado (La Faute) como doença (maladie).

Se o pecador é um “doente”, mais doente do que mau, então é preciso tratá-lo não como culpado, mas como vítima. Um doente se cura. Tentar convertê-lo ou condená-lo não faz sentido. Tribunais da Penitência e confessionários deveriam ceder lugar a sanatórios e casas de saúde.

Exageros à parte, a opinião de Hesnard não é de todo infundada. Pecado e doença são disfunções psicofísicas que merecem mais atenção do que fenômenos como aborto, fome ou mortalidade infantil. Existe uma espécie de conivência secreta entre culpa e doença. Depois de o ter curado, Jesus dizia ao doente: “Vai em paz e não voltes a pecar!” (Jo 8,11).

O perdão divino está intimamente ligado ao arrependimento e à conversão (metanoia). Para alcançar a cura do pecado, é necessário mudar de vida. O simples propósito não é suficiente.

A prática da confissão dita “sacramental” pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal, para a saúde tanto quanto para a difusão da “doença”. Pode contribuir, no último caso, para duas atitudes, uma tão perversa quanto a outra. De um lado aumenta o medo do pecado e a dependência neurótica do penitente em relação ao confessor e à confissão. Do outro lado contribui para proporcionar-lhe uma tranquilidade de consciência totalmente falsa, fugaz e passageira.

A confissão frequente pode transformar-se facilmente em álibi moral, em recurso alienatório destinado a disfarçar a realidade. O gesto do padre quando diz ao penitente: “Eu te absolvo dos teus pecados”, não tem o poder de apagar a culpa — o que é muito mais do que uma palavra escrita num quadro-negro.

Em seu livro Sementes de Contemplação, Tomas Merton fala da Teologia Moral do Diabo. O diabo, diz ele, gosta que se fale muito sobre esse assunto. Quer que suas vítimas reais e/ou potenciais se convençam de que o pecado é inevitável e que faz parte da própria condição humana.

Se o pecado é uma fatalidade, não pode mais ser visto como fruto da vontade livre do homem. Não sendo mais livre, o pecado deixa de ser pecado. É isso que o demônio quer!

Um dos grandes males da nossa época é a perda da noção de pecado — dizia o papa Pio XII. Esqueceu-se, porém, de dizer que grande parte da culpa por esse estado de consciência cabe à Igreja e a seu sistema moral. Culpados são, entre outros, os que multiplicaram as ocasiões de pecado a ponto de torná-lo inevitável e onipresente. Culpados são também os que, em nome de uma falsa interpretação do conceito de misericórdia, transformaram o perdão sacramental numa piada.

A Igreja facilitou a vida moral dos que querem uma paz de consciência que não os obrigue a mudar de vida.

 

5. Espiritualidade e sexualidade

O campo sexual foi o mais afetado pelo pessimismo — do qual falei. Em nenhuma outra área da vida humana o pecado de Adão teria feito tantos estragos quanto nessa.

Seria ingenuidade minimizar os riscos que envolvem o comportamento sexual humano. É um campo de difícil controle, é verdade. Mas não é, contudo, o campo minado a que o reduziram os homens. Digo os homens, porque as mulheres jamais foram sequer consultadas.

Nada há nas palavras de Jesus que autorize a um cristão a encarar a sexualidade como inimiga do espírito. A ideia de que corpo é inimigo da alma não é cristã. Quem a sustenta não pode fazê-lo em nome do Evangelho.

Santo Agostinho, pai da maioria de nossos conceitos sobre moral sexual, foi maniqueu por algum tempo. Só descobriu a castidade aos 33 anos de idade. De libertino desbragado passou a puritano inflexível.

Nossos conceitos sobre sexualidade são os que mais clamam por revisão.

 

6. O espírito e a lei

Tanto Jesus quanto o apóstolo Paulo fazem distinção clara entre dois tipos ou níveis de ordem. De um lado colocam tudo o que costumamos denominar como ordem estabelecida. Do outro e em confronto com ela apontam para uma outra ordem, a Ordo ou Lex Spiritus et Vitae. Esta última é que determina as demais formas de ordem. Ela é invisível, imperceptível e inacessível tanto aos sentidos quanto à razão do homem. Sua existência só pode ser intuída e não deduzida racionalmente, como queria Kant. Encontra-se fora do alcance mental dos que só sabem raciocinar, calcular e impor. É o grande mandamento de que fala Jesus e do qual tanto medo tiveram todos os grandes e pequenos inquisidores da história.

Cristão, no sentido unívoco do termo, é alguém que perdeu o medo e, portanto, não precisa mais apoiar-se em mecanismos de intimidação para permanecer fiel à sua fé em Cristo.

Num belo livro intitulado A Totalidade e a Ordem Implicada (Ed. Cultrix), o físico atômico americano David Bolina se dispõe a apresentar ao leitor “uma nova percepção da realidade”. Tudo o que nós, cientistas, filósofos, teólogos e “mestres” da verdade apresentamos como sendo a Realidade, é apenas uma parte dela. Reflete e representa a parcela que nossa mente conseguiu apreender.

Tudo o que costumamos arrolar como “conhecimento objetivo da realidade”, nada mais é, na verdade, do que o fruto de nossa incapacidade sistemática de ver o universo como totalidade. Entronizamos ídolos sem nos darmos conta de que com esse gesto acabamos destronando Deus.

Criamos dogmas, isto é, verdades irrefutáveis, sem nos dar conta de que com esse gesto tentamos paralisar o poder criativo da verdade suprema. Dogmas são cabrestos, à medida que pretendem fixar e prender o que tem por missão fluir e correr. O mesmo vale para o campo da moral. Bom não é aquele que deixou de ser mau.

Precisamos oferecer aos homens e às mulheres do Terceiro Milênio paradigmas éticos e religiosos totalmente diferentes de tudo o que lhes estamos oferecendo como medida e padrão de valorização existencial.

Qual o ser humano legitimamente autorizado a falar em nome da humanidade de amanhã? Temos sobra de porta-vozes do passado. O que nos falta são pessoas familiarizadas por antecipação com o que fará do Terceiro Milênio uma época de ouro no campo do progresso espiritual.

A esperança não consiste em aguardar que as coisas aconteçam, torcendo para que o resultado esteja de acordo com o que desejamos.

Homens como Marx e Lenin tomaram consciência do caráter combativo da esperança. Quem tem esperança é aquele que luta. Luta, mesmo que ela lhe custe a vida.

A esperança é uma virtude singular: ela predispõe o indivíduo a morrer por uma causa, se for preciso. Aqueles que vivem da esperança são os que não se contentam com o que alcançaram. Querem um mundo melhor. Querem-no de forma efetiva, não o querem apenas para si.

Em toda esperança existe a lógica do amor. O comunismo faliu porque não se deu conta de que uma esperança sem amor é como um corpo sem alma. Todos os nossos lideres, sejam eles políticos ou religiosos, nos prometem um futuro melhor. Prometer é fácil. O difícil é achar um modo de sair de um presente estagnado para um futuro movediço e basicamente alérgico a regras estabelecidas.

A resistência que um Sr. Havelange oferecia à ideia de que é preciso mudar por completo as regras de um jogo de futebol, é a mesma que os Aiatolás do Irã iriam oferecer à ideia de que é preciso “dar a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”.

Só lá onde todos indistintamente são livres e responsáveis pelo que fazem — não apenas perante Deus, mas também perante o tribunal da opinião pública — pode haver justiça.

Por trás da chamada ordem estabelecida existe outro padrão de ordenação, mais sutil, mas que determina, dá consistência e legitimidade às demais formas de ordem. Bohm chama-a de ordem implicada. Está para a ordem desdobrada ou explicada como a semente está para a planta. Está mais próxima do caos do que daquilo que costumamos definir como ordem.

Não vou entrar mais a fundo nesse assunto porque nos levaria longe demais. Só quero salientar um ponto: será que, ao promulgar o grande mandamento, Cristo não estava reatando o laço fundamental que liga toda e qualquer forma de ordem explicitada a critérios provenientes da ordem implicada?

Qualquer sistema social, moral e/ou religioso, ou deriva o seu direito de criar e impor leis do grande mandamento do amor, da Lex charitatis et libertatis (como a define Santo Tomás), ou terá de ser posto de lado como ilegítimo.

 

7. Os frutos do Espírito

Depois de ter enumerado as obras da carne (Gl 5,19-21), o apóstolo Paulo passa a relatar as obras do Espírito. “Mas o fruto do Espírito é: caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança” (Gl 5,22-23). E acrescenta a essa lista de virtudes uma advertência um tanto estranha: “Contra essas coisas não existe lei… Se vivemos pelo Espírito andemos também de acordo com o Espírito” (vv. 23 a 25).

O desenvolvimento espiritual é um dinamismo interior, determinado e impulsionado por forças oriundas dos planos superiores da consciência, que não pode ser submetido a regras ou restrições provenientes de outra fonte que não seja o próprio supraconsciente de cada um. O processo de desenvolvimento espiritual só consegue deslanchar de verdade em ambientes plenamente livres.

Nesse terreno cada qual deve aprender a se conduzir por si mesmo. Esse é um campo em que não há lugar para intermediários. Quem ama e se rege pela lei suprema da caridade não necessita que alguém lhe diga o que fazer e como proceder. Essa é uma afirmação que pode parecer temerária e causar escândalo em pessoas e em ambientes acostumados a submeter tudo à batuta de um regente! A liberdade dos filhos de Deus é sacrossanta e a ninguém é permitido conculcá-la, diz Pio XII na encíclica Mediator Dei.

Porém, a liberdade de que falam Paulo e Pio XII, Santo Agostinho e Francisco de Sales é outra, bem diferente daquela que a “carne”, o mundo hippie e adolescentes imaturos invocam para justificar seus desvarios.

Infelizmente até as próprias instituições religiosas cristãs concedem a seus dispositivos disciplinares regalias que não se animam a conferir à consciência moral de seus membros.

Quem trata a consciência como instância moral subalterna e a coloca sob a tutela de uma autoridade externa, está invertendo a reta ordem moral.

O espírito do homem é por natureza refratário a leis, assim como a águia quando voa a grandes alturas. A lei e a presença de uma autoridade tutelar forte é necessária aos que rastejam e voam a baixa altura e em velocidades subsônicas.

Voar a grandes alturas e em velocidade estonteante foi o grande sonho da mais nova doutora da Igreja, Teresinha de Lisieux.

Se a Igreja — qualquer uma das muitas que se dizem cristãs — quiser ingressar no Terceiro Milênio com chances de poder participar ativamente das transformações indispensáveis para fazer dele o Milênio do Espírito (como o definiu, por antecipação, André Malreaux) terá de sair do chão e aprender a voar. Além disso terá de encarar a Verdade não mais como objeto de posse, mas como horizonte.

Crer não significa apossar-se da Verdade. O crente cristão autêntico e com direito de participar da grande aventura espiritual que o Terceiro Milênio promete ser, é aquele que aprendeu a se alimentar da Verdade, em lugar de entronizá-la em nichos ideológicos.

É evidente que num artigo de revista não dá para dizer tudo. Basta que nele o autor diga com clareza o que em sua opinião é essencial.

Em 2Cor 3,17 o apóstolo Paulo diz algo que considero essencial: Ubi Spiritus, ibi libertas: onde há espaço para a ação do Espírito, aí também há lugar para as mais amplas e generosas manifestações e formas de Liberdade!”.

Sinônimo de liberdade é a capacidade de se comprometer com mudanças. Só quem possui esta capacidade pode inscrever-se como candidato à grande aventura espiritual do Terceiro Milênio.

Pe. J. Marcos Bach, sj