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Publicado em número 237 - (pp. 16-24)

Espiritualidade presbiteral e diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil

Por Pe. Manoel José de Godoy (Comissão Nacional de Presbíteros — 49)

“O estado atual do sacerdócio, claro, reflete todas as ambiguidades, todo o heroísmo e toda a fidelidade, toda a covardia e a fraqueza presentes ao longo da história da Igreja” (Donald Cozzens).

 

Introdução

Um dos ganhos dos últimos tempos é o da consciência cada vez maior de que, antes de ser visto como padre, o presbítero precisa ser visto como ser humano e cristão. Isso, porém, tem implicações muito sérias. Ser humano é um processo que começa no ventre materno e termina no último suspiro da vida. Ainda assim, seria bastante oportuno que, antes de assumir o compromisso ministerial, o padre já tivesse alcançado um patamar mínimo de maturação, que o habilitasse para o relacionamento com a enorme diversidade de experiências vitais que terá pela frente.

Um complicador dos últimos tempos está no fato de que o processo de maturação do ser humano anda cada vez mais lento. Hoje, vive-se mais e aprende-se a viver bem mais tarde. Retarda-se significativamente a idade da decisão. Inúmeros fatores culturais, sociais e políticos contribuem para que isso aconteça, mas sem dúvida a insegurança econômica tem jogado um dos papéis principais nessa questão. Os jovens não veem claro seu projeto de vida e vão se acomodando indefinidamente no ninho da casa paterna. Há, na realidade, medo de não conseguir sequer repetir a história de vida dos pais — vista por eles, muitas vezes, de modo bastante crítico.

Nesse contexto, as questões da subjetividade e da consciência do direito de cada um de ser feliz emergem com força total. Como, porém, ter esse direito garantido? Na maioria dos casos — refiro-me aos jovens —, a sensação que se tem é que a vida de cada um se tornou difícil jogo de ensaio e erro. E será que em relação aos padres é muito diferente? Eles não provêm desses mesmos grupos de jovens?

Tomemos por base a reflexão que se fazia por ocasião do Segundo Encontro Nacional de Presbíteros (1987), em que foram tratadas algumas dimensões da vida do presbítero em busca da sua realização como pessoa[1]. Destacamos dela as questões referentes à identidade e à intimidade do presbítero. Tentaremos, ainda, tratar do cotidiano do padre, pois, apesar de uma vida repleta de grandes momentos, também é um ser humano como outro qualquer e tem no dia a dia o fio condutor de sua existência. Sobre essa base, trataremos das exigências espirituais para um compromisso com as atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE).

 

1. O desafio da identidade

A identidade representa questão crucial no processo de realização e maturação do ser humano, e, no caso do padre, está em jogo a felicidade de todo um povo que dele se aproxima e com o qual partilha sua vida. Assumindo o desafio que a modernidade lhe impôs, a Igreja tentou dar uma resposta ao ser padre num contexto totalmente novo e desafiador. Assim, assistimos a verdadeiras revoluções no modo de exercer o ministério: “do púlpito à participação; de pregador clássico a mistagogo contemporâneo; do estilo solitário ao ministério colaborativo; de uma espiritualidade monástica a uma espiritualidade secular; da salvação de almas à libertação de pessoas”[2]. Tudo isso, porém, traz hoje ao padre algumas questões fundamentais para a definição de sua identidade:

“Quem sou? O que me motiva e define? Como me posiciono no mundo? Que valores e objetivos me orientam? Que forças movem meus sentimentos, minhas ideias, minhas opções de fundo? Onde estão as certezas que dão fundamentação e rumo à minha ação? Quais as ambiguidades, as penumbras, os conflitos que tornam pesado o meu existir? Quem é o outro para mim? Quem é meu interlocutor, meu companheiro? A quem amo? Para quem e para que existo? Que sentido dou à minha vida? O que é para mim história e tempo? Que transcendência a experiência me ensinou a assumir como realidade última? Quem é o Deus em quem acredito?”[3].

 

2. Respostas que a Igreja vem dando ao ser do padre

Durante os últimos séculos, a Igreja apresentou um modelo idealizado e bem definido de padre. Podemos dizer que até se tinha uma receita universal. A vestimenta, a língua, os ritos e até o modus vivendi de cada um já estavam estabelecidos. Esse modelo, porém, não resistiu aos ventos da modernidade, com suas aspirações subjetivas. A dimensão da humanidade do padre, desconsiderada por tanto tempo, irrompeu como uma avalancha, arrebentando esquemas preestabelecidos. A calmaria conheceu seu revés e até hoje não é fácil juntar os pedaços. O modelo tridentino, de forma muito coerente, deu conta de responder às questões referentes ao ser padre por quatro séculos. As condições históricas assim o permitiram.

É bom registrar que, antes do modelo tridentino, havia outras maneiras de ser padre. Na Antiguidade, nos primeiros quatro séculos da era cristã, os padres formavam um colegiado, que auxiliava o bispo em questões de doutrina e disciplina da Igreja local. Depois, no fim do século IV, começa uma mudança pela qual os presbíteros assumem as funções até então reservadas exclusivamente ao bispo, ou seja, a presidência da eucaristia, com a pregação ou homilia, e a administração do batismo. Há também, na mesma época (final do século IV), a tendência de reunir o clero na cidade, formando uma espécie de comunidade de vida monástica. É interessante observar que entre os monges, a partir dos séculos IX e X, houve um movimento forte de clericalização: “… enquanto se faziam essas tentativas de impor ao clero secular uma regra de vida monástica, também se realizava um movimento inverso e, afinal, convergente: os monges se clericalizavam”[4]. O movimento monástico, que começou essencialmente laico (séculos IV-VIII), sofreu mudança significativa com a multiplicação das missas, sobretudo aquelas na intenção dos defuntos, exigindo dos monges a ordenação sacerdotal. Outra mudança na concepção do sacerdócio se dá no século XII, quando, de maneira definitiva, institui-se a obrigação do celibato.

Com o Concílio de Trento, a figura do padre ficará colada à prática sacramental, com destaque à presidência do sacrifício eucarístico, embora haja também — por parte de alguns — um acento sobre a pastoral e a pregação da Palavra, propiciando o surgimento de santos presbíteros, tais como São Vicente de Paulo (1660) e São João Eudes (1680).

Hoje, porém, apesar de muito saudosismo, o modelo tridentino não corresponde às exigências do mundo globalizado e pós-moderno, onde a religião conheceu um deslocamento espetacular do centro organizador da sociedade para a concorrência com outras forças ordenadoras; da predominância do modo de ser católico para um fantástico pluralismo religioso; de uma religião com forte acento no institucional, confundida muitas vezes com o Estado, para uma expressão cada vez mais privatizada.

Entre nós, no contexto dos regimes autoritários, emergiu uma figura de padre identificada com a transformação social, a qual serviu de elemento definidor da identidade para muitos. Esse modelo, contudo, era muito conjuntural e não conseguiu sobreviver ante as mudanças supracitadas. É certo que a opção pelos pobres pode se converter em núcleo duro da identidade presbiteral, mas exige uma mística de não fácil acesso a todos.

O certo é que a construção da identidade do novo padre permanece como um desafio para todos. Supõe-se que os padres dos institutos religiosos tenham uma identidade mais definida; mesmo assim, ante o número dos que estão inseridos nos novos movimentos, sobretudo os de tendência carismática, há a sensação de que só o carisma dos seus fundadores não basta. Também estão em busca de sua identidade. Para os padres diocesanos, a contribuição, centrada na caridade pastoral, do Concílio Vaticano II, que apresenta bela síntese do ministério presbiteral nos três múnus — profeta, sacerdote e pastor —, a exemplo de Cristo, continua sendo a grande fonte de inesgotável inspiração (cf. LG 25-27; PO 14). Sem aprofundar muito essa reflexão já bastante desenvolvida, destacamos a síntese presente no Decreto sobre a Formação Presbiteral Optatam Totius, que, conferindo ao fim pastoral o eixo da formação presbiteral, retoma muito bem as perspectivas de Lumen Gentium e de Presbiterorum Ordinis: “Toda a educação dos estudantes seja tal que neles se formem verdadeiros pastores de almas, a exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mestre, Sacerdote e Pastor. Preparem-se, pois, para o ministério da palavra: a fim de que entendam sempre melhor a palavra revelada de Deus, que a possuam pela meditação e a exprimam por palavras e atitudes; para o ministério do culto e da santificação: a fim de que, pela oração e desempenho das sagradas celebrações litúrgicas, realizem a obra da salvação através do Sacrifício Eucarístico e dos Sacramentos; para o ministério pastoral: a fim de que saibam representar diante dos homens a Cristo, que ‘não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em redenção de muitos’ (Mc 10,45; cf. Jo 13,12-17), e que, feitos servos de todos, ganhem a muitos (cf. 1Cor 9,19). Por isso, todos os aspectos da formação, o espiritual, o intelectual e o disciplinar, em ação conjunta devem ordenar-se a este fim pastoral” (OT 4).

As atuais DGAE da Igreja no Brasil põem em relevo essa perspectiva, ao considerar como fundamental para a evangelização, por fidelidade a Jesus Cristo e à missão dele recebida, a responsabilidade da Igreja de oferecer, em cada época, o acesso à Palavra de Deus, à celebração da eucaristia e aos demais sacramentos, e de cuidar da caridade fraterna e do serviço aos pobres. “Uma antiga tradição, que se inspira na Palavra de Deus e que foi diversamente retomada na história da Igreja, descreve essa responsabilidade segundo um tríplice múnus: ministério da Palavra, ministério da liturgia, ministério da caridade” (DGAE 19).

O ministério do padre, compreendido assim à luz do Concílio, supõe, todavia, que não tenham sido deixadas de lado as questões referentes ao ser homem e cristão de cada candidato a essa sublime missão. Daí a pertinência de considerar o padre como homem de relações complexas e cada vez mais desafiadoras.

 

3. O padre: um homem de relações

Olhando o cotidiano de um padre, uma das coisas que mais nos chamam a atenção é a variedade de relações que marca o exercício do ministério presbiteral. A reflexão de Severino Pagani continua sendo bastante esclarecedora nesse aspecto: “Quando um jovem se torna padre deseja, certamente, aprender a amar na forma concreta do ‘amor pastoral’. E à medida que vai exercendo o ministério de presbítero, com o passar dos anos, esperamos que não perca este desejo. A linguagem fundamental do amor se expressa através da rede de relações pessoais e comunitárias que o padre é capaz, por graça e qualidades pessoais, de estabelecer entre as pessoas. Individualiza-se aqui, com muita simplicidade, a atual vivência relacional de muitos padres para reafirmar com força a sua riqueza e vitalidade, mas também para refletir alguns desvios que a cultura e as estruturas eclesiais contemporâneas apresentam”[5].

Considerando o padre como um homem de relações, fica claro que a definição de sua identidade não é uma questão individual, pois implica a sua relação com o presbitério, com o bispo, com a Igreja e com a comunidade concreta a que está servindo. Formados, na maioria das vezes, para obedecer à hierarquia e exercer o poder sacerdotal sobre os leigos, inúmeros padres revelam dificuldades no relacionamento com os seus pares, os irmãos no sacerdócio, com os quais, não raro, competem e disputam espaço.

Hoje, observa-se ainda que os padres, na sua grande maioria, vivem sob forte carga de trabalhos, não encontrando espaços para um cuidado de si próprios. Nesse sentido, afirma Pagani: “Não precisamos de muito esforço para perceber que hoje o padre frequentemente se encontra em meio a uma complexa dinâmica de conflitos. Presidente da comunidade, está de fato, queira ou não, ao centro de muitas interações e relacionamentos. Encontra-se praticamente coagido a conviver, mais do que com as suas próprias necessidades e carências, com as demandas, as urgências e os conflitos dos seus contemporâneos. A convivência com as marcas de sua história e da sua personalidade, com as suas possibilidades e seus limites, é compartilhada, ao longo de cada jornada, com as de seus irmãos, tão diferentes pela formação, pelas exigências e aspirações. É prisioneiro dos compromissos, das estruturas, das instituições educativas, das exigências do culto, da solicitação da caridade. Sente-se dividido entre o seu ser eclesiástico e a sua personalidade individual; vive em tensão entre os seus gostos e os seus deveres; transita entre o dever ser e a existência real”[6].

Ora, tudo isso vai exercer imensa influência nas suas necessidades intelectuais, afetivas, corporais, espirituais etc. Sob esse fundamento, Pagani afirma a necessidade de considerar três elementos: o trabalho cotidiano, o conflito como realidade permanente e a solução racional dos problemas — nem sempre praticável.

 

3.1. O trabalho cotidiano

Segundo Pagani, a riqueza das relações depende também da qualidade do trabalho. Para esse autor, “muitas relações cansativas do padre com a sua comunidade dependem, inconscientemente, da incapacidade de administrar suas atividades e estabelecer prioridades. É uma das tarefas mais difíceis, sobretudo para quem quer se gastar realmente e sem medida a serviço do Reino. A questão do tempo e do lugar onde distribuo as minhas energias prepara certamente um êxito diversificado das minhas relações”. São bastante oportunas as perguntas que esse autor formula: “Para que forma de atividade estou sempre disponível e para que tipo de pessoas estou sempre pronto? De que modo o cansaço, a preocupação, a defesa chegam afinal a modular a minha linguagem, o meu tom de voz, o modo de falar com as pessoas? Que forma de inteligência intuitiva utilizo para exortar, para reprovar, para consolar as pessoas?” Conclui dizendo que “não basta trabalhar pastoralmente, mas importa trabalhar bem para exprimir um contexto bom de relações do presbítero com a sua comunidade”.

Para reafirmar suas palavras, Severino Pagani recorre a Karl Barth: “O trabalho humano, para ser bem feito, precisa estar liberto das tensões. Isto vale tanto para o trabalho material como para o espiritual. O trabalho em estado de tensão é doentio, perverso, indócil a Deus e destrutivo para o homem. Estar em tensão significa trabalhar dando muita importância a si mesmo, esquecendo-se de Deus. Onde existe esta tensão, a pessoa se perde em si mesma e perde também a ligação com os outros. Torna-se confusa a visão sobre as autênticas e justificadas instâncias da vida, e o homem se torna vítima de desejos vazios”[7].

O certo é que vivemos numa sociedade por demais complexa, que nos põe diariamente frente a frente com inúmeros conflitos — às vezes inusitados. Administrar a si mesmo e saber viver no meio dos conflitos, sem recorrer ao subterfúgio do irenismo nem tampouco à supervalorização deles, é tarefa cotidiana que o ministério presbiteral nos impõe.

“A dificuldade nasce do fato de que a nossa cultura nos prepara mal e nos ajuda pouco na gestão dos conflitos. A cultura atual apresenta as características humanas em forte contradição e competição, em termos de sucesso é insucesso, dividindo rigidamente entre bom e mau, totalmente imperfeito ou perfeito, justo ou absolutamente injusto, vencedor ou perdedor. Esse modo de consolidar drasticamente sentimentos e problemas cria fortes e duras divisões, e favorece uma intensa polarização contrastante de percepções e sentimentos, que inevitavelmente interferem na qualidade de nossas relações”[8]. Faz bem nesse contexto manter-se lúcido e não ter ilusão, pois a graça do sacramento não exime o padre desse mecanismo relacional.

A espiritualidade cristã tradicionalmente nos propõe alguns meios que não devemos ignorar: a oração, os sacramentos, a orientação espiritual, todas as formas de convivência, partilha, revisão de vida em equipe. Por outro lado, não podemos ignorar um bom acompanhamento psicológico, quando este se fizer necessário.

 

3.2. Reflexos do trabalho cotidiano no ser do padre

Na linha dos relacionamentos humanos que o padre trava no seu cotidiano, Severino Pagani apresenta quatro tipos de relações negativas e quatro positivas, como reflexos do trabalho cotidiano dos padres.

 

Relações negativas:

a) Onipotência: quando o padre pensa e age como se a totalidade de sua entrega, do dom de si, devesse coincidir necessariamente com a totalidade dos resultados.

b) Colérica: tendo cada dia de estabelecer relações com as pessoas, o padre é chamado a viver um excepcional controle de si, o qual, às vezes, é difícil conservar. O fato mais deplorável não é que o padre se irrite, mas que não tenha consciência disso.

c) Nostálgica: surge quando o padre, na sua comunidade, mede tudo com base em sua vivência e em sua idade, em suas experiências, sucessos e fracassos. Torna-se praticamente incapaz de abrir-se ao futuro.

d) Esgotada: são as situações nas quais as pessoas, sobretudo as empenhadas numa relação de ajuda, em certo momento demonstram visível cansaço, sentem-se estressadas, suas energias são queimadas inutilmente ou perdidas e as suas relações se tornam esgotadas.

 

Relações positivas:

a) Existência reconciliada. O cristão ordenado presbítero é convidado a viver entre as pessoas com a mesma mansidão de Jesus. À medida que está reconciliado consigo mesmo, encontra-se situado no lugar certo e no exercício do ministério que lhe corresponde.

b) Relação com Deus. Uma boa relação consigo mesmo, premissa de toda autêntica e humana relação, encontra seu fundamento no íntimo relaciona­mento com Deus.

c) Relação com o outro. Na relação pessoal, a alteridade é condição para profunda comunhão.

d) Relação com a história. A relação com o passado, com o presente e com o futuro de si mesmo e do mundo é de fundamental importância para os que são chamados a conduzir as comunidades.

 

3.3. Comparação com situações brasileiras

Apesar de não sermos um país dado à cultura da pesquisa, várias vezes se tentou levantar as características comuns dos sacerdotes brasileiros. É impressionante perceber a tipologia que o Plano de Emergência — primeiro plano pastoral nacional, concebido pelo episcopado brasileiro para o período de 1962 a 1965 já apresentava sobre os presbíteros da época:

 

Padres pessimistas. Mesmo abstraindo de influências de temperamento, seu número tende a aumentar. São padres que lutaram. Durante alguns anos deram, talvez, o melhor de suas energias. Sentiram-se sem apoio e desestimulados. Vieram os fracassos. Os fundamentos espirituais foram abalados. Hoje estão decepcionados, alguns recalcados, desiludidos de tudo e de todos.

 

—  Padres conformistas. Passaram os primeiros anos de fervor sensível. Com o tempo, várias ilusões caíram por terra. Encontram-se, hoje, frente a frente com uma dura realidade. Acham inútil e ilusório empreender grandes esforços. Formam sua consciência e estabelecem um padrão regular de vida. Alguns se tornam autênticos funcionários do altar.

Padres ativistas. Levados talvez por inclinação temperamental, lançam-se a grandes empreendimentos exteriores. Sentem-se estimulados e envaidecidos pelos aplausos e admiração do povo. Falta-lhes, porém, o fermento sobrenatural que anime seus esforços para autêntica construção do Reino de Deus. Para alguns, conforme depoimentos ouvidos, as obras exteriores são uma fuga, um derivativo de fracassos e desânimo na vida de apostolado.

Padres angustiados. Tomaram consciência do problema; são, talvez, capazes de medir suas verdadeiras dimensões. Não estão desanimados. Querem agir. Sentem aguçado seu espírito de fé e ideal apostólico. Mas não veem, claramente, as pistas de solução.

Padres dispersivamente apostólicos. Alguns são de uma generosidade e dedicação heroicas. Trabalham, esgotam-se, consomem-se pela construção do Reino de Deus. Falta-lhes, porém, uma visão dos verdadeiros dados do problema. Deixam-se arrastar pelo imediatismo. Empreendem várias atividades paralelas, descoordenadas, sem plano de conjunto. Perdem-se em detalhes secundários e acidentais e deixam de lado posições fundamentais e estratégicas.

Padres profundamente apostólicos. Têm consciência clara da situação, visão global e apostólica de todos os aspectos, intuição das linhas mestras de solução, capacidade concreta de realização, profundo espírito sobrenatural. Ressentem-se, às vezes, de mais ampla e efetiva coordenação em plano interparoquial e diocesano. Alguns, com tenacidade, perseverança e espírito sobrenatural, têm conseguido prepará-la e mesmo realizá-la.

 

É claro que essas aproximações devem levar em conta o papel fundamental que desempenha a instituição católica no modus vivendi sacerdotal. Sendo a tipologia acima pré-conciliar, podemos compará-la com as novas posturas dos padres pós-conciliares, no imediato do pós-concílio e nos dias de hoje. As opções da Igreja influenciam muito o comportamento dos padres.

 

4. A questão da intimidade presbiteral

Tema profundamente unido ao da identidade, a intimidade traz a questão da unicidade irredutível do ser homem de cada um. O presbítero tem um modo de ser original, que pode ser fonte de sua riqueza pessoal, quando consegue assumir todas as dimensões do seu ser padre, ou obstáculo para sua real integralidade, quando vive as exigências de seu estado como imposições da instituição. Já o texto de preparação para o 2º ENP nos instava a prestar atenção na necessidade de um cuidado sério com a dimensão da intimidade na vida dos presbíteros: “A dignidade do homem exige que ele possa ter uma dimensão que lhe é própria e exclusiva: sua intimidade, seu modo de ser original, sua radicalidade pessoal e religiosa. Sendo o papel sacerdotal, em todos os tempos e religiões, um dos papéis sociais antropologicamente mais esvaziadores do núcleo íntimo da pessoa, é mister que, no caso do padre católico, embora também ele se enquadre nesta determinação sociológica, se recuse o primado ao que despersonaliza, e se dê ênfase crescente ao que fomenta o ser-assim de cada um”[9].

Tomar posse de sua intimidade é, dessa forma, o desafio que cada ser humano, cada padre, tem de enfrentar. Sem ela, “uma pessoa não pode conhecer o que seja a amizade, como entrega e cuidado pelo outro desde o gesto gratuito da oferta de si”. Sem autêntica integração de sua intimidade, a pessoa corre o risco de amar no outro apenas aquilo que é reflexo de si, de seus desejos. Ama apenas a sua projeção. É a conhecida fixação narcísica. Como constata Donald Cozzens, ao perceber a falta de harmonia com a própria intimidade em muitos padres: “O que está faltando para muitos sacerdotes, acredito eu, é a experiência da união, da intimidade de uma comunhão santa com alguns bons amigos. Por si só, sem uma profunda e autêntica amizade humana, a intimidade com Deus experimentada na oração, nos sacramentos e nas práticas devocionais deixa o espírito ligeiramente fora de equilíbrio”[10]. E acrescenta: “Casados ou solteiros, jovens ou idosos, os indivíduos precisam de algumas pessoas em sua vida que sejam, ou possam se tornar, almas gêmeas”[11]. Elemento fundamental, assim, na construção da identidade do presbítero é sua capacidade de cultivar santas e profundas amizades.

O desafio está também em dimensionar bem a vivência da intimidade, como aquela que inclui pudor, direito à privacidade, não redução à função. Intimidade é aprimoramento da autoconsciência como reserva com base na qual um ser humano, permanecendo ele mesmo, pode se abrir inteiramente ao outro e a Deus. Cozzens diz isso com palavras bastante claras: “Experimentamos intimidade com outro quando somos capazes de estar diante dessa pessoa sem nossas defesas e máscaras habituais, vulneráveis e, no entanto, confiantes”.

No caso do presbítero, intimidade possuída também significa uma integração da questão existencial do feminino em sua vida. “Com o abandono dos tabus e das regras multisseculares de separação entre o mundo masculino e feminino, especialmente no caso do clero, e com a mudança qualitativa do papel e da presença da mulher na sociedade, bem como devido à experiência de um trabalho pastoral em que homens e mulheres condividem as responsabilidades pela evangelização, a solução personalizada da relação entre o padre e a mulher se torna cada vez mais importante para a vida de celibato livremente vivido onde, malgrado a inevitável conotação de renúncia, o celibato possa ser a opção de quem reserva sua intimidade pessoal para um amor que se reparte”[12].

Com a crescente presença de padres homossexuais no seio da Igreja, esse tema da intimidade bem que poderia ser mais bem enfrentado pela instituição. Se é fato que a sociedade abandonou o tabu da separação dos mundos masculino e feminino, a Igreja católica, por sua própria estrutura, ainda não conseguiu fazer o mesmo de modo pleno. Vale aqui recordar o desafio reassumido pelo episcopado brasileiro, nas atuais DGAE: “… a presença feminina, predominante nos trabalhos de base, deverá ter maior acesso às responsabilidades de direção e à participação nas decisões importantes da vida eclesial. Mais ainda: é preciso que a questão do reconhecimento da dignidade da mulher na Igreja e a busca de relações verdadeiramente humanas entre homens e mulheres sejam objeto de reflexão teológica e de efetivo progresso na vida pastoral das comunidades”[13]. Essa perspectiva poderá contribuir para uma boa integração de gêneros no interior da instituição católica, favorecendo verdadeiras amizades entre presbíteros e grandes mulheres, contribuindo para autênticas integrações da intimidade na vida de presbíteros. Cozzens corajosamente alerta: “Necessidades de intimidade não satisfeitas, acredito, levaram inúmeros sacerdotes a pensar que só conseguiriam encontrar uma verdadeira realização no casamento ou, no caso do sacerdote de preferência homossexual, numa relação sexualmente ativa com outro homem”[14].

A urgência de tratar da questão da intimidade na vida presbiteral não é de ordem meramente psicológica, mas também espiritual, pois como Cozzens bem sintetiza: “Quanto mais profundo seu amor por Deus, maior sua capacidade de amor e amizade humanos. Inversamente, quanto mais autênticas suas relações celibatárias, mais central e determinante é seu amor por Deus”[15].

 

5. A chave do tríplice múnus

5.1. O ministério da Palavra

Como bem disse Donald Cozzens: “A imaginação do sacerdote tem sido forçada em anos recentes a contemplar com novos olhos sua responsabilidade como guardião da palavra”. Já o Concílio afirmava: “O povo de Deus congrega-se antes de mais nada pela palavra do Deus vivo, palavra que se há de procurar com pleno direito nos lábios dos sacerdotes” (PO 4). E mais: “A pregação sacerdotal, para mover mais prontamente as mentes dos ouvintes, não há de expor apenas de modo geral e abstrato a palavra de Deus, mas deverá aplicar a verdade perene do Evangelho às circunstâncias concretas da vida” (PO 4).

Sem menosprezar a necessidade do estudo exegético e da hermenêutica e de boas regras para a homilética, deve-se constatar que há uma dimensão que transcende a tudo isso e se impõe como fundamental e insubstituível: a formação humana do pregador. Donald Cozzens diz com muita propriedade: “Embora o sacerdote seja um peregrino junto com todos os demais fiéis, sua percepção de si mesmo como homem e sacerdote dispõe a comunidade a escutar a palavra do Senhor. Deve ficar claro que ele próprio escutou humildemente a palavra do Senhor. Em sua atenção pessoal à palavra, sua identidade como sacerdote adquire nitidez. É no poder dessa palavra que ele encontra a coragem para permanecer fielmente um homem da Igreja sem deixar de ser sua própria pessoa”[16].

É importante também o sacerdote ter consciência de que não prega sozinho: “Algo se perde se o sacerdote se esquece de que é um dentre um grupo de pregadores, ligado ao bispo, aos presbíteros e diáconos de sua Igreja local e compartilha a missão comum de ser guardião da Palavra”[17].

A pregação deve brotar de uma vida pautada pela oração, mas, como afirma Cozzens, citando Abraham Heschel: “A pregação é bem-sucedida quando leva a assembleia à oração”; ou ainda: “o teste de um verdadeiro sermão é que ele pode ser convertido em oração”[18].

A responsabilidade com a Palavra é algo maravilhoso e temeroso ao mesmo tempo. Precisamos, como sacerdotes guardiões da Palavra, ter claro que “a maioria das palavras que ferem não são as palavras ditas em nome da retidão e da justiça, nem a palavra profética que o pregador e a assembleia precisam ouvir, porém com mais frequência a palavra pastoral mal expressa, irrefletida, cruel e legalista”[19]. Em uma sentença: a palavra clerical que ordena sem prestar atenção nas circunstâncias dos ouvintes ou que põe as políticas e a imagem da Igreja institucional à frente do bem estar pastoral do povo de Deus.

É preciso, por fim, alimentar a mente com novas ideias para fazer surgir novas imaginações e combinações da Palavra de Deus com a realidade do povo.

As DGAE alertam: “É essencial que pastores e fiéis se empenhem para que a Palavra seja claramente anunciada nas celebrações ao longo do ano litúrgico, seja comentada e refletida com homilias cuidadosamente preparadas, seja encarnada na vida” (nº 21).

 

 

5.2. O ministério da liturgia

As DGAE destacam a importância da celebração eucarística na vida cristã, mas dimensionam o ministério da liturgia na perspectiva da vivência de todos os sacramentos, definidos como “sinais da comunhão com Deus em Cristo, que marcam com sua graça momentos fortes da vida”. Ao falar do sacramento da Ordem, afirmam: “Com o sacramento da Ordem, a Igreja constitui os ministros que, de modo especial e único, fazem as vezes do Cristo Bom Pastor” (DGAE 31). Submete toda a prática sacramental da Igreja e o relacionamento dos seus ministros com o povo de Deus à ótica do Bom Pastor. No melhor estilo da caridade pastoral expressa pelo Concílio, as DGAE põem em relevo a postura pastoral de acolhimento e carinho que, Os sacerdotes, sobretudo, devem ter com todos os que procuram os sacramentos na Igreja. Particularmente ricos de significado são os números de 32 a 35 das atuais DGAE. Afirmam a necessidade da superação do ritualismo e dos hábitos apenas devocionais e jurídicos da recepção dos sacramentos (nº 32); alertam para o fato de que a pastoral sacramental não se dirige apenas aos católicos “praticantes”, mas deve, também, cuidar do grande número de católicos que desejam manter algum vínculo com a Igreja, especialmente em certas ocasiões: matrimônio, batismo e primeira comunhão dos filhos, exéquias ou missas pelos defuntos da família… (nº 33), salientando que essas ocasiões de encontro e de diálogo não devem ser desprezadas ou subestimadas (nº 34); proclamam com clareza que “toda pessoa que procura a Igreja deve ser acolhida com simpatia” (nº 34); por fim, concluem profeticamente: não devemos impor a todos, de forma indiscriminada, idênticas exigências, quando na realidade as pessoas são diversas e os graus de proximidade com a vida eclesial são muito diferentes. “Não se pode exigir dos adultos de boa vontade aquilo para o que não lhes foi dada adequada motivação”[20]. Por isso, os pastores, com a ajuda de ministros leigos e equipes pastorais, devem procurar o diálogo pessoal, considerando cada caso segundo suas exigências específicas[21]. Mesmo se o diálogo levar à conclusão de que a pessoa não tem condições de ser admitida ao sacramento, ela deve sair do encontro sentindo que foi acolhida e escutada e que poderá voltar, quando mais disposta a assumir os compromissos da fé cristã (nº 35).

 

5.3. O ministério da caridade

Na melhor tradição paulina (cf. 1Cor 13,13) as DGAE põem em relevo a caridade, à frente de todo o processo de evangelização. “Se as fontes da vida da Igreja são a Palavra e o Sacramento, a essência da vida cristã é o amor” (nº 37). “O amor cristão tem duas faces inseparáveis: faz brotar e crescer a comunhão fraterna entre os que acolheram a Palavra do Evangelho e leva ao serviço dos pobres, ao cuidado para com os sofredores, ao socorro de todos os que precisam, sem discriminação” (nº 38). Saber ver as reais necessidades das pessoas deve ser condição fundamental para o exercício do ministério presbiteral e fonte inspiradora para uma pastoral centrada no ser humano e não na instituição. Daí deve brotar a verdadeira espiritualidade presbiteral, que sabe de forma abnegada atender as pessoas, saindo do centro das atenções que a cultura moderna narcísica nos impõe como lugar preponderante.

As DGAE afirmam que “a vivência da tríplice dimensão — escuta da palavra, comunhão fraterna e compromisso com a justiça — alimenta e expressa a espiritualidade batismal, que configura o cristão com Cristo e o faz viver como filho, irmão e servidor” (nº 43). Esta vivência, lida na perspectiva do ministério presbiteral, deve se impor como exigência básica, pois o presbítero, antes de ser o ministro do povo, deve ser um cristão autêntico, assumindo plenamente os compromissos que emergem da condição de batizado.

 

6. A chave dos três âmbitos: a pessoa, a comunidade e a sociedade

As DGAE propõem como ações prioritárias para a Igreja na atualidade: 1. A promoção da dignidade da pessoa, assumindo o desafio da construção da identidade pessoal e da liberdade autêntica numa sociedade consumista; 2. A renovação da comunidade, ante o desafio da fragmentação da vida e da busca de relações mais humanas; 3. A construção de uma sociedade solidária, enfrentando o desafio do escândalo da exclusão e da violência.

Essa tarefa supõe o testemunho dos ministros ordenados. Como bem dizia o Papa Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres ou então se escutam os mestres é porque eles são testemunhas” (EN 41). As DGAE apresentam, nessa mesma linha, as pistas para um anúncio adequado do evangelho, o qual, respeitando a liberdade da pessoa, priorize o testemunho: “Não se trata de vencer pelo ‘argumento de autoridade’, aceito pelo prestígio do mestre ou da instituição. As pessoas querem se convencer pessoalmente; querem discutir, refletir, avaliar, ponderar os argumentos a favor e contra determinada visão, doutrina ou norma. Portanto, o evangelizador deve ter consciência que, mesmo em se tratando da ‘Boa Nova’, não pode ‘impor’, nem receberá audiência fácil, mas deverá esforçar-se para persuadir o ouvinte, pelo testemunho de vida e por uma argumentação sincera e rigorosa, que estimule no interlocutor a busca da verdade, respeitando, porém, sua liberdade de escolha” (nº 98).

Embora em outro contexto, mas na mesma perspectiva do imperativo de um autêntico testemunho, que confere à palavra uma autoridade moral consistente, vale a pena destacar o seguinte texto das DGAE: “Trabalhem por uma mudança de mentalidade, visando a superar o excessivo apego aos bens materiais e ao consumismo. Adotem um modo de vida sóbrio, simples e austero, condição de uma sociedade sustentável, que respeita o meio ambiente e usa com sabedoria os recursos naturais, ao mesmo tempo em que garante condições dignas de vida para todos”[22] (nº 183).

A perspectiva dos três âmbitos pode ainda ser tratada vendo o presbítero como alguém que cuida de sua pessoa, mas de maneira que prioriza a pessoa do outro, sobretudo dos pobres, a quem deve dirigir seus maiores esforços; como alguém que entendeu que não se trata de reduzir seu ministério à dimensão intimista, mas que a pessoa se realiza na rede de relações propiciadas pelas comunidades, sobretudo as de menor tamanho; como alguém que também entendeu que, por melhor que sejam as comunidades, elas não se bastam a si mesmas, mas plenificam sua vocação evangélica no contato com o leque mais amplo de homens e mulheres de boa vontade, na construção de uma sociedade que seja sinal do Reino de Deus.

 

7. A chave da espiritualidade da comunhão

Percorrendo as DGAE, constatamos que a espiritualidade de comunhão não só está presente em diversas passagens, mas perpassa todo o texto. É conveniente, porém, precisar bem o que as DGAE entendem por espiritualidade de comunhão para evitar certas ambiguidades tão presentes em diversos discursos eclesiásticos. Comunhão não pode ser confundida com despersonalização, como muitas vezes sugere a seguinte postura: cada vez que se busca o sentido de algumas normas ou exigências da instituição ou se tem uma perspectiva diferente de um hierarca, muitas vezes se ouve: “Você está quebrando a comunhão”. Ora, essa postura não favorece uma verdadeira espiritualidade de comunhão, pois esta supõe pessoas adultas que aprenderam a viver e a conviver com o diferente. As DGAE definem a espiritualidade da comunhão como:

— ter o coração voltado para o mistério da Trindade;

— ser capaz de sentir o irmão de fé como um que faz parte de mim;

— ser capaz de ver, acima de tudo, o que há de positivo no outro;

— saber criar espaço para o irmão: a) levando os fardos uns dos outros; b) rejeitando tentações egoístas que geram competições, arrivismo, suspeitas, ciúme… (nº 18);

— saber valorizar os organismos de participação, os conselhos… (nº 106);

— favorecer a escuta recíproca entre pastores e fiéis (nº 106);

— comungar ideais que extrapolam nossas fronteiras, numa perspectiva ecumênica (nº 125);

— cultivar uma espiritualidade dialogal (nº 132);

— fomentar uma pastoral de conjunto (nº 139);

— centrar a espiritualidade na eucaristia, que equilibra o eu e o nós nas orações (nº 149);

— favorecer a solidariedade e a partilha dos bens (nº 150);

— educar-se para a oração, superando a mera oração de petição (nº 109),

 

Em sua conclusão, as DGAE fazem uma solene convocação, que pode marcar a espiritualidade presbiteral, destacando a centralidade da caridade pastoral: “Agora, devemos olhar para a frente, temos de ‘fazer-nos ao largo’, confiados na palavra de Cristo: Duc in altum! Na causa do Reino, não há tempo para olhar para trás, menos ainda para dar-se à preguiça. Há muito trabalho à nossa espera; por isso, devemos pôr mãos a uma eficaz programação pastoral, tendo sempre presente o primado da graça. Nesse caminho até o Reino definitivo, acompanha-nos a Virgem Santíssima…”[23].

 

8. Palavra aberta

Venci a tentação de concluir esta reflexão, pois a espiritualidade presbiteral é uma questão dinâmica, que merece sempre revisitação. À luz do que vimos, podemos afirmar que a espiritualidade presbiteral supõe uma base humana madura e sempre a Caminho de novas maturações. Seu núcleo duro, porém, está na palavra diakonia. Trata-se de espiritualidade de serviço, a exemplo de Jesus. Diakonia entendida no âmbito da Igreja, isto é, de um trabalho coletivo, que supõe interação, como afirma a Pastores Dabo Vobis: “O ministério ordenado tem uma radical forma comunitária e pode apenas ser assumido como obra coletiva”[24]. O nº 8 de Presbyterorum Ordinis apresenta pistas concretas de realização dessa forma comunitária de exercer o ministério. A introdução (§ 1º) mostra que as diversas tarefas pastorais dos presbíteros devem convergir de tal forma, que se tornem evidentes a fraternidade e a solidariedade que reinam entre eles e se expressam também na liturgia, particularmente na imposição das mãos na ordenação e na concelebração. Em três parágrafos temos uma síntese da necessária comunhão presbiteral: relações entre padres idosos e jovens, no respeito mútuo (§ 2º); expressões da fraternidade presbiteral, tais como hospitalidade, comunhão de bens, solicitude para com os doentes e sofredores, lazer e descanso em comum, vida espiritual e intelectual partilhada, formas de vida comunitária, mesa comum ou reuniões, associações (§ 3º); ajuda aos presbíteros que atravessam dificuldades morais ou espirituais (§ 4º).

Essa radical forma comunitária implica não só uma urgente fraternidade presbiteral, mas também no relacionamento com os leigos, “pois os pastores sabem perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Sabem também que não foram instituídos por Cristo a fim de assumirem sozinhos toda a missão salvífica da Igreja no mundo. Seu preclaro múnus é apascentar de tal forma os fiéis e reconhecer suas atribuições e carismas, que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum” (LG 30).

Isso, porém, não isenta o padre do dever de buscar alimento seguro para sua própria maneira de viver e expressar sua espiritualidade. Jesus Cristo e sua prática continuam sendo a fonte segura para uma espiritualidade madura. Sem querer menosprezar os retiros, cabe dizer que a espiritualidade presbiteral não pode ser reduzida a momentos de enlevo ou recolhimento místico. É preciso aprender a pôr a totalidade da vida sob o dinamismo do Espírito.

A espiritualidade presbiteral é a mesma espiritualidade do homem que põe sua vida inteira nas mãos do Pai, é a mesma do cristão adulto que redimensionou sua vida à luz da fé em Jesus Cristo e de Jesus Cristo. Supõe, portanto, uma pessoa madura, adulta, não autocentrada, capaz de expressar seus sentimentos e emoções, também os que têm conotação ética e teológica negativa. “A não repressão do que se sente traz consigo a possibilidade de superação do que é negativo na pessoa e de redimensionamento das aspirações de um eu-ideal distanciado do que a pessoa realmente sente e quer, isto é, de seu eu-real. São vivências de integração sumamente importantes para a espiritualidade centrada na Páscoa libertadora do Senhor e do estilo de vida que, ao menos em determinados momentos, não pode deixar de trazer consigo a experiência da solidão, da renúncia e da cruz. O autoconceito adulto abrange, além disso, o gostar de si, o sentir-se bem consigo mesmo, a capacidade de ser e de sentir-se feliz. Essa positividade em relação a si próprio é distinta do apego infantil à necessidade de ser amado e protegido, é algo criativo que leva ao engajamento da vida e à orientação dela em direção a objetivos que transcendem pulsões e satisfações imediatas. A causa do Reino, o compromisso da libertação, o serviço aos irmãos têm aqui espaço psicológico para a dinamização válida do projeto existencial do padre”[25].

 

10º ENCONTRO NACIONAL DE PRESBÍTEROS

“O que vimos e ouvimos vos anunciamos”

(Carta de Compromisso)

 

Quem somos e de onde viemos

Somos mais de quatrocentos presbíteros, provenientes de todos os lugares do Brasil, para novo encontro de convívio, celebração, estudos e trocas de experiências, como também para a eleição da nova diretoria da Comissão Nacional de Presbíteros (CNP). Representamos, como delegados, centenas de dioceses. Refletimos, de 4 a 10 de fevereiro de 2004, sobre o tema “O Presbítero no mundo globalizado”. Como tem acontecido desde o início da caminhada de nossos encontros nacionais, que remonta ao ano de 1985, vivemos nesses dias momentos privilegiados de oração, reflexão e partilha.

 

“O que vimos e ouvimos vos anunciamos” (1Jo 1,3)

Como discípulos que procuram seguir Jesus hoje, vimos em sua companhia as multidões que, nas cidades e nos campos, nos rios e matas de nosso país, andam errantes, cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36). Ouvimos seu grito (cf. Ex 3,7), que clama desde todos os porões da exclusão social característica do atual processo de globalização da atual economia mundial. Com Jesus, nossos corações encheram-se de compaixão. Na força de sua Palavra e na unção do Espírito (Mt 3,16) anunciamos o Reino de Deus que se aproxima (Mc 1,15).

Nesse espírito, acolhendo as Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, nós nos comprometemos a promover a dignidade da pessoa, renovar a comunidade e continuar contribuindo para a construção de uma sociedade solidária, onde justiça e paz possam abraçar-se (cf. Sl 84).

 

Promover a dignidade da pessoa

Afirmamos a grandeza do homem e da mulher, imagem e semelhança do Criador (cf. Gn 1,27; Sl 8,5-7). A vocação humana está inscrita no horizonte de Deus, não no individualismo egocêntrico nem na liberdade que, sem Deus, desemboca em sua própria negação. Essa ameaça de frustração do ser humano, presente na sociedade pós-moderna, pode atingir também, por paradoxal que seja, nossa pessoa de presbítero. A dimensão profética da vida cristã e do próprio ministério exige uma palavra clara e corajosa sobre essa realidade.

Assim, vimos de perto todo o alcance psicológico, social e espiritual de nossa fragilidade, de nossos medos e incertezas. Vimos esse abismo que se manifesta em tantas formas de inautenticidade. Às vezes, por exemplo, pensamos e agimos como quem não conta realmente com Deus, fechando-nos num ativismo voluntarista e prometeico. Ocorre, na prática, como se o secularismo da cultura ocidental, moderna e pós-moderna, fosse a referência de nossas vidas, sem refletirmos sobre as consequências do grande impasse de um mundo que se recusa a crer.

A frustração, o vazio que essa atitude acaba gerando, tem levado alguns à busca de segurança no status que a condição presbiteral proporciona ou nos sinais exteriores de autoridade. Não raro aparecem também, correlatas, atitudes narcisistas, disfarçadas na exagerada preocupação consigo mesmo, com a própria saúde ou bem-estar. Um presbítero assim torna-se incapaz de relações adultas e saudáveis, e por isso alterna subserviência, geralmente diante de autoridades, com prepotência, diante de colegas padres e/ou leigos e leigas com quem trabalha e a quem, não raro, atrapalha. Celibato, vida afetiva e o próprio ministério esvaziam-se, restando apenas o traço externo, contraditório e superficial do funcionário do sagrado.

Movidos pela caridade pastoral, centro de irradiação de nossa vida afetiva e espiritual, queremos oferecer ao povo de Deus, presente em nossas comunidades, o compromisso de buscar a sua felicidade e a nossa numa vivência profunda e adulta da Fé batismal que todos recebemos. Essa Fé nos levará ao testemunho capaz de gritar o Evangelho com a vida, permanecendo abertos às pessoas e aos questionamentos e desafios de nosso tempo.

Como presbíteros, fomos constituídos “administradores dos ministérios de Deus” (1Cor 4,2). “Não nos apresentamos com o prestígio da palavra ou da sabedoria (…). Estamos no meio de nosso povo cheios de fraqueza, receio e tremor” (1Cor 2,1-3). É nessa condição que “proclamamos a Cristo Jesus, não a nós mesmos” (2Cor 4,5).

Promovendo nossa própria dignidade em chave de serviço evangélico, no húmus de nossa verdadeira condição, ou seja, na humildade dos discípulos do Reino, acreditamos que estaremos sendo instrumentos de valor para a promoção da dignidade do povo brasileiro. O que esperamos de nosso Mestre e Senhor é a graça da gratuidade benfazeja, isto é, depois de termos feito tudo o que devíamos fazer, considerar-nos sinceramente como “simples servos” (Lc 17,10).

 

Renovar a comunidade

Em meio aos grandes problemas e desafios que examinamos nesses dias, aparece um ponto luminoso e cheio de promessas em nossas reflexões e partilha de experiências: as comunidades de Igreja! Nelas, a participação generosa dos leigos e leigas que assumem sua vocação batismal brilha como grande sinal e testemunho do Evangelho, percorrendo todo o nosso país. Olhando nosso povo reunido e ativo, como não recordar com alegria o ministério dos apóstolos e seus colaboradores e colaboradoras, assim como as primeiras comunidades por eles fundadas, nos inícios do crescimento da Igreja. (cf. At 16,5; Cl 1,3-8)? Vimos quanto é importante voltar às raízes do cristianismo, vivendo nossas experiências de vida comunitária, de mútuo enriquecimento. É esse o espaço propício para combinar o objetivo com o subjetivo, nossa preocupação com a sociedade e a promoção da pessoa. O mercado não dá conta do amor, da paixão. Por isso, é preciso valorizar os aspectos de nossa identidade que nos levam à solidariedade, à partilha, à comunicação.

Assumimos o compromisso de renovar a comunidade, levando adiante o projeto missionário que visa a maior presença da Igreja na Amazônia brasileira, ao mesmo tempo em que procuraremos suscitar vocações para o ministério ordenado, para a vida religiosa e para todos os serviços eclesiais nos centros urbanos e periferias. Buscaremos incentivar nos seminários especial atenção às dimensões humano-afetiva, comunitária, espiritual e pastoral, ao lado da necessária qualidade da formação intelectual. A alegria da missão há de ser o sinal distintivo de nossas vidas, marcadas pela alegria do Evangelho!

 

Construir a sociedade solidária

Em nosso 10º Encontro Nacional, vimos as imensas possibilidades que o fenômeno da globalização abre para as pessoas em termos de acesso aos bens da cultura e da pesquisa científica, aos frutos do trabalho, à riqueza das nações, a formas cada vez mais perfeitas e imediatas de comunicação. Tudo aquilo, enfim, que proporcionaria maior liberdade, maior participação e autonomia ao ser humano nunca esteve tão perto de tantos, na história.

Vimos e ouvimos, porém, que o modelo econômico neoliberal globaliza as desigualdades sociais em vez da solidariedade. Ao mesmo tempo em que cria empregos, oportunidades e salários fabulosos para poucos, gera desemprego e exclusão social de contingentes cada vez maiores de condenados à fome e a toda sorte de insegurança. Enquanto exarceba o individualismo e o consumismo insaciável nas ilhas de prosperidade que inventa, condena à frustração verdadeiros continentes de miséria, obrigados a sobreviver abaixo da linha da pobreza.

Diante dessa realidade injusta e geradora de violência, anunciamos o Evangelho da Paz que é fruto da Justiça. Não podemos ser como cães mudos, ou sentinelas que dormem. Rejeitamos tanto o individualismo como o subjetivismo de uma pós-modernidade que produz a morte do ser humano. Por isso, assumimos o compromisso de apoiar as milhares de iniciativas populares, em toda a parte, que expressam a luta por um modelo de desenvolvimento sustentável, gerador de equilíbrio e justiça social, na consciência de que outro mundo é possível.

Nesse horizonte, queremos reassumir nosso compromisso evangélico de honrar os pobres do Brasil inteiro, confirmando nossa opção por eles: são as meninas dos nossos olhos, o afeto de nossos corações! Voltamos a anunciar-lhes, com Jesus: “Felizes vocês que têm fome, porque serão saciados! Felizes vocês que agora choram, porque haverão de rir!” (Lc 6,21-22). Que a Mãe Aparecida, na profecia do Magnificat, inspire-nos cada vez mais o reconhecimento dos sinais do Reino de Deus na esperança de seus pobres.

 

Itaici, Indaiatuba-SP, 4 a 10 de fevereiro de 2004

Participantes do 10º Encontro Nacional de Presbíteros



[1] Esta reflexão foi retomada depois em muitos ENP, até o recente 10º ENP (2004).

[2] Texto de James J. Bacik, citado por Donald Cozzens em seu livro A face mutante do sacerdócio, Loyola, São Paulo, 2001, p. 23.

[3] VV. AA., Presbíteros do Brasil construindo a história. Instrumentos preparatórios aos Encontros Nacionais de Presbíteros, Paulus, São Paulo, 2001, p. 90.

[4] Antoniazzi, A., Bases da espiritualidade presbiteral. Síntese de um texto apresentado na 6ª Assembleia-Geral da OSIB, realizada em São Paulo, de 9 a 13 de julho de 1988.

[5] Pagani, Severino, “Uomo tra Ia gente”, in La Rivista del Clero Italiano 75 (1994), pp. 419-435; 499-512.

[6] Ibidem.

[7] Cf. K. Barth, Kirchliche Dogmatik, III/4, Zürich, 1969, pp. 633ss.

[8] Pagani, art. cit.

[9] VV. AA., Presbíteros do Brasil construindo a história…, Paulus, São Paulo, 2001, p. 94.

[10] Cozzens, Donald, A face mutante do sacerdócio, Loyola, São Paulo, 2001, p. 47.

[11] Ibidem, p. 50.

[12] Texto do ENP, op. cit., p. 95.

[13] CNBB, doc. 56, Rumo ao Novo Milênio, nº 89, e doc. 71, DGAE, nº 107.

[14] Cozzens, D., op. cit., p. 52.

[15] Ibidem, p. 53.

[16] Ibidem, p. 114.

[17] Ibidem, p. 115.

[18] Ibidem, p. 116.

[19] Ibidem, p. 125.

[20] João Paulo II, “Discurso aos Bispos do Regional Nordeste 5, 19/10/2002”, in Palavra de João Paulo II aos Bispos do Brasil, Paulinas, São Paulo, 2003, nº 6, p. 64.

[21] O apóstolo Paulo lembra que, em certos casos, também nas coisas espirituais, é dever do pregador oferecer leite, e não alimento sólido (cf. 1Cor 3,2).

[22] João Paulo II, “Discurso aos Bispos dos Regionais Sul 3 e Sul 4, 26/11/2002”, in Palavra de João Paulo II aos Bispos do Brasil, Paulinas, São Paulo, 2003, nº 8, pp. 97-98.

[23] DGAE 210ss.

[24] João Paulo II, Pastores Dabo Vobis, Paulinas, São Paulo, 1992, p. 45.

[25] VV. AA., Presbíteros do Brasil construindo a história…, Paulus, São Paulo, 2001, pp. 104-105.

Pe. Manoel José de Godoy (Comissão Nacional de Presbíteros — 49)