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Publicado em setembro-outubro de 2011 - ano 52 - número 280

A Lectio divina

Por Dom Orani João Tempesta

Lectio divina é expressão latina já presente e consagrada no vocabulário católico que pode ser traduzida como “leitura divina”, “leitura espiritual” ou, ainda – como ocorre hoje em nosso país e em vários escritos atuais –, como “leitura orante da Bíblia”. Trata-se de um alimento necessário para a nossa vida espiritual. Com base nesse exercício, conscientes do plano de Deus e de sua vontade, podemos produzir os frutos espirituais necessários para a salvação. A lectio divina é deixar-se envolver pelo plano de salvação de Deus. Seus princípios foram expressos por volta do ano 220 e praticados por monges católicos, especialmente com as regras monásticas dos santos Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento. O tempo diário dedicado à lectio divina sempre foi grande e no melhor momento do dia. A espiritualidade monástica sempre foi bíblica e litúrgica. A sistematização do método nós encontramos nos escritos de Guigo, o Cartuxo, por volta do século XII.

A lectio divina tradicionalmente é uma oração individual, porém pode-se fazê-la em grupo. O importante é rezar com a palavra de Deus, lembrando o que dizem os bispos no Concílio Vaticano II, relembrando a mais antiga tradição católica segundo a qual conhecer a Sagrada Escritura é conhecer o próprio Cristo. Monges diziam ser a lectio divina a escada espiritual dos monges, mas também de todo cristão. O papa Bento XVI fez a seguinte observação num discurso de 2005: “Eu gostaria, em especial, de recordar e recomendar a antiga tradição da lectio divina, a leitura assídua da Sagrada Escritura, acompanhada da oração que traz um diálogo íntimo em que, na leitura, se escuta Deus que fala e, rezando, responde-lhe com confiança a abertura do coração”.

O Concílio Vaticano II, em sua constituição dogmática Dei Verbum, n. 25, ratificou e promoveu, com todo o peso de sua autoridade, a restauração da lectio divina, retomando essa antiquíssima tradição da Igreja Católica. O concílio exorta igualmente, com ardor e insistência, a todos os fiéis cristãos, sobretudo os religiosos, que, pela frequente leitura das divinas Escrituras, alcancem este bem supremo: o conhecimento de Jesus Cristo (Fl 3,8), porquanto “ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo” (são Jerônimo, Comm. in Is., prol.).

O método mais antigo, que inspirou outros mais recentes, consiste em que, seja pessoalmente, seja em comunidade, seja no círculo bíblico, a reflexão com a palavra de Deus, depois da invocação do Espírito Santo, siga os passos tradicionais: 1) lectio (leitura); 2) meditatio (meditação); 3) oratio (oração); 4) contemplatio (contemplação). Existem outros métodos que, inspirados neste, procuram ajudar o cristão a acolher em sua vida a palavra de Deus e pô-la em prática no seu dia a dia. Chegou o momento de passarmos a propor em nossos grupos de reflexão, círculos bíblicos e outros grupos a palavra de Deus como fonte de reflexão e inspiração para iluminar a nossa realidade concreta.

O método tradicional é simples. São quatro degraus:

A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada; a meditação a encontra; a oração a pede; e a contemplação a experimenta. A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz. A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida (Guigo, o Cartuxo, Scala claustralium).

Portanto, quanto à leitura, leia, com calma e atenção, um pequeno trecho da Sagrada Escritura (aconselha-se que, nas primeiras vezes, se utilizem os textos dos evangelhos). Leia o texto quantas vezes e em quantas versões forem necessárias. Procure identificar as coisas importantes do trecho: o ambiente, os personagens, os diálogos, as imagens usadas, as ações. É importante identificar tudo com calma e atenção, como se estivesse vendo a cena. A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação de espírito.

Com a meditatio, começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não para na superfície, mas apoia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto. É preciso considerar o que essa palavra está iluminando em minha vida e na realidade em que vivo hoje. Quais são as circunstâncias em que ela me questiona e me incentiva? Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à própria vida, a meditação começa a pensar no prêmio: como seria glorioso e deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45,3), não mais tendo a aparência com que o revestiu sua mão, mas envergando a estola da imortalidade e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118,24).

Toda boa meditação desemboca naturalmente na oração. A oratio é o momento de responder a Deus após havê-lo escutado. Essa oração é momento muito pessoal, que diz respeito apenas à pessoa e Deus. Não se preocupe em preparar palavras, fale o que vai no coração depois da meditação: se for louvor, louve; se for pedido de perdão, peça perdão; se for necessidade de maior clareza, peça a luz divina; se for cansaço e aridez, peça os dons da fé e esperança. Enfim, os momentos anteriores, se feitos com atenção e vontade, determinarão essa oração, da qual nasce o compromisso de estar com Deus e fazer a sua vontade. Vendo, pois, a pessoa que não pode por si mesma atingir a desejada doçura de conhecimento e da experiência, e que, quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64,7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64,8), ela humildemente se refugia na oração. E diz: “Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é e como pode ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco”.

Quanto ao último passo, a contemplatio: dessa etapa a pessoa não é dona. É momento que pertence a Deus e sua presença misteriosa; misteriosa, sim, mas sempre presença. É momento no qual se permanece em silêncio diante de Deus. Se ele o conduzirá à contemplação, louvado seja Deus! Se ele lhe dará apenas a tranquilidade de uns momentos de paz e silêncio, louvado seja Deus! Se para você será um momento de esforço para ficar na presença de Deus, louvado seja Deus! Mas em todas as circunstâncias será uma maneira de ver Deus presente na história e em nossa vida! “Ele recria a alma fatigada, nutre a quem tem fome, sacia sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que não é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e, embriagando-a, sóbria a torna” (Guigo, o Cartuxo).

Há uma preocupação grande com a vida prática, com a conversão, de modo que muitas vezes se costuma acrescentar a actio, ou seja, a ação junto com a contemplação. Os temores de uma vida “alienada” podem ser sempre apresentados em todas as circunstâncias, mas, quando se aprofunda realmente na palavra de Deus e se crê ser ela como uma espada de dois gumes que penetra no mais profundo de nosso ser e também ilumina nossa vida e nosso caminho, teremos certeza de que ela ilumina a nossa estrada e nos conduz com a graça de Deus por uma vida nova.

Portanto, diante do patrimônio da nossa Igreja que é esse método da lectio divina, desejo que todos nós possamos aprofundar a leitura orante da Bíblia, que, aproximando-nos da palavra de Deus, encontremos os caminhos da vida dos cristãos hoje, neste início de milênio, e que, diante da atual mudança de época, respondamos com uma vida nova, haurida nas Escrituras sagradas, que nos comunicam a Palavra eterna, o Verbo eterno, Jesus Cristo, nosso Senhor!

* Arcebispo do Rio de Janeiro.

Dom Orani João Tempesta