Artigos

Publicado em número 234 - (pp. 3-10)

O Presbítero no mundo globalizado

Por Pe. José Antônio de Oliveira (Comissão Nacional de Presbíteros — 49)

Está se aproximando o 10º Encontro Nacional de Presbíteros do Brasil (ENP) — que será realizado em Itaici (SP) de 4 a 10 de fevereiro de 2004. Mais uma vez somos convidados a nos debruçar sobre um tema de interesse para a vida e a ação evangelizadora da Igreja, com o objetivo de conhecer melhor a realidade que nos cerca, bem como o melhor caminho para uma ação de fato evangelizadora e transformadora.

Para este 10º ENP a Comissão Nacional de Presbíteros nos convida a uma reflexão mais profunda sobre o fenômeno da globalização e sua incidência em nossa vida e missão. De uma forma ou de outra, somos todos envolvidos por esse fenômeno, que provoca mudanças rápidas e radicais e exige de nós maior clareza quanto aos seus desdobramentos e consequências.

Embora o encontro seja de presbíteros, a reflexão interessa a todos os agentes e lideranças de nossas comunidades eclesiais — que sentem na pele os efeitos da globalização e por eles são influenciados. Por isso, o tema sobre o qual aqui se reflete dirige-se aos presbíteros, em primeiro lugar, mas pode trazer luzes a todos os agentes que, em seu trabalho evangelizador e pastoral, convivem com a globalização e por ela são desafiados.

Neste artigo, tentaremos apresentar breve síntese do Instrumento de Trabalho do 10º ENP, tão sabiamente elaborado pelo Pe. Edênio Valle, tendo, contudo, a liberdade de expressar nossa interpretação e acrescentar outras reflexões. Esperamos que o texto provoque novos questionamentos, forneça pistas para a reflexão, aponte caminhos e proporcione aos presbíteros e agentes de pastoral maior clareza sobre a globalização. Desejamos ainda que o estudo feito e o próprio Encontro Nacional contribuam para uma ação pastoral e evangelizadora mais consciente e eficaz, suscitando novo ardor e entusiasmo em nossos pastores, conscientes de que são (ou devem ser) testemunhas da esperança, sinais e instrumento de nova sociedade, fundada na justiça e na solidariedade.

Se, como nos lembra o Concílio Vaticano II, a Igreja precisa estar em constante diálogo com o mundo, partilhando suas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (GS 1), o 10º ENP pretende nos proporcionar maior capacidade de compreender o mundo em que vivemos, para melhor dialogarmos com essa sociedade tão complexa, proclamando e sendo para todos, sobretudo para as vítimas da sociedade excludente, uma verdadeira boa nova.

 

1. Metas

Com base nessas considerações, podemos dizer que, no processo de preparação e realização do 10º ENP, são estas as principais metas que almejamos:

a) Ajudar a discernir o que, na globalização, é incompatível com a proposta evangélica do Reino e o que pode contribuir para uma vida mais digna para todos.

b) Contribuir para uma visão crítica das mudanças em curso, superando o medo e a ingenuidade.

c) Despertar maior sensibilidade para com os excluídos e sofredores, vítimas do sistema neoliberal globalizante.

d) Caminhar para um estilo de vida não consumista e não hedonista, por meio de uma vida sóbria e coerente com o que pregamos e/ou exigimos dos outros.

e) Prepararmo-nos para atuar com segurança nos “modernos areópagos”.

f) Conscientizarmo-nos de que, mais do que garantir lugar de destaque no mercado, nossa missão é a de ser sinais do Reino.

 

2. Conceituando a globalização

Não é fácil definir o que seja globalização. São muitos e diversos os conceitos e teorias. Por outro lado, mais do que definir, é importante saber como lidar com esse fenômeno, como viver e atuar numa sociedade globalizada. É estarmos preparados para ser agentes de transformação, e não meros espectadores do processo.

Em princípio, esse neologismo quer designar uma “novidade estrutural que se estabeleceu com a internacionalização das relações entre Estados, blocos de poder e mercados” (Instrumento de Trabalho, p. 13). É uma relação de interdependência entre povos, culturas, religiões etc.

As reações a esse fenômeno são as mais variadas: desde a rejeição total, vendo nele somente um mecanismo perverso de exclusão, empobrecimento e destruição, até a aceitação como algo necessário para o crescimento dos países e para o desenvolvimento humano, embora se reconheçam limites e falhas a ser corrigidas.

Alguns elementos que marcam o mundo globalizado, embora nem todos causados pela globalização em si, nos inquietam: crescimento do narcotráfico, do poder paralelo do crime organizado e do terrorismo; fanatismo religioso; guerras e tensões internacionais; permissividade sexual; relativismo ético; desinteresse político; corrupção em todos os níveis; caráter imediatista e narcisista da cultura vigente (também entre os presbíteros); degradação da família; exclusão crescente; confusão entre o real e o virtual; perda do senso do sagrado — o “dia do Senhor”, por exemplo, passou a ser apenas dia de descanso ou de fuga, e a Semana Santa apenas um “feriadão”.

Diante dessa realidade complexa e inquietante, nossa posição é a de um olhar crítico, reconhecendo seus aspectos positivos e interessantes, bem como suas consequências perniciosas. Acreditamos em um mundo solidário, pelo qual vale a pena lutar, ou continuaremos aceitando que o mundo e as relações sejam regidas por um sistema que exclui praticamente a metade da população?

Em relação ao âmbito religioso e eclesial, o que fazer quando milhões de pessoas trocam de religião por não terem suas necessidades subjetivas atendidas por sua religião de origem? Como proceder numa sociedade onde o fiel passa a ser olhado apenas como um consumidor? Como agir se, para garantir a permanência dos fiéis ou atrair novas ovelhas, muitos se sentem tentados a “adocicar a pílula” ou trair o evangelho e suas exigências?

 

3. Fenômenos provenientes da globalização

No meio de toda essa complexidade despontam novos fenômenos que são, direta ou indiretamente, consequência da globalização: privatização do religioso, fundamentalismo, busca de comunidades emocionais, novas religiões, avanço do esoterismo e pentecostalismo, questões de gênero e crescimento da violência.

Embora todos esses fenômenos tenham incidência na vida e missão do presbítero, alguns o tocam mais profundamente. A onda pentecostal tem feito surgir nova figura de padre, não mais do pastor/pai da comunidade, no meio do rebanho, voltado para o atendimento e para a profecia, mas do padre carismático da TV, da rádio, do show, da música, das massas. Este passa a ser o novo modelo de presbítero para a mídia e para muitos “vocacionados”.

Outras vezes, o próprio padre deixa-se levar pelos apelos do consumismo, da ética subjetiva, do modismo, do virtual, da superficialidade.

Da mesma forma, a imagem do(a) leigo(a) sofre essa influência, adquirindo um perfil mais conservador e menos engajado. Em nome da liberdade e do carisma, assimilando uma experiência predominantemente emocional de Deus, acaba vivendo uma pseudocomunhão com a hierarquia.

Para os setores da Igreja no Brasil mais afinados com o Concílio Vaticano II, Medellín e Puebla, o choque maior é sentir que essas expressões mais conservadoras e hierarquizantes contam com grande apoio da Cúria Romana. Os movimentos neoconservadores encontram respaldo e incentivo por parte da hierarquia, enquanto os movimentos populares de base, de cunho mais profético e combativo, recebem críticas e censuras. Muitos daqueles que buscam uma Igreja mais encarnada, ministerial, comprometida com a vida e com a justiça sentem-se tratados como “Igreja paralela”.

A chamada questão de gênero revela como a mulher vai conquistando seu espaço na sociedade e mexendo com todas as estruturas patriarcais e fechadas. Isso afeta profundamente a Igreja no que diz respeito à participação da mulher na sua vida, estrutura e ministérios. Obriga o padre “a rever seu relacionamento com a mulher na divisão das responsabilidades pastorais, na convivência do dia a dia e, também, nos relacionamentos pessoais, inclusive os que respeitam a dimensão propriamente afetivo-sexual desses relacionamentos” (Instr. de Trabalho, p. 23).

Outra questão que incide em nossa vida e ação é a violência, que acarreta o medo e a desconfiança a grande parte da população. As relações de fraternidade, a atitude de acolhimento, as visitas e até mesmo as reuniões da comunidade ficam comprometidas.

 

4. A palavra do Papa

Sobre a globalização e suas consequências, o Instrumento de Trabalho nos lembra alguns pronunciamentos do Papa.

Por ocasião da Jornada Mundial pela Paz de 1998, João Paulo II expressava suas inquietações e dúvidas quanto à globalização: “Quais serão as consequências…? Será que todos irão se beneficiar do mercado globalizado? Terão todos a possibilidade de gozar a paz? As relações entre os Estados serão mais justas ou, ao contrário, as competições econômicas e as rivalidades entre povos e nações conduzirão a humanidade a uma situação ainda maior de instabilidade?” (pp. 27-28).

Falando aos trabalhadores, por ocasião do Ano Santo, afirmava que a globalização só será um bem se for posta a serviço do homem e de todos os homens, dentro de uma cultura global de solidariedade, atenta às necessidades dos mais fracos.

E na Exortação Apostólica Ecclesia in America chama a atenção para as consequências extremamente negativas de uma globalização não solidária: “a atribuição de um valor absoluto à economia, o desemprego, a diminuição e deterioração dos serviços públicos, a destruição do ambiente natural, o aumento da distância que separa os ricos dos pobres…” (p. 29).

 

5. Como ser padre nesse contexto

É um dever moral, pastoral e social de toda pessoa cristã procurar entender o jogo da política neoliberal globalizada e suas consequências. Seria irresponsável um presbítero que ficasse alheio a todas essas questões que afligem o ser humano e a própria sociedade. Todo padre tem obrigação ética de procurar conhecer melhor as relações entre pessoa, sociedade civil e mercado. Estaremos cometendo um pecado de omissão se não investirmos de verdade na pastoral social, se não acreditarmos, com o coração e com as mãos, que “um outro mundo é possível”.

A palavra de Jesus é clara: se a sociedade age dessa forma, oprime e marginaliza, “entre vocês não será assim” (Mc 10,42-43). Nossa função é ser sinais de algo diferente. Mas, para isso, a mudança começa pela pessoa do próprio presbítero. No meio desse emaranhado, o padre precisa retrabalhar “sua unidade interior para superar a fragmentação que o mundo (pós)moderno ameaça impor também a ele” (Instr. de Trabalho, p. 34). Sem essa unidade interior o padre será fatalmente dominado pela insegurança.

Ele terá ainda que buscar a unidade entre a teologia, a mística e a pastoral, superando o pietismo sentimental, uma teologia fechada e abstrata, uma pastoral que se reduza “a uma transmissão escolar de dogmas e normas” (cf. CLAR 997, p. 24).

 

6. Destradicionalização

O texto preparado pelo Pe. Edênio, citando um estudo de Anthony Giddens, fala também de outro fenômeno que nos afeta. É a chamada destradicionalização, “uma espécie de fase… de passagem obrigatória do processo de surgimento de uma sociedade pós-industrial avançada”, onde os costumes e valores da tradição não desaparecem, mas são submetidos a uma reflexão crítica radical. Esses valores são postos à prova e, de acordo com sua validade social e cultural, são aprovados ou não pelos sujeitos. Isso, naturalmente, será um forte fator de crises, também para o presbítero.

Nesse processo de destradicionalização entram os costumes, tradições, símbolos e vínculos, muitos deles considerados até então como sagrados e intocáveis. Podemos aqui citar, entre outros, a supervalorização da subjetividade e a afetividade centrada mais no desejo e nas emoções do que nas normas e na tradição. De uma forma ou de outra, essas questões acabam exigindo maior discernimento pessoal, clareza e maturidade nas opções, além de maior consciência ética, o que, para muitos, passa a ser motivo de insegurança, medo e até desistência do exercício do ministério. Para outros, porém, são oportunidade para valorizar o ser humano, a emoção e os sentimentos, as expressões corporais e afetivas, superando o excessivo racionalismo até então dominante. As relações interpessoais e valores poderão ser mais frágeis, mas serão também muito mais autênticos.

O próprio presbítero, como outros cidadãos, pode construir, com base nessa destradicionalização, nova síntese, mais pessoal e compatível com a (pós)modernidade, assumindo “sua condição de pessoa livre, de sujeito responsável por seus atos, atitudes e escolhas”. Assim, não será alguém “formado”, até mesmo no sentido de “colocado na forma”, pelas tradições e costumes instituídos. Sua fidelidade será fruto de opções maduras e conscientes.

O certo é que, transitando entre a novidade que enriquece e a desestabilização que gera insegurança, os presbíteros terão duas possibilidades: “ou se alienam na massa engolindo acriticamente a cultura de massa, a lógica da eficiência e do lucro, as vantagens do consumo…”, ou tornam-se reflexivos e se assumem como sujeitos livres e solidários.

 

7. Áreas mais problemáticas

Por ocasião do 9º ENP, com a assessoria do Pe. Edênio Valle, promoveu-se uma pesquisa entre os presbíteros presentes ao encontro, com o intuito de avaliar o grau de autorrealização presbiteral. Os dados foram analisados pelo próprio Pe. Edênio, que apresentou seu parecer durante a Assembleia Geral dos Bispos, em Itaici, e posteriormente pôs sua reflexão à disposição dos presbíteros e demais interessados.

O resultado foi bastante confortador, revelando um bom índice de realização entre os pesquisados. Naturalmente, a pesquisa levantou também alguns itens que merecem maior atenção e cuidado, nos quais os presbíteros revelam insegurança ou há maior incidência de risco.

 

a) Afetividade e sexualidade

Do ponto de vista psicológico, é a área mais complexa. A hipersexualização da cultura (pós)moderna torna essa questão ainda mais séria e merecedora de cuidado. São “cada vez mais numerosos os presbíteros que encontram dificuldade em enfrentar com dignidade e liberdade suas inquietações no campo afetivo-sexual”.

Analisando a pesquisa, por ocasião da 41ª Assembleia Geral da CNBB, Frei Antônio Moser incluía a sexualidade e a afetividade “entre os dons mais preciosos que o Criador confiou aos seres humanos”. Segundo Frei Moser, a sexualidade constitui uma “das mais poderosas energias humanas, como também uma das manifestações mais claras da vocação fundamental e irrenunciável dos seres humanos para o amor”. Ela pode “configurar” ou “desfigurar” a pessoa. A sexualidade, como força que nos empurra para fora, lembra mais a alteridade e nos põe em relação com o outro, com o diferente. A afetividade, embora voltada mais para a intimidade, nos possibilita “saborear os encantos da amizade, do amor, da espiritualidade e até mesmo da mística”.

Uma vida sexual e afetiva bem equilibrada e integrada gera na pessoa “a alegria, a paz, a serenidade, a generosidade, o desprendimento”. Por outro lado, a não integração pode provocar o jogo duplo, “a inveja, o desejo desmesurado de mando, o carreirismo, o egoísmo, a rispidez, o mau humor constante, a indiferença, a agressividade, a inflexibilidade, a rigidez, o autoritarismo e o sectarismo”.

Por tudo isso, vale a pena colocar em nossos debates essa inquietação: o que a globalização e a cultura (pós)moderna têm que ver com a insegurança e as dificuldades que os presbíteros experimentam? De que maneira a destradicionalização está interferindo em nosso modo de encarar o ministério, em nossa vida afetiva, na ação pastoral? O que fazer para que nossos padres sejam mais integrados afetivamente?

 

b) Carência espiritual

Se acreditamos que os presbíteros são (ou devem ser) “administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,2), essa questão adquire gravidade maior. De acordo com a pesquisa feita, apenas 3,1% dos presbíteros dizem ter a espiritualidade muito desenvolvida, e 37% dizem ser ela bastante desenvolvida. Para 44,2% é mais ou menos desenvolvida, e para 10,9% pouco desenvolvida. Considerando que a pesquisa foi feita entre padres escolhidos para representar o presbitério de sua diocese, esses dados são preocupantes. Mais ainda quando estamos cientes de que expressam uma realidade concreta.

Não se pode aceitar como normal que aquele que tem por missão lidar com o sagrado e sustentar a espiritualidade do povo de Deus seja “espiritualmente subnutrido”. E o que se constata é que há de fato certo relaxamento de muitos no que diz respeito à escuta da Palavra, à oração, à vivência dos sacramentos e à caridade pastoral. Falta espírito de comunhão e disponibilidade missionária. Poucos se preocupam em se ajudar por meio de uma boa orientação espiritual.

É certo que, antes de pretender transbordar para os outros a riqueza da graça, precisamos ser dela possuidores. Antes de transmitir o “dom precioso que vem do alto” (Tg 1,17), é necessário experimentá-lo e saboreá-lo.

 

c) Insegurança quanto ao futuro

Esse item não traz novidade, já que a insegurança em relação ao futuro é sentida pela maioria do nosso povo. O crescimento acelerado do desemprego, a aposentadoria que não corresponde às necessidades básicas da pessoa e da família, a falta de assistência médica e a ausência de uma medicina preventiva, o alto índice de violência, a falta de sentido para a vida, tudo isso deixa a pessoa sem muita perspectiva de futuro e gera acentuada insegurança na maioria da população.

Embora os padres não corram o risco do desemprego, experimentam também a insegurança quanto ao seu futuro. O texto não levantou as razões da insegurança, mas sabemos que ela se deve à questão da velhice, da doença, da solidão, do desencanto ou perda do sentido da vida, da falta de confiança na Providência. A própria questão da afetividade deixa inseguros muitos de nossos irmãos. De qualquer forma, vale a pena discutir com os companheiros quais são os fatores geradores de insegurança em nosso presbitério e o que fazer para proporcionar maior segurança, garantindo a todos a serenidade necessária para viver bem o ministério.

 

d) Questão de relacionamento

Pode parecer estranho, mas a pesquisa revela que os presbíteros têm maior dificuldade nas relações entre si do que com as demais pessoas. A verdade é que alguns padres se isolam em sua comunidade e, quando se encontram, a conversa e o próprio relacionamento flutuam na superficialidade. Muitos conseguem se reunir para uma confraternização, para praticar algum esporte ou alguma outra forma de lazer, o que é muitíssimo positivo, mas poucos conseguem aprofundar as questões mais fundamentais da sua vida e missão ou ao menos mencioná-las. Temos facilidade quando se trata de piadas, futebol, política, mas quase nunca expomos para os outros o que sentimos e como nos sentimos. Podemos até partilhar o que pensamos, mas raramente falamos dos nossos sentimentos. A relação é amigável, mas superficial.

O que se espera de um presbítero é que saiba relacionar-se com seu povo com respeito e transparência, que tenha para com todos atitudes de diálogo e misericórdia, e com os companheiros tenha um relacionamento marcado pela abertura, cooperação e verdadeira fraternidade.

De acordo com a pesquisa, em se tratando de bispos e superiores, salvo boas exceções, a relação é ainda mais difícil. Há certa distância. Falta liberdade e espontaneidade. Muitas vezes o ideal da obediência responsável, do respeito mútuo e da comunhão fica comprometido pela subserviência, pela pura diplomacia ou pela simples desobediência. Será sempre oportuno em nossos encontros, reuniões e assembleias conversar abertamente sobre a relação dos padres entre si e com os superiores, procurando caminhos para torná-la mais fraterna, respeitosa e madura.

 

8. Pistas e propostas

A nossa reflexão deve, naturalmente, sugerir propostas concretas, suscitar prioridades e atitudes em nossa vida e ação pastoral. Muitas delas brotarão dos próprios presbíteros e dos encontros de estudo. Mas o texto acena a algumas indicações que podem tornar a missão presbiteral efetivamente profética, missionária e pastoral.

A primeira orientação é a de que o presbitério, até por questão de comunhão e sintonia com os projetos da Igreja no Brasil, se debruce sobre as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora propostas para o quadriênio 2003-2006. O documento lembra que “a sociedade brasileira, inserida na sociedade mundial, que se encontra numa fase de globalização, está atravessando mudanças profundas” e que “não se vê uma clara tendência à diminuição das desigualdades” (DGAE 44 e 45).

Os desafios levantados pelas Diretrizes são, em grande parte, os mesmos que se encontram no Instrumento de Trabalho do 10º ENP: busca de satisfação imediata, desinteresse e desencanto político, enfraquecimento das comunidades tradicionais, a ética subjetiva (DGAE 47-50). Esses fenômenos trazem consigo, entre outras, as seguintes consequências: a necessidade de (re)construção da identidade pessoal; relações e comunidades que se gestam muito mais pela afinidade do que pela proximidade física ou determinação canônica; busca de novos caminhos para a experiência religiosa. Percebe-se claramente que o “campo religioso está se modificando e fragmentando rapidamente”.

Em face dessa situação, a Igreja no Brasil convoca-nos a nos debruçar sobre três grandes prioridades: pessoa, comunidade e sociedade, procurando perceber os maiores desafios em cada um desses âmbitos, iluminando-os com o ensinamento cristão e buscando juntos pistas de superação, sobretudo por meio do serviço, do diálogo, do anúncio e do testemunho de comunhão.

Nossa ação evangelizadora e transformadora, ainda de acordo com as Diretrizes, passa também pela Palavra, que apresenta o projeto do Reino de justiça, de amor e de paz, e pela liturgia, que celebra a ação de Deus e do povo, reúne a comunidade e a sustenta no caminho.

 

9. Construção da identidade pessoal

Sente-se atualmente no ser humano grande desejo de autonomia, a “busca de uma vida mais pessoal, menos padronizada, mais liberta de regulamentos”, muitas vezes traduzida por uma “situação cultural de individualismo”. Por outro lado, essa aparente “liberdade” é ameaçada pela massificação. Ficam as perguntas: como construir a própria identidade, na liberdade e na subjetividade, sem se deixar massificar e sem cair no isolamento e no subjetivismo? Que caminhos trilhar para chegar à autorrealização sem relativizar a mística e o próprio ministério, entendido como serviço e doação?

 

10. Desafios da comunidade presbiteral

As Diretrizes falam da tendência comum na sociedade ao isolamento e ao egoísmo, do enfraquecimento da família e da vida comunitária. Embora subsista a aspiração a relações comunitárias de comunhão e fraternidade, a própria sociedade leva as pessoas a um comportamento marcado pela competição, que acaba sufocando o prazer da festa e da convivência, provocando estresse e isolamento. Considerando que o padre não é ordenado para si, para estar sozinho, mas para ser parte do presbitério, e que “o ministério ordenado tem uma radical forma comunitária e só pode ser assumido como obra coletiva” (PDV 17), como superar essa tendência à competição, ao isolamento, e alimentar o espírito de solidariedade e fraternidade entre os presbíteros? Como saborear a festa, a convivência fraterna, a alegria de “irmãos viverem unidos” (Sl 133,1), sem se deixarem levar pelo “cada um por si”? Por que não apostar mais nas comunidades de padres diocesanos onde há paróquias vizinhas? O que fazer para garantir maior unidade de vida e de linhas pastorais entre os presbíteros?

 

11. Ser solidários numa sociedade excludente

“A sociedade brasileira é hoje uma das mais desiguais do mundo” (DGAE 142). Entre 173 países, o Brasil ocupa o 73º lugar no que diz respeito ao “Índice de Desenvolvimento Humano”. O Instrumento de Trabalho, citando J. Habermas, registra quatro “medos-vergonha” que nos intrigam e exigem de nós postura mais clara e profética: a fome e a miséria, o desrespeito aos direitos humanos, a insegurança generalizada e o risco da destruição nossa e da natureza.

O objetivo geral da ação evangelizadora da Igreja no Brasil nos convoca a contribuir para a “construção de uma sociedade justa e solidária”. Como pastores do povo, sinais de um Deus comprometido com a vida e a justiça, parceiro e amigo dos “órfãos” e das “viúvas”, essa realidade não nos pode passar despercebida. Como não se indignar diante de tantas desigualdades e injustiças? Como não sentir compaixão, essa “dor nas entranhas”, quando somos forçados a conviver com a fome, a miséria, o abandono de tantos irmãos e irmãs? Estamos cientes de que não basta ter pena ou buscar medidas paliativas.

Não podemos também, de forma alguma, dizer ou, pior ainda, acreditar que esse discurso já está ultrapassado. A realidade está aí. Basta abrir as janelas de nossas casas e da Igreja para perceber. E, como canta Pe. Zezinho: “Não dá pra fazer de conta”.

Dom Pedro Casaldáliga, por tantos anos pastor e profeta da Igreja que está em São Félix do Araguaia, que tanto nos ensinou e ajudou, foi muito feliz ao nos alertar: “São muitos os que estão cansados, dizem, de ouvir falar em opção pelos pobres. A isso eu respondo que certamente os pobres estão muito mais cansados de ser pobres”.

A ação que Deus e a sociedade esperam de nós vai desde a compaixão, que nos faz sentir o que dói nos outros, até a reflexão e a participação política; da ajuda material concreta e urgente até a busca organizada e articulada da transformação social; da emoção à conversão. A realidade exige que sejamos místicos e “samaritanos”, duros e ternos, poetas e profetas.

De que maneira o nosso presbitério demonstra solidariedade com os pobres e oposição aos sistemas excludentes? Nosso modo de viver está mais em sintonia com o evangelho ou com o sistema neoliberal globalizante? Para quem nós somos boa-nova? De que maneira estamos contribuindo (ou podemos contribuir) para uma mudança social? Até que ponto a “evangélica opção pelos pobres”, que se encontra no objetivo geral das Diretrizes, é prioridade em nossa vida, nos planos e na ação pastoral que coordenamos e animamos?

Estamos certos de que o 10º ENP será um momento privilegiado para pôr na mesa essas questões e descobrir juntos novos caminhos para a nossa vida e o nosso ministério.

Pe. José Antônio de Oliveira (Comissão Nacional de Presbíteros — 49)