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Publicado em número 252 - (pp. 9-20)

A dimensão humana do presbítero na América Latina: situação e desafios

Por Pe. Manoel Godoy

1. A crise do padre

Quando nos propomos falar da dimensão humana do presbítero, logo nos vêm à mente os desafios atuais, relacionados, sobretudo, à vivência afetivo-sexual. Os escândalos gerados pela má conduta de alguns presbíteros nos condicionam a uma visão negativa da sua humanidade. Conscientes disso, pretendemos aqui tratar dessa questão de maneira mais ampla, pois sabiamente a tradição eclesial nos alerta sobre tantos outros possíveis desvios concernentes à nossa dimensão humana, não se restringindo ao sexto e ao nono mandamento da lei de Deus e nem ao terceiro dos sete vícios capitais.

Como dizia Bernanos, nunca seremos fortes o bastante para colocar o diabo no bolso[1]. Sabemos que, enquanto caminharmos na terra, estaremos sempre em busca da perfeição, pois, como nos indica sabiamente a exortação Pastores Dabo Vobis (PDV), a medida do humano no presbítero é o Verbo feito carne[2].

Vivemos um período histórico altamente desafiador, em que as instituições sobre as quais se firmaram gerações e gerações sofrem uma crise quase sem paralelo na história. Família, Estado e escola carecem de novas abordagens que lhes restituam sua verdadeira função de elementos estruturantes na formação do homem e da mulher de hoje. E a cultura que vem sendo forjada desde a irrupção do positivismo obriga também a Igreja a se reposicionar, para que sua missão de dar sentido global à existência humana ganhe novas formas de comunicação, sem perder o que lhe é essencial. Aqui se situa, certamente, a crise do padre, como sublinha bem a psicóloga italiana Luisa Saffiotti: “A crise do padre reflete certamente um momento de transição social, cultural e eclesial. Também a religião deve reencontrar o próprio papel social, e não é fácil. Especialmente porque isto acontece num clima de ampla comercialização das diversas propostas espirituais. São oferecidos roteiros espirituais baratos, que prometem um bem-estar imediato e fácil. O caminho cristão, por outro lado, é mais complexo: a promessa que ele faz do bem passa por uma crise. Deve-se atravessar um morrer e um fatigar-se que são salutares, mas certamente não fáceis e imediatos. O mundo hoje não acolhe facilmente percursos árduos, penosos, de despojamento. Persiste a fome de algo autêntico e verdadeiro, mas sem a disponibilidade a passar por um caminho duro e uma crise salutar”[3].

 

2. Presbítero: discípulo e missionário

Esta reflexão quer estar também em sintonia com a V Conferência do Episcopado Latino-Americano, a ser realizada em 2007 no Brasil com o tema: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida: ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida’ (Jo 14,6)”. A questão do discipulado e da missionariedade, que deve envolver inteiramente a vida do presbítero, será levada em conta, pois sem a suficiente maturidade humana resulta difícil ser discípulo, alguém capaz de ouvir os outros e, sobretudo, o Outro. E o missionário é aquele capaz de levar a boa-nova aos outros, não só por palavras, mas de maneira especial pelo testemunho de uma vida integrada. Nessa perspectiva, é bom remarcar o que afirmou a PDV: “Sem uma formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento”[4]. Assim, à luz do Magistério da Igreja, vamos delineando o ideal presbiteral, mormente no que diz respeito ao discipulado e à missionariedade, e, adiante, apresentaremos a situação atual e os desafios à realização desse ideal.

 

3. O presbítero ideal

O presbítero deverá ser “capaz de conhecer em profundidade a alma humana, intuir dificuldades e problemas, facilitar o encontro e o diálogo, obter confiança e colaboração, exprimir juízos serenos e objetivos”[5]. Isso exige, segundo a exortação do Papa João Paulo II, o cultivo de uma série de qualidades humanas necessárias à construção da personalidade: equilíbrio, fortaleza e liberdade, capacidade de suportar o peso das responsabilidades pastorais. O mesmo documento indica os elementos fundamentais que devem constar na educação do presbítero para que este adquira tais qualidades: amor à verdade, lealdade; respeito pela pessoa de cada um; sentido da justiça; fidelidade à palavra dada; verdadeira compaixão; coerência e equilíbrio de juízos e comportamentos. A exortação papal dá destaque especial à capacidade de relacionamento com os outros, pois considera o presbítero como um homem de comunhão, e, inspirando-se nas cartas pastorais, descreve as exigências para que alguém seja investido do cargo de presbítero na Igreja: “… que o sacerdote não seja arrogante, briguento, mas afável, hospitaleiro, sincero nas palavras e no coração, prudente e discreto, generoso e disponível para o serviço, capaz de oferecer pessoalmente e de suscitar em todos relações francas e fraternas, pronto a compreender, perdoar e consolar”[6]. Essa é a base humana sobre a qual a Igreja espera edificar o ideal presbiteral, o homem integrado e aberto à formação permanente, a qual deve ser a marca do presbítero para os dias de hoje. Em uma palavra, para ser presbítero, é preciso antes ser homem realizado e integrado em todas as suas dimensões.

 

4. O presbítero e sua inserção na vida humana

O Concílio Vaticano II, no documento específico sobre a ordem presbiteral, também destaca que o presbítero, antes de tudo, deve ser um homem profundamente integrado na existência de todos aqueles aos quais ele dedica sua vida: “Não poderiam ser ministros de Cristo, se não fossem testemunhas e dispensadores de outra vida que não a terrena, mas nem sequer poderiam servir aos homens, caso se mantivessem alheios à sua existência e condições de vida”[7]. Essa inserção do presbítero no mundo, intensificada nas décadas que seguiram ao Concílio, não ficaria sem trazer resultados concretos no que diz respeito às transformações no modo de exercer o ministério presbiteral e, mais ainda, no modo mesmo de concebê-lo. Como bem afirmou Jeannine Marroncle: “A sacristia e a casa paroquial foram ocupadas pelos fiéis, dentro de uma nova prática pastoral, enquanto os padres abandonaram a aura de sacralidade intocável que os reservava exclusivamente para o altar. O pastor do rebanho não caminha mais à frente, solitário comandante, mas junto do rebanho, como convém à metodologia pastoral mais moderna. O contato menos hierárquico, mais próximo e direto, cria laços mais humanos e aí, inevitavelmente, afloram os sentimentos e a afetividade”[8].

Os presbíteros passam a ser homens como os outros homens, mais acessíveis e sujeitos à influência de tudo o que constitui o mundo, de sua cultura, leis e hábitos. O axioma joanino — estar no mundo sem ser do mundo — irrompe nesse contexto como um dos grandes desafios a que todos os cristãos estão submetidos, mas de maneira peculiar os presbíteros. Como afirmava o Papa Paulo VI: “Distinção não é separação. Nem é indiferença, temor ou desprezo. Quando a Igreja afirma a sua distinção da humanidade, não se opõe, aproxima-se dela”[9].

 

5. O presbítero e as mudanças culturais

Destacamos aqui a influência fortíssima da cultura contemporânea no modus vivendi dos presbíteros. Como qualquer outro ser humano, eles têm sofrido condicionamentos das mudanças culturais nas últimas décadas.

Como bem expressava um jornalista brasileiro, por ocasião da virada do milênio: “Talvez no futuro, quando se escrever a história definitiva deste século, quando se quiser destacar o que aconteceu de mais importante, vai-se chegar à conclusão de que esta foi a era do comportamento: a que reformou a velha ordem moral, instituindo novas atitudes e condutas sexuais, psicológicas e culturais. Num processo às vezes dramático de desconstrução e reconstrução, o homem e principalmente a mulher deste mundo pós-moderno transformaram suas concepções de família, suas relações afetivas, a maneira de se vestir, de fazer sexo, seus hábitos e atitudes comportamentais enfim — pelo menos como tendência ou possibilidade, quando não como realidade. Com destaque especial para os anos 60, essa revolução nem sempre silenciosa subverteu códigos, derrubou preconceitos e tabus, legitimou “desvios”, rejeitou convicções estabelecidas, transformou reivindicações em direitos e lançou novas convenções, entre elas o respeito às minorias e aos grupos discriminados, a emancipação da mulher, a liberação da sexualidade e do prazer, o direito ao orgasmo, a aceitação do homossexualismo, o divórcio, a relativização da virgindade, a rediscussão da fidelidade conjugal”[10].

Diante de tudo isso, as conhecidas revoluções sociopolíticas e econômicas são até redimensionadas. E, a uma instituição cujos membros se servem de muitos dos elementos culturais para a transmissão do seu conteúdo doutrinal, a revolução dos costumes se manifesta como grande desafio. Essa revolução também apresenta como principal pano de fundo a emergência da subjetividade, conforme a busca de autonomia e de autoafirmação por parte de homens e mulheres na qualidade de pessoas dotadas de direitos inadiáveis. O episcopado do Brasil, nesse caso, faz uma distinção muito pertinente: “Há uma situação cultural de individualismo, que tem aspectos positivos, enquanto promove a individualidade, e que não deve ser confundida com o egoísmo, atitude moral negativa, que rompe os laços de solidariedade com o próximo”[11]. O certo, porém, é que uma onda individualista alastrou-se na sociedade e contaminou os presbíteros, que preferem viver sua vida num relacionamento com o presbitério muito diferente daquele surgido no imediato tempo do pós-Concílio.

 

6. Os presbíteros especialistas

Essa perspectiva cultural que privilegia o indivíduo, fazendo frente aos movimentos coletivistas da década de 60 do século passado, ganhou como slogan o conhecido “sem medo de ser feliz”. A busca de uma felicidade bastante individualizada se tornou objetivo predominante também entre os presbíteros que, em termos eclesiais, radicalizaram o conhecido “carreirismo” institucional, por um lado, e, por outro, a acomodação da vida e do ministério às novidades tecnológicas — celulares, laptops, sons e câmeras digitais —, fazendo surgir o “presbítero high-tech” ou ainda “o padre midiático-carismático — pop star —, que adota novas formas de anunciar Cristo e que, para isso, ocupa os ‘areópagos modernos’ da mídia”[12]. No Brasil, com base em algumas pesquisas, também se detectou um tipo de presbítero que tenta exercer seu ministério de tal forma, que fica resguardada sua privacidade e individualidade. Conhecidos como “padres light”, são aqueles que articulam bem seu tempo, dividindo-o entre o exercício do ministério e o tempo dedicado à sua vida particular. Não se trata de padres em crise, tampouco frustrados ou infelizes. Segundo o Pe. Edênio, “o padre light é o presbítero sobrecarregado que encontrou um meio de se defender do estresse”[13].

Mas, de todas as caracterizações conhecidas do clero atual, a que apresenta maiores possibilidades e tem sido a tendência mais forte entre os presbíteros é a dos padres especialistas. Trata- se daqueles que valorizam mais a competência profissional. “No mundo atual, que exige sempre mais especialização nas atividades profissionais, também os presbíteros podem se tornar ‘especialistas’, aprofundar sua preparação (pastoral) num determinado campo?”, pergunta o Pe. Antoniazzi. Ele crê que sim e afirma: “A valorização das qualidades pessoais parece uma tendência forte e difundida entre os novos presbíteros”[14]. De fato, há a impressão de que assistimos a uma corrida bastante intensa aos títulos universitários, não só no campo da teologia. O certo é que estamos vivendo, como já se convencionou chamar, mais que uma época de mudanças, mas uma verdadeira mudança de época quanto ao modo de ser presbítero e de exercer o ministério presbiteral. Em princípios da década de 90, o Papa João Paulo II dizia: “Nestes anos mais recentes e de várias partes, chamou-se a atenção para a necessidade de voltar ao tema do sacerdócio, enfrentando-o de um ponto de vista relativamente novo e mais adaptado às circunstâncias eclesiais e culturais. O acento deslocou-se do problema da identidade do padre para os problemas relacionados com o itinerário formativo ao presbiterado e com a qualidade de vida dos sacerdotes”[15]. Se, por um lado, essa afirmação continua tendo seu valor, por outro, parece-nos que a questão da identidade presbiteral não está de forma alguma resolvida.

 

7. A questão da identidade presbiteral

Com uma série de interrogações, Pe. Edênio, já no fim da década de 80, apresentava as questões que constituem a essência da definição da identidade pessoal de cada ser humano, portanto também dos presbíteros: “A identidade representa questão crucial no processo de realização e maturação do ser humano. Quem sou? O que me motiva e define? Como me posiciono no mundo? Que valores me orientam? Que forças movem meus sentimentos, minhas ideias, minhas opções de fundo? Onde estão as certezas que dão fundamentação e rumo à minha ação? Quais as ambiguidades, as penumbras, os conflitos que tornam pesado o meu existir? O que é ‘outro’ para mim? Quem é meu interlocutor, meu companheiro? A quem amo? Para quem e para que existo? Que sentido dou à minha vida? O que é para mim história e tempo? Que transcendência a experiência me ensinou a assumir como realidade última? Quem é o Deus em quem acredito?”[16]. Por muito tempo, na Igreja, quando se tentava enfrentar essas questões na esfera presbiteral, projetavam-se modelos idealizados de presbíteros que mais se adequavam às necessidades institucionais do que respondiam ao desafio da originalidade de cada um. Nas últimas décadas, essas questões passaram a incomodar muito mais inúmeros presbíteros, que procuravam articular sua realização pessoal às reais necessidades da Igreja. Na perspectiva conciliar, “a identidade do padre passa em sua definição pela comunhão dos presbíteros entre si e com o bispo no serviço à comunidade”[17].

Hoje, porém, muito se perdeu dessa perspectiva e se retoma a questão da identidade presbiteral numa ótica muito mais subjetiva, do direito de cada um de ser feliz. É o novo lado da antiga crise. Creio que Luisa Saffiotti sintetizou muito bem essa questão que afeta tão em cheio a vida dos presbíteros. Ela diz que precisamos prestar atenção em alguns sintomas, dentre os quais “os momentos de dúvida, quando é posta em discussão a própria identidade e a própria vocação, o próprio papel, o modo de desempenhar o ministério. Este é o aspecto mais evidente. Depois a dúvida pode ficar mais ampla e envolver mais em geral o aspecto institucional, a Igreja na qual se exerce o ministério, a época em que vivemos. Ao lado disso, há sintomas que dizem respeito à estrutura cotidiana da vida: podem ser momentos de excessivo cansaço, fraqueza existencial, momentos latentes ou não de depressão; ou o excesso de trabalho, a procura obsessiva de atividades que parecem justificar a própria existência, a fuga de todo espaço vazio ou sossegado de silêncio e de reflexão. Este último sintoma — o excesso de trabalho — é hoje muito difundido e não apenas no padre”[18]. Parece que se confundiu o otium cum dignitate com o sétimo vício capital e uma pessoa só se sente valorizada quando pode ostentar uma agenda cheia, e não quando usa o tempo para aprender a contemplar, a fazer intervalos de introspecção, até mesmo para saber avaliar com alegria os passos dados na missão. O medo da aposentadoria tem se tornado um carrasco para muitos.

Luisa Saffiotti, continuando seu alerta sobre alguns sintomas da crise na vida dos padres, destaca ainda certos comportamentos paradoxais constatáveis em muitos presbíteros, que alternam aquilo que ela chama de “formas diversas de isolamento face às relações, de fechamento sobre si mesmos, uma forma de autismo espiritual e pessoal pela qual a pessoa se subtrai às relações e aos contatos que poderiam ser um núcleo de apoio, as amizades familiares e do ministério”, com formas opostas, tais como “agir com impulsividade e impetuosidade, de maneira compulsiva, dando sempre vida a novas iniciativas, jogando-se em relações sempre novas, também afetivamente envolventes, sem nenhum critério”[19]. Em ambas as situações o presbítero está exposto a comportamentos indicativos de fuga de si mesmo e de relações-refúgio, os quais o afundam ainda mais na crise.

 

8. Identidade e intimidade

Profundamente ligada ao desafio da identidade presbiteral está a questão relativa à sua intimidade. Diz-se mesmo que “são duas faces de uma mesma moeda, sendo que uma é parte essencial da outra. Por exemplo: a maior parte dos homens não conseguem uma intimidade madura se não têm profunda consciência de seu eu, de sua própria identidade”[20]. No caso do presbítero, esse desafio se torna emblemático e já foi assim expresso: “Sendo o papel sacerdotal, em todos os tempos e religiões, um dos papéis sociais antropologicamente mais esvaziadores do núcleo íntimo da pessoa, é mister que, no caso do padre católico, embora também ele se enquadre nesta determinação sociológica, se recuse o primado ao que despersonaliza e se dê ênfase crescente ao que fomenta o ‘ser-assim’ de cada um”[21]. É comum ouvir em reuniões do clero reclamações sobre excesso de trabalho, sobre o sufocamento porque passam os presbíteros por causa da demanda imensa de solicitações pastorais, sobre a perda de espaço onde possam ser eles mesmos e cultivar sua intimidade. Essa situação tem levado muitos presbíteros a dar respostas, por vezes, extremadas. Uns confundem intimidade com preservação individualista, esquecendo-se de que somente salva sua vida quem a perde por causa do evangelho (cf. Mc 8,35). Ou, como diz o poeta: “O que a gente retém só para si é o que se corrompe dentro de nós como água parada. O que a gente deixa passar para os outros é o que lava nossa intimidade como água que corre. Tudo o que é retido se deteriora até desintegrar-se, e o próprio coração se converte em carcereiro. Tudo o que é presenteado cresce sem fim com vida própria, e o nosso coração se converte em criador. Guardar-se inteiramente para si é a única forma de perder-se eternamente na esterilidade da morte. Perder-se inteiramente a si mesmo é a única forma de ganhar-se eternamente no Reino da Vida”[22]. Outros esbarram numa preocupação narcisista de defesa de um espaço pessoal que mais esconde e ameaça do que revela e faz crescer.

O verdadeiro cultivo da intimidade inclui pudor, direito à privacidade, não redução à função, e se caracteriza como “aprimoramento da autoconsciência como reserva desde a qual um ser humano, permanecendo ele mesmo, pode se abrir inteiramente ao outro e a Deus”[23]. A posse da intimidade é conditio sine qua non para que a pessoa se abra desarmada ao relacionamento com os outros para o cultivo de verdadeiras amizades, às quais pode se apresentar sem máscaras, sem as defesas habituais, sem se sentir ameaçada. “Um sacerdote cujas necessidades de intimidade estejam terrivelmente desprovidas pode dar ouvidos à voz errada e sair em busca do que já está potencialmente em seu coração”[24]. Intimidade é união com o outro, é comunhão, e nossa alma foi programada para essa intimidade. Fracassar aqui pode nos levar a experiências equivocadas.

Por outro lado, a vivência de verdadeira intimidade só pode estar alicerçada em real maturidade emocional, base para uma vida espiritual e intelectual autêntica. É nesse contexto que emerge o valor e a possibilidade de amizades íntimas na vida do presbítero. Como afirma o Pe. Cozzens: “O que está faltando para muitos sacerdotes, acredito eu, é a experiência da união, da intimidade de uma comunhão santa com alguns bons amigos. Por si só, sem uma profunda e autêntica amizade humana, a intimidade com Deus experimentada na oração, nos sacramentos e nas práticas devocionais deixa o espírito ligeiramente fora de equilíbrio”[25]. E ele é bastante contundente, quando alerta: “Necessidades de intimidade não satisfeitas, acredito, levaram inúmeros sacerdotes a pensar que só conseguiriam encontrar uma verdadeira realização no casamento ou, no caso do sacerdote de preferência homossexual, numa relação sexualmente ativa com outro homem”[26]. O cultivo de amizades íntimas nem sempre é tão simples para os presbíteros. Durante seu aprendizado, eles não estarão livres de equívocos e de ambiguidade, mas o isolamento não é menos perigoso, pois, quanto mais o padre estiver distante, inacessível, maior é o fascínio que provoca, sobretudo nas pessoas com as quais partilha seu trabalho pastoral. Um bom caminho de discernimento pode ser este: “Não se deve confundir o que é sagrado durante o exercício da função sacerdotal com a sacralização da pessoa do padre”[27]. O padre será sempre um sinal que transcende a sua pessoa, mas nunca deixará de ser homem, com tudo o que isso significa.

 

9. Maturidade humana presbiteral

Cabe aqui uma palavra sobre a correlação entre a maturidade humana e a ministerial. É bom lembrar que, antes de ser padre, é preciso ser cristão e, antes de ser cristão, ser humano[28]. Somente sobre fundamentos sólidos humanos se pode edificar o verdadeiro presbítero, pois ele deverá ter condições de pôr a totalidade de sua vida sob o dinamismo do Espírito. É claro que por maturidade entendemos hoje tratar-se mais claramente de um processo que nos acompanha a vida inteira, “do berço até o caixão”. Mas esse processo não caminha por si só, sem o concurso da pessoa humana. A capacidade de tomar decisão, de assumir a vida nas próprias mãos, confiando na presença permanente de Deus, faz parte do dinamismo do processo de maturação humana. Esta é construída por meio da tomada de posição pessoal e do relacionamento com os outros, na base do diálogo e do compartilhamento da vida com os demais.

Por outro lado, esse processo, no caso do presbítero, não pode ser tão indefinido, pois ele tem responsabilidades inadiáveis no exercício do ministério. Para isso, contará com a graça de seu estado ministerial e deverá estar aberto para, em comunhão com seus irmãos de presbitério e com os leigos com quem trabalha pastoralmente, aprofundar o sentido transcendental de seu chamado ao ministério sacerdotal. A maturidade espiritual acompanha o todo do processo de maturidade humana. A experiência de Deus, de que o presbítero deverá ser portador, não é feita senão na relação de abertura à sua realidade como pessoa, com os outros e com o totalmente Outro. Portanto, o presbítero deverá ter um senso profundo de realismo com relação a si mesmo, a suas ambiguidades e potencialidades e à realidade que o cerca. Conhecer-se é fundamental no processo de autoaceitação, tendo em vista a maturidade humana e espiritual. Só aplicamos a medicina correta quando detectamos com precisão onde estão nossos pontos fracos. Nada mais prejudicial nesse caso do que a camuflagem do que se é, verdadeira e profundamente. Deixar aflorar o que somos, com nossas emoções e sentimentos, para resgatar tudo o que nos edifica e trabalhar o que nos destrói. “A não repressão do que se sente traz consigo a possibilidade de superação do que é negativo na pessoa e de redimensionamento das aspirações de um eu-ideal distanciado do que a pessoa realmente sente e quer, isto é, de seu eu-ideal”[29].

 

10. Afetividade, sexualidade e genitalidade

Parafraseando o apóstolo dos gentios, podemos dizer que levamos essa riqueza de vida, contida na experiência humana dos presbíteros, em vasos de barro. Isso fica bastante evidente quando o presbítero, ainda que experimentado e realizado, comete uma falha na vivência de sua dimensão humana, ainda mais se essa falha estiver diretamente relacionada à sua afetividade, sexualidade ou genitalidade. É pertinente distinguir essas dimensões, pois “qualquer reflexão em torno da sexualidade requer um contexto, um marco de referência que nos ajude a ter uma perspectiva da questão. Hoje continuam existindo muitas pessoas que têm uma visão restritiva da sexualidade, equiparando-a ao comportamento genital. O mesmo acontece com o conceito de intimidade. Se uma pessoa diz que se tornou íntima de outra, muitos imaginam que elas estão tendo relações sexuais entre si. Essa visão estreita das coisas não nos ajuda a valorizar a complexidade e a riqueza de nossa sexualidade”[30]. Há uma vivência diferenciada da afetividade e da sexualidade, segundo os diversos estágios do processo de amadurecimento humano. No caso do presbítero, tem se tornado grande desafio para a Igreja saber lidar com essa dimensão desde o início do processo formativo. Os rapazes, em sua maioria, chegam com vivências nem sempre bem-sucedidas no campo afetivo e sexual. O clima social e a cultura de hoje favorecem experiências de toda ordem, e não há nada mais complexo que refazer caminhos mal começados nesse campo. As experiências deixam marcas que nem sempre são explicitadas na esfera própria da formação presbiteral. Esconde-se muito de tudo o que se vive e se experimenta nessa dimensão, em razão dos tabus e dos interditos da instituição. Diz-se que a religião, com frequência, favorece mesmo essa ocultação por meio de práticas piedosas. Aqui e acolá emerge um comportamento presbiteral que torna claro o que estava velado, e não poucas vezes nos surpreendemos com quem isso sucede. São pessoas que aparentemente demonstravam ter atingido um grau elevado no processo de maturidade humana e sexual.

 

 

 

11. Presbíteros e a questão de gênero

A relação entre os padres e as mulheres está sempre em busca de uma base de serenidade e tem melhorado muito nos últimos tempos, apesar de todo o desafio que isso ainda significa[31]. O amor celibatário e o cultivo de autênticas amizades exigem, como já dissemos, a capacidade de relacionar-se bem com a questão da identidade e da intimidade. O conhecer-se é fundamental, sobretudo no que diz respeito à sexualidade. A psicanálise nos ajudou muito a desvendar zonas bastante obscuras de nossas vidas, e, mais recentemente, tem se desenvolvido bastante a consciência de que homens e mulheres têm um lado feminino e masculino inconscientes. Se todos somos andróginos, como afirmam os psicólogos, “para estabelecer uma relação de intimidade madura entre duas pessoas, ambas devem ter alcançado certo nível de integração de suas dimensões masculina e feminina. Essa integração ajuda-nos a compreender melhor a origem dos estereótipos sexuais. Ajuda também a nos livrar das imagens distorcidas do que deve ser um homem ou uma mulher”[32]. Nas relações de gênero, é possível desenvolver uma intimidade madura, desde que homem e mulher se conheçam e estejam dispostos a externar claramente seus sentimentos, evitando camuflagens e jogos afetivos que mais servem para um manipular o outro. No processo de autoconhecimento, o presbítero precisa ter claro que carrega consigo uma aura de homem proibido, interditado, e isso favorece o desenvolvimento de um fascínio, sobretudo em mulheres que não conseguiram integrar-se e amadurecer ou passam por momentos afetivos difíceis. Todos vivenciamos fases evolutivas no processo humano de amadurecimento e elas estão impregnadas de sentimentos opostos e até antagônicos, como o amor e o ódio. Saber superar a antinomia inconsciente típica das primeiras fases evolutivas do ser humano é condição essencial para atingir a maturidade humana e espiritual. Somente o presbítero que vivenciou bem esse processo pode cultivar a intimidade com uma mulher, embora saiba que não está isento de risco, tendo segurança e confiança na sua capacidade de superação de qualquer situação mais conflituosa.

Casos conhecidos de conduta inadequada, tais como a pedofilia e a efebofilia[33], caracterizadas como patologias de natureza sexual, são exemplos de falhas na conquista de uma intimidade madura. Porém, é preciso estar atento, porque não são as únicas formas de extravasamento dessa patologia. A busca pelo poder, o comportamento autoritário, a falta de capacidade de relação serena com pessoas de ambos os sexos, o apego ao dinheiro ou às próprias ideias podem constituir outras manifestações da mesma patologia. Acreditamos, contudo, que o relacionamento íntimo entre o presbítero e a mulher não só é viável, mas necessário para uma vida afetiva equilibrada e serena do ponto de vista humano e espiritual. Aqui se pode falar de celibato como vivência sadia e autêntica da dimensão humana do presbítero. Porém, é preciso ter claro “que o celibato, para ser realizador da pessoa, supõe a superação das inconsistências afetivas mais básicas de nossa evolução. Sem isto, por maior que seja nosso idealismo, força de vontade e mesmo nossa confiança no Senhor e nossa dedicação ao reino, não poderemos superar o desafio da intimidade e chegar a uma reciprocidade em que estamos inteiros, crescendo sem machucar e sem usar o outro, especialmente a mulher”[34].

 

12. Necessário cultivo da solidão

Além de tudo isso, é preciso um cultivo da verdadeira e sã solidão. Esta é extremamente benéfica para qualquer ser humano e, no caso do presbítero, ganha caráter de necessidade intrínseca à sua missão. Uma solidão sadiamente cultivada pode ajudar o presbítero a viver na fidelidade ao seu “amor primeiro”, à sua vocação, e a rever suas atitudes de maneira mais profunda. Como afirmava o Papa João Paulo II: “A solidão oferece oportunidades positivas para a vida sacerdotal: aceita com espírito de oferta e procurada na intimidade com Jesus Cristo Senhor, a solidão pode ser uma oportunidade para a oração e o estudo, como também uma ajuda para a santificação e o crescimento humano”[35]. Foi bastante enfático ao afirmar: “… não é capaz de verdadeira e fraterna comunhão, quem não sabe viver bem a própria solidão”[36]. É importante ressaltar que a solidão não é a mesma coisa que vida fechada, isolamento. Solidão não se confunde com um mundo perdido, mas antes com um mundo bem encontrado, onde os frutos que dela brotam servem a todos: àquele que a cultiva e aos que o cercam.

Talvez tenha sido Henry J. M. Nouwen o que melhor definiu a importância da solidão na vida do presbítero, ao dizer: “Estou seriamente convencido de que a delicadeza, a ternura, a tranquilidade e a liberdade interior de aproximar-nos uns dos outros ou de afastar-nos uns dos outros são alimentadas na solidão. Sem a solidão, começamos a apegar-nos uns aos outros; começamos a preocupar-nos com o que pensamos e sentimos a respeito uns dos outros; rapidamente ficamos desconfiados uns dos outros ou irritados uns com os outros; e começamos, muitas vezes de maneira inconsciente, a esmiuçar uns aos outros com uma hipersensibilidade fatigante. Sem a solidão, conflitos superficiais facilmente tornam-se sérios e causam dolorosas feridas”[37].

Solidão, portanto, não deve ser confundida com vida solitária. Pelo contrário, ela é espaço autêntico somente na existência daqueles que sabem conjugar bem os dois polos supracitados: identidade e intimidade. Tal experiência de integração ganha sentido mais profundo quando centrada numa espiritualidade e mística capazes de orientar intensamente a vida do presbítero. Essa vivência transcendental carrega consigo a experiência da solidão, da renúncia e da cruz, que emerge de uma vida centrada num projeto claro em prol do reino. Isso é fundamental para o presbítero, pois ele certamente conhecerá momentos em que perceberá que os ideais e metas propostos para si no começo de sua vida ministerial não podem ser alcançados a curto prazo ou nem mesmo ser concretizados. Como suportar as frustrações, a pobreza de soluções para problemas imensos que se nos apresentam, se não atingimos a capacidade de vivenciar um processo profundo de autoconhecimento e compartir a vida com alguém na intimidade?

Esse processo de autoconhecimento, vivido e experimentado por aqueles que sabem cultivar verdadeira e autêntica solidão, foi sintetizado muito bem por Pe. Edênio, psicólogo que tanto nos tem ajudado no acompanhamento dos presbíteros no Brasil: “O autoconceito adulto abrange o gostar de si, o sentir-se bem consigo mesmo, a capacidade de ser e de sentir-se feliz. Esta positividade em relação a si próprio é distinta do apego infantil à necessidade de ser amado e protegido; é algo criativo que leva ao engajamento da vida e à orientação dela em direção a objetivos que transcendem pulsões e satisfações apenas imediatas. A causa do reino, o compromisso da libertação, o serviço aos irmãos têm aqui espaço psicológico para a dinamização válida do projeto existencial do padre. Projeto que, sem dúvida alguma, no nível psicológico pode permitir plena realização de sua pessoa”[38].

Enfim, faz-se urgente uma mística pascal, que nos enraíze na experiência da kenosis e nos faça superar a lógica do sucesso, a busca frenética de resultados e a fixação numa lamentação estéril.

 

13. O presbítero não pode viver sem amor

Não podemos, porém, esquecer que só se entende a missão presbiteral na perspectiva do mandamento maior: amor a Deus acima de tudo e amor aos irmãos à medida do amor de Jesus pela humanidade. Isso se prova na convivência, na partilha de vida. Não basta amar, é preciso provar. E como testemunhar esse amor se não se sabe amar concretamente as pessoas? Como afirma São João, o critério de veracidade do nosso amor a Deus está exatamente no amor aos irmãos. A experiência do amor aos outros não pode ser genérica e deve ser vista no prisma do mistério da redenção. Revela-se fundamental lembrar as palavras do Papa João Paulo II, na Encíclica Redemptor Hominis (n. 10): “O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente. E por isto precisamente Cristo redentor revela plenamente o homem ao próprio homem. Esta é — se assim é lícito exprimir-se — a dimensão humana do mistério da redenção. Nesta dimensão o homem reencontra a grandeza, a dignidade e o valor próprios da sua humanidade”. Nessa dimensão redentora do amor, emergem valores essenciais para o relacionamento humano, tais como sinceridade, ternura e desarmamento, pois o amor significa abertura, vulnerabilidade, disponibilidade e confissão. Para isso, faz-se necessário verdadeiro processo de reconciliação com nós mesmos, com os outros e com Deus. Nesse contexto, podemos aceitar que “a conversão é a descoberta da possibilidade do amor”[39].

Essa dimensão da fé é essencial na cura terapêutica de qualquer presbítero. Com muita propriedade, depois de vários anos de trabalho de recuperação, numa clínica nos Estados Unidos, de padres que apresentaram problemas patológicos de natureza sexual, Luisa Saffiotti afirma: “O caminho da cura é também terapêutico, mas a dimensão decisiva é de caráter espiritual. Muitos tinham perdido todo sentido de espiritualidade: o caminho da fé é o primeiro a perder-se e o último a ser recuperado. Muitas vezes se manifestam compreensíveis raivas para com Deus, mesmo muito fortes: muitos atravessaram o contraste dilacerante de quem falou muitas vezes do amor de Deus, enquanto carregava uma experiência vivida de violências sofridas e depois também praticadas”[40].

 

14. Saber lidar com as fraquezas

Nesse contexto, julgamos fundamental o papel da Igreja na busca de solução para as patologias de natureza sexual dos presbíteros. Faz-se necessário e urgente novo modo de falar da crise e do escândalo. Deve-se evitar o fomento de um clima de silêncio e de encobrimento e, com a mesma determinação, não sucumbir à linguagem fácil e escandalosa da mídia. O espírito de discernimento é também fundamental, pois não se pode tratar todos os fenômenos como se fossem da mesma natureza, tal como se fez na associação entre pedofilia e orientação homossexual, entre pedofilia e efebofilia, entre sexualidade e genitalidade. Seguramente podemos afirmar que um primeiro passo para a reta formação da dimensão humana do presbítero está na informação ampla e adequada de tudo o que envolve a alma humana, suas alegrias e tristezas, suas potencialidades e ambiguidades, sua pobreza e riqueza, sobretudo como ser criado por Deus.

 

15. Urgente promoção da pastoral presbiteral

Gostaria de concluir esta pequena reflexão sublinhando a necessidade de urgente promoção de verdadeira pastoral presbiteral. Por pastoral presbiteral podemos entender: “cuidado-acompanhamento, pessoal e comunitário, integral e orgânico que uma Igreja particular oferece aos seus pastores, para que estes se sintam tratados e vivam como pessoas, conheçam Jesus Cristo, sejam como ele, vivam e ajam como ele, de modo que possam dedicar-se plenamente ao ministério de pastores que Deus e a Igreja lhes confiaram em prol da comunidade”[41]. Há anos a CNBB vem desenvolvendo essa pastoral, com frutos significativos. Realizamos, em 2006, o 11º Encontro Nacional de Presbíteros, que constituiu um momento importante de partilha das experiências das diversas modalidades de trabalho junto aos presbíteros: associações diocesanas, grupos de fraternidade, que seguem a espiritualidade de Charles de Foucault, de Antoine Chevrier, dos Focolarinos e outras, encontros com presbíteros por faixa etária etc. Depois de anos de experiências, percebeu-se que elas são mais eficazes à medida que conseguem fomentar entre os presbíteros o companheirismo, o gosto por compartir a vida e a missão. Quanto mais os presbíteros se ajudam, se apoiam, melhor realizam aquilo que seu ministério comporta. Aqui se entende bem a afirmação do Papa João Paulo II: “O ministério ordenado tem uma radical forma comunitária e pode apenas ser assumido como obra coletiva”[42]. Essa perspectiva é acentuada pelo Papa, num primeiro plano, em relação ao bispo e ao presbitério, estendendo-a depois a todo o povo de Deus. É na profunda comunhão com seus irmãos de presbitério que o padre poderá encontrar um ponto de apoio humano e espiritual para vivenciar, na devida medida, as alegrias e tristezas, as vitórias e fracassos de sua missão. Por outro lado, a vivência comunitária com seus irmãos de sacerdócio exige também maturidade, capacidade de tolerância; ou seja, mística cristã. Na visão do psicólogo: “Somente pessoas realmente amadurecidas podem viver e construir comunidade. Maturidade que exige libertação para uma coerente independência no pensar, agir e sentir. E, muito especialmente, sentido crítico e dinâmico dos mecanismos de avaliação de si mesmo e das pessoas e situações. Sem esquecer um grau satisfatório de amadurecimento afetivo e emocional, sem o qual não seria apto para participar e construir comunidade”[43]. Poderíamos dizer: não estaria apto para exercer o ministério presbiteral, pois, ainda que para o presbítero diocesano não haja a cobrança de uma vivência em comunidade com seus irmãos de ministério, há, sim, a necessidade de um testemunho de abertura para o outro, como sinal da vida fraterna querida por Nosso Senhor.

A título de contribuição, gostaria de retomar as pistas surgidas nos encontros nacionais de presbíteros do Brasil, bem como as que vieram da 42ª Assembleia-Geral da CNBB, que tratou do tema da vida e ministério dos presbíteros em 2004. As pistas que seguem se referem à reflexão diretamente relacionada com a busca do aprimoramento humano e cristão dos presbíteros[44].

 

16. Algumas pistas para a pastoral presbiteral

— Desenvolver a consciência da identidade pessoal, superando a dicotomia entre missão e vida pessoal.

— Compreender a dimensão humano-afetiva de forma equilibrada, sem tabus ou relativismo, aprofundando a dimensão relacional de alteridade e tendo como eixo integrador a dimensão nupcial do celibato.

— Ter e fazer amigos, cultivando relações de complementaridade interpessoal. Que o presbitério seja o ambiente, o lugar e o ombro em que o presbítero possa reclinar a cabeça e o coração.

— Garantir, desde o seminário, a formação para a doação total, sem aburguesamento ou falsas seguranças, sabendo que a promessa evangélica é o cêntuplo já nesta terra, com perseguições.

— Formar para os valores humanos, tais como a coerência, a sinceridade, a justiça, a partilha, o senso de humanidade, a confiança mútua. O presbítero seja homem da Palavra e de palavra.

— Estabelecer, desde o seminário, parâmetros de organização e disciplina, construindo um projeto de vida, levando em consideração as várias dimensões da pessoa humana e tendo como eixo integrador a dimensão espiritual. Autodisciplinar-se em face dos meios de comunicação social, de maneira especial da televisão e da internet.

— Superar as distâncias entre sacerdotes jovens e idosos, sentindo-se todos corresponsáveis na missão e amando de corpo e alma a Igreja local.

— Trabalhar permanentemente as motivações vocacionais e evangélicas que levam a pessoa a concretizar a opção vocacional e sustentar o exercício ministerial.

— Buscar ajuda no diretor espiritual e nos movimentos de espiritualidade sacerdotal, a fim de “reanimar o dom de Deus que está em ti” (2Tm 1,6) e alcançar maior equilíbrio psicoafetivo.

 

Há muitas outras pistas, por exemplo: manter compromisso com a comunidade-povo; aprofundar o sentido da incardinação numa Igreja particular; cultivar a atitude de discipulado, de aprendiz: de Deus, da Palavra, dos irmãos e irmãs, consciente de que só quem é discípulo faz discípulos(as) (cf. Is 50,1-4 e Mt 13,52).

 

17. Comecemos o debate

Não sou psicólogo, apenas acumulo experiência de trabalho com os presbíteros do Brasil, no campo da formação presbiteral, em algumas dioceses e junto ao Setor de Vocações e Ministérios da CNBB. No âmbito latino-americano, minha vivência se resume ao bom tempo em que representei o Brasil na Organização dos Seminários Latino-Americanos (Oslam) e em outros encontros continentais. Consciente dessa limitação, procurei evitar pontos muito particulares da realidade brasileira, ressaltando os que me parecem servir de conexão com a realidade de outros países e nosso continente e nos possibilitam o diálogo sobre nossa situação e nossos desafios. A mudança de época que experienciamos toca a todos nós, latino-americanos e caribenhos, pois as culturas em que nossos povos foram engendrados, apesar de suas diferenças, têm laços muito estreitos, mais do que podemos perceber.

Para ser discípulo e missionário neste continente fortemente marcado, de um lado, pela desigualdade social e, de outro, pela riqueza das expressões religiosas e evangelizadoras, todo fiel batizado e, de maneira muito mais urgente, os presbíteros precisam assumir o desafio de buscar com tenacidade o equilíbrio nas relações e a maturidade humana. Espero que o que foi dito até aqui sirva como pontapé inicial para um debate frutuoso entre nós.



[1] BERNANOS, Georges. Diário de um pároco de aldeia. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2000, p. 42.

[2] Cf. Pastores Dabo Vobis (PDV), 43.

[3] SAFFIOTTI, Luisa. Para além da crise (entrevista). Il Regno, nº 2, 2004.

[4] PDV 43.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem. Cf. também 1Tm 3,1-5; Tt 1,7-9.

[7] Presbyterorum Ordinis, 3.

[8] MARRONCLE, Jeannine. O homem proibido: sobre a afetividade sacerdotal. Petrópolis: Vozes, 1992. Orelha primeira do livro.

[9] PAULO VI. Ecclesiam Suam, 36.

[10] VENTURA, Zuenir. Muda tudo, estilo de vida, família, sexo e moral. O Globo, 1999. Seção Comportamento, p. 15.

[11] CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil: 2003-2006. São Paulo: Paulinas, 2003, nº 66. (Documentos, 71.)

[12] VALLE, Edênio (org.). Padre, você é feliz? — Uma sondagem psicossocial sobre a realização pessoal dos presbíteros do Brasil. São Paulo: Loyola, 2003, p. 124.

[13] Ibidem, p. 123.

[14] Ibidem, p. 124.

[15] PDV, 3.

[16] COMISSÃO NACIONAL DE PRESBÍTEROS (CNP). Presbíteros do Brasil construindo história: instrumentos preparatórios aos Encontros Nacionais de Presbíteros. São Paulo: Paulus, 2001, p. 90.

[17] Idem, p. 93.

[18] SAFFIOTTI, Luisa, op. cit., p. 2.

[19] Ibidem, p. 3.

[20] SAMMON, Seán. Un corazón indiviso: el sentido del celibato. Madrid: Publicaciones Claretianas, 2003, p. 41.

[21] Ibidem, p. 94.

[22] BUELTA, Benjamín González. Salmos nas margens da cultura e do mistério. São Paulo: Paulinas, 1997, pp. 138-139.

[23] CNP, op. cit., pp. 94-95.

[24] COZZENS, Donald B. A face mutante do sacerdócio. São Paulo: Loyola, 2001, p. 49.

[25] Ibidem, p. 47.

[26] Ibidem, p. 52.

[27] MARRONCLE, Jeannine, op. cit., p. 18.

[28] Cf. GÜNTHER, Lendbrald. Boletim das Fraternidades Jesus Cáritas. Edição brasileira, nº 117, p. 75, março de 2004.

[29] CNP, op. cit., p. 104.

[30] SAMMON, Seán, op. cit., p. 16.

[31] Vale a pena a leitura do livro já citado de Jeannine Marroncle, O homem proibido: sobre a afetividade sacerdotal. Nele, a autora apresenta alguns relatos de mulheres que tiveram relações afetivo-sexuais, e algumas até genitais, com sacerdotes e analisa as consequências dessas relações.

[32] Ibidem, pp. 64-65.

[33] “Pedofilia refere-se a um adulto que experimenta urgências sexuais recorrentes e intensas, e fantasias eróticas focalizadas em menores pré-púberes. A idade desses costuma ser fixada arbitrariamente em treze anos ou menos. O adulto deve ser ao menos cinco anos mais velho. Portanto, utilizamos o termo pedofilia quando um menino ou uma menina antes da puberdade é objeto da fantasia, ou participante na conduta. Efebofilia é um termo que utilizamos quando nos referimos a um adulto que experimenta urgências sexuais recorrentes e intensas, e fantasias eróticas focalizadas em um menor púbere ou adolescente. A idade estabelece-se arbitrariamente entre os catorze e os dezessete anos. O adulto deve ser ao menos cinco anos mais velho”, op. cit., pp. 127-128.

[34] CNP, op. cit., p. 96.

[35] PDV, 74.

[36] Ibidem.

[37] NOUWEN, Henry J. M. Pobres palhaços em Roma: reflexão sobre solidão, celibato, oração e contemplação. Petrópolis: Vozes, 1997.

[38] CNP, op. cit., p. 105.

[39] NOUWEN, Henry J. M. Intimidade: ensaios de psicologia pastoral. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 36.

[40] SAFFIOTTI, Luisa, op. cit.

[41] VILLALTA, Guido. “La pastoral sacerdotal en América Latina y el Caribe”. Boletim Celam, nº 282, 1999, p. 34.

[42] PDV, 17.

[43] MONTEOLIVA RAMOS, Pe. José Maria. Felicidade humana e vida religiosa. São Paulo: Loyola, 1994, p. 93.

[44] CNBB. Vida e ministério dos presbíteros. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 30-31. (Estudos, 88.)

Pe. Manoel Godoy