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Publicado em número 256 - (pp. 12-19)

Colcha de memórias: Uma leitura de Gênesis 1,1-2,4a

Por Cecília Toseli; Maria Antônia Marques

1. Introdução

Na primeira página da Bíblia, encontramos a história da criação do mundo e da humanidade: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Curiosamente, no último livro da Bíblia, voltamos ao mesmo tema: “Vi então um céu novo e uma nova terra (…) ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais” (cf. Ap 21,1-7). De uma ponta a outra, a perspectiva é de esperança, de integração entre o céu e a terra, de tal forma que sejam superadas as dores, as injustiças, o sofrimento e seja restabelecida a paz.

Entre os dois textos, temos o testamento da tradição judaico-cristã. Memórias reunidas ao longo de muitos, muitos anos. E outras tantas deixadas de fora. Uma colcha de histórias. E histórias devem ser lidas e contadas. Retalhos diferentes, tecidos e unidos por mãos diferentes. É preciso encontrar a combinação certa entre os retalhos para dar continuidade à vida. Mas não há regras prontas para seguir. Você tem de ter coragem…

Às sextas-feiras à tarde, um grupo de moradores de rua se reunia debaixo do viaduto do Glicério, no centro de São Paulo, para costurar. O local é um entroncamento movimentado que faz a ligação com a zona leste da cidade. Ruído de motores de carros, ônibus e caminhões. Sirene de polícia e buzinas impacientes. Muito barulho, fumaça e poluição. Numa peneira, retalhos coloridos, botões, zíperes, agulhas, linhas e tesouras. Homens e mulheres consertavam do seu jeito camisas esfarrapadas, sacolas rasgadas, calças e meias surradas, corpos em desalinho… Fazia-se silêncio. Começava um ritual.

Levou muito tempo. Primeiro foi preciso enxergar os próprios rasgos e perceber o desconforto, sentir falta dos botões que atavam suas roupas, suas partes… Depois a decisão de ficar “melhor”, mais confortável, bonita, inteira… Então um olhar mais cuidadoso para si mesmo, sua imagem, sua história, traçando ponto por ponto da trilha planejada… não muito reta, nem muito dura… em movimento, com ritmo, ajeitando até encontrar a harmonia do conjunto. Não cabia seguir regras, tinha de encontrar o seu jeito. A costura era metáfora de si mesmo, de histórias vivas, fragmentadas, interrompidas, retomadas, mas para sempre gravadas no memorial do corpo das pessoas que sobrevivem nas ruas da cidade.

Pouco a pouco, começamos a fazer uma colcha de retalhos. No começo, cada uma, cada um, costurava para si; depois, decidimos juntar os nossos pedaços e fazer uma costura só. Os pontos eram diferentes: uns mais apertados, outros bem largos; uns em linha reta, outros bem sinuosos. Era preciso cuidado para não se embaraçar na laçada da linha e criar um nó. Às vezes, tínhamos de refazer os pontos porque alguns retalhos se soltavam ou ficavam retorcidos. Umas pessoas achavam melhor desistir e começar com outra coisa diferente. Outras diziam ser preciso reconstruir a colcha toda com o que já haviam feito. No começo, procurávamos a perfeição. Depois, encontramos a beleza na multiplicidade dos remendos…

O povo de Israel também levou tempo para costurar os retalhos de sua história: selecionou memórias e teceu-as a “seu” modo. A narrativa de Gn 1,1-2,4a é uma tentativa desse povo de reencontrar o fio da meada lá no começo, no princípio de tudo, para explicar as razões de sua situação atual. Quando ele olha para o passado, vive, no presente, um momento de crise. E, assim como nós, revê a sua história para vislumbrar o futuro, para restabelecer a continuidade da linha da vida que fora rompida e tecer novamente a esperança.

Qual crise o povo de Israel enfrenta quando compõe o poema da criação? Quais retalhos seleciona de sua história? Quem são as pessoas que a tecem? O que procuram harmonizar? A quem deixam suas memórias?

Quando olhamos a colcha de memórias apresentada no início do livro do Gênesis, algo nos intriga: logo após o poema da criação, em que Deus viu que tudo era “muito bom” (1,31), encontramos outro relato bem diferente em Gn 2,4b-24. Então, nós nos perguntamos: por que dois relatos sobre o mesmo tema? Por que tantas diferenças entre os elementos e os estilos dos textos?

Isso nos faz pensar em quanto é importante conhecer a realidade por trás do texto, os retalhos da história: quando foi tecida? Onde? Qual grupo a costurou? Como vivia? Quais os seus interesses? Como enxergava o mundo e vivia a sua fé? A quem destinava a colcha?

Os dois relatos de Gênesis sobre a criação, assim como todos os textos bíblicos, nascem da cultura material e simbólica de um povo, de grupos diferentes, memórias diferentes, épocas e locais distintos, emaranhado de pontos, fios, cores, linhas e expressões

 

2. Retalhos da história de Israel…

Quando olhamos as colchas das memórias de Israel, notamos que, durante o período da monarquia, alguns pontos entrelaçam grande parte da costura: terra, templo e rei, sinais da aliança de Javé com seu povo. Mas o sistema da monarquia, com sua política militarista e opressora, baseada na exploração tributária e na dependência dos países estrangeiros, cortou o fio da meada… Em 722 a.C. ocorre a queda do Reino do Norte, Israel, sob a dominação da Assíria. E em 586 a.C., a queda do Reino do Sul, Judá, sob a dominação da Babilônia, levando ao exílio. Vamos relembrar alguns fatos da história no período da queda do Reino do Sul.

Em 605 a.C., o exército de Nabucodonosor, filho do rei da Babilônia, derrota o Egito e conquista a Síria e a Palestina (Jr 46,2), impondo-lhes pesada cobrança de tributos. Em 602 a.C., o rei de Judá, Joaquim, deixa de pagar tributos à Babilônia. O conflito se agrava (2Rs 24,1) e, em 598 a.C., o exército babilônico marcha contra Judá e cerca a cidade de Jerusalém. Depois do cerco à cidade, que dura um ano, Jerusalém é invadida e a elite é exilada. O rei, a nobreza, os altos funcionários da corte, os militares, os grandes proprietários de terra e os artesãos do palácio são deportados para a Babilônia. Nabucodonosor invade também o templo, apanhando os tesouros e levando para o exílio profetas e sacerdotes oficiais, entre os quais Ezequiel. É a primeira deportação.

Na Babilônia, o grupo da primeira deportação foi assentado em colônias, em regime de semiliberdade (Jr 29), podendo manter alguns de seus costumes e fazer reuniões (Ez 8,1; 14,1; 20,1): “À beira dos canais da Babilônia nos sentamos e choramos com saudades de Sião” (Sl 137,1). Posteriormente, alguns judeus chegaram a ocupar cargos na administração da corte babilônica.

Depois da primeira deportação, para governar Judá, Nabucodonosor nomeia como novo rei Sedecias. Dez anos depois, Sedecias também deixa de pagar tributos à Babilônia. Dessa vez, a repressão é muito mais violenta. Em 587 a.C., Nabucodonosor cerca Jerusalém e impede a entrada e a saída de pessoas e mantimentos: “A cidade ficou cercada (…). A fome apertou na cidade, e o povo não tinha nada para comer” (2Rs 25,2-3). Essa situação dura quase dois anos, quando, no fim, o templo é saqueado e incendiado (Lm 2) e a cidade destruída (2Rs 25,8-10; Jr 52,12-14). A família do rei é executada, ele é preso, tem os olhos furados e é levado então para a Babilônia (2Rs 25,6-7; Jr 52,9-11). Na segunda deportação, além do rei e da nobreza, são deportados cantores, ajudantes e serventes do templo (2Rs 25,9-12; Jr 52,15), pequenos artesãos e comerciantes da cidade, alguns agricultores e vinhateiros (2Rs 25,11-12).

Na Babilônia, essas pessoas são submetidas às piores condições: escravizadas, são obrigadas a trabalhos forçados nas obras públicas, nas lavouras e na reconstrução de cidades destruídas; vivem em prisões, passam fome, sede cansaço e sofrem violência física. É o que nos conta o livro do Segundo Isaías (capítulos 40-55): “Este povo foi despojado e saqueado, todos eles estão presos em cavernas, estão retidos em calabouços. Foram submetidos ao saque e não há quem os liberte; foram levados como despojo, e não há quem reclame a sua devolução” (Is 42,22).

O exílio na Babilônia foi uma experiência marcante na história de Israel. Caem os referenciais perenes da aliança, símbolo da identidade do povo: a morada de Javé é destruída, a Cidade Santa arrasada, o rei destronado e o povo deportado de sua terra. A derrota e o sofrimento fazem pensar: onde está Javé? “Javé desconhece o meu caminho e o meu Deus ignora a minha causa” (Is 40,27b); “Javé me abandonou, o Senhor me esqueceu” (Is 49,14). “Será que minha mão ficou tão curta que eu não posso libertar? Ou será que já não tenho mais força para salvar?” (Is 50,2).

Essa realidade de exílio contribuiu para o povo perder a fé em Javé. A situação era de medo, insegurança, humilhação e falta de esperança. Conforme a mentalidade da época, as catástrofes provocadas pelas guerras ou por fenômenos da natureza eram atribuídas às divindades. Portanto, se o rei da Babilônia venceu o rei de Judá, isso se dava porque o deus babilônico era mais forte do que Javé. Muita gente, então, confusa e pressionada pelas circunstâncias, adotou a religião babilônica.

Nessa situação de crise e perda de identidade, nasce a preocupação de explicar as razões da derrota e do exílio. Sacerdotes, profetas e sábios procuram dar uma resposta àquela realidade. As lideranças religiosas retomam a história do povo, fazem uma releitura e apontam caminhos. É hora de juntar os retalhos e recompor parte da colcha de memórias, para dar continuidade à linha da vida que fora interrompida com o exílio.

Nesse momento, surgem muitos salmos, poesias, narrativas e outros escritos que recordam as maravilhas realizadas por Deus na vida do povo de Israel desde as origens. As orações renovam a fé em Javé como o único criador de todas as coisas. Assim o povo reza: “Quão numerosas são tuas obras, Iahweh, e todas fizeste com sabedoria! A terra está repleta das suas criaturas” (Sl 104,24).

Um dos textos mais conhecidos no exílio da Babilônia é o poema litúrgico de Gênesis 1,1-2,4a, provavelmente escrito por sacerdotes exilados. Eles estruturam o poema da criação com o refrão: “E Deus viu que era bom” (Gn 1,4.10.12.18.20.24; cf. 1,31). Numa realidade confusa e devastada pela violência, os autores recordam que o mundo criado por Deus é belo, ordenado, perfeito e bom e a condição dos seres humanos não é a de escravos, mas de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus. Vejamos, a seguir, como se dá a composição do poema da criação, os retalhos escolhidos, e quais as possíveis intenções dos autores do texto à luz das condições de vida na Babilônia.

 

3. Retalhos da vida do povo de Israel na Babilônia

Para compreendermos os retalhos que compõem a narrativa de Gn 1,1-2,4a, precisamos conhecer um pouco mais o pano de fundo da vida material e religiosa na Babilônia, sobre o qual o imperador mantinha seu poder e o povo exilado, judeu e não judeu, buscava ajuda e proteção.

No apogeu do seu império, a Babilônia torna-se o centro de referência financeira e cultural do mundo antigo. A imponência e o luxo da corte são sustentados pelo comércio, pela tributação e pelas guerras de conquista. A maior parte dos grandes comerciantes e proprietários de terra é composta de sacerdotes. O Estado, embora possua menos terras, mantém o controle político e econômico da nação por meio do exército e da cobrança de tributos do povo e dos templos.

Enquanto as elites aliadas ao império se beneficiam das vantagens econômicas, políticas e sociais advindas dessa situação, a maioria das famílias camponesas trabalham como arrendatárias nas terras pertencentes ao rei e aos templos, devendo-lhes pagar 1/7 da produção. A situação piora à medida que crescem as disputas internas entre os ricos templos e o Estado e as constantes guerras destroem os campos e dizimam a população. A impossibilidade de arcar com a sobrecarga de tributos gera o endividamento, a perda da terra e a escravização.

O rei, representante da divindade, impõe pesados tributos e impostos sobre o povo pobre para sustentar a corte e o exército. Também os sacerdotes realizam cultos suntuosos nas praças, nos templos e nos santuários, exigindo oferendas e sacrifícios (Is 44,9-20). O povo, carente de ajuda e proteção, não quer correr o risco de “desapontar” a divindade, rebelando-se contra as cobranças do império. Na verdade, a religião acaba sendo usada pelo rei e pelos sacerdotes para extorquir da população pobre produtos e rendas destinadas à sustentação da corte e do templo.[1]

A religião da Babilônia era politeísta, com mais de 3 mil nomes de divindades (embora muitos se referissem a uma específica) e cerca de 53 templos. O maior dos templos, com um zigurate — uma espécie de torre (provavelmente a chamada torre de Babel) —, era dedicado a Marduk, deus criador, patrono da cidade da Babilônia. Marduk, representado por uma grande estátua, era a divindade suprema do panteão por ter vencido o monstro Tiamat e sua criação. Filho de Ea, era também o deus das artes mágicas, invocado nos encantamentos. Não era propriamente um deus da natureza, mas talvez uma divindade solar antes de ser reconhecido como o “gênio tutelar” da Babilônia. O seu templo era chamado Esagil, “a casa da cabeça erguida”, e a grande torre do templo, Etemenanki, “a casa da fundação do céu e da terra”. Essa torre representava a ligação entre a morada dos deuses e a terra.

Uma das festas principais da religião babilônica era a do ano-novo. Durante a festa, recitava-se o mito da criação e cantava-se o hino a Marduk, numa celebração de renovação de toda a criação.

Segundo o mito babilônico, a criação teve início de um caos preexistente. O caos, representado por um monstro marinho informe, hostil à terra, é personificado pelas divindades Apsu e Tiamat. Inicialmente, essas divindades procriam os outros deuses. Apsu é morto por Ea. Tiamat gera demônios, serpentes e monstros, entre os quais Leviatã (cf. Jó 3,8), e aterroriza os outros deuses. Marduk decide enfrentá-la e a vence em combate. Ele corta o seu corpo em duas partes: com uma faz os céus — e coloca guardas para impedir a saída das águas —, com a outra faz a terra. Depois Marduk cria a humanidade, para prestar culto aos deuses e servi-los: “Abrindo sua boca, ele disse a Ea, deus das águas: ‘Acumularei o sangue e farei que surjam os ossos. Estabelecerei um selvagem, «homem» será o seu nome; criarei um homem deveras selvagem. Ele será encarregado de servir aos deuses para que eles possam ter tranquilidade!’” (Mito babilônico da criação).[2]

A criação é fruto da vitória de Marduk (divindade criadora) sobre Tiamat (caos). Mas a divindade criadora nunca vence definitivamente o mal. Assim como o ciclo da natureza era concebido como a alternância entre a criação (vida) e o caos (morte), a divindade criadora devia ceder também ao caos em seu turno.

Além do ritual da criação, durante a festa do ano-novo, o rei, representante das divindades na terra, recebia das mãos de Marduk o poder para governar e a função de sacerdote. Mas havia sacerdotes específicos para realizar o culto a Marduk e às outras divindades.

Os sacerdotes eram vistos como uma espécie de mágicos que, além de proteger os fiéis contra os ataques dos demônios — encontrados nos mais diferentes lugares e causadores de todos os tipos de males, como doenças, febres e tormentos mentais —, agiam em circunstâncias determinadas, especialmente para tirar a criança quando a mulher dava à luz. A religião da Babilônia acreditava na existência de demônios bons e maus. A obra má podia ser invocada ou frustrada por meio da magia. Também se acreditava no discernimento do futuro por meio da adivinhação. Assim, nos templos, sacrifícios eram oferecidos às divindades, representadas por estátuas, e os fiéis cantavam hinos e faziam preces em sua homenagem. Os agentes do templo serviam-se das crenças populares para enriquecer e controlar a população mais simples.

Havia dois grupos principais de divindades: os deuses cósmicos, como Anu, deus do céu, Enlil (ou Bel), deus dos ares superiores, e Ea, deus dos abismos das águas; e os deuses astrais, como Sin, deusa-lua, deusa do destino, Shamash, deus-sol, protetor da lei e da justiça, e Ishtar, identificada como o planeta Vênus.[3]

Como podemos perceber, há muitos retalhos do mito babilônico da criação presentes no poema da criação do livro do Gênesis. O povo de Israel tece os retalhos a seu modo. Mas como compõe a sua colcha?

 

4. Alguns retalhos da colcha de memórias em Gn 1,1 a 2,4a

A história apresentada no primeiro capítulo do livro do Gênesis é uma história completa, bem delimitada, com início, meio e fim. Em Gn 1,1, lemos: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”. Em Gn 2,1: “Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército”. E em Gn 2,4a: “Essa é a história do céu e da terra, quando foram criados”. Logo no começo se quer deixar claro quem é o autor da criação.

Nessa história, o Deus único e criador da humanidade e da totalidade do universo é Elohim. O nome de Deus aparece 35 vezes no poema. Não aparecem outros deuses. E a ação de Deus também é única. A forma hebraica bara’, que significa criar, refere-se exclusivamente, em todo o Primeiro Testamento, à atividade criadora de Deus, denotando o seu poder de “iniciar coisas novas e diferentes” a partir do nada.

No princípio (…) a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo” (1,2a). Somente Elohim tem poder para criar. O caos não surge de Deus, mas ele o ordena. Desse modo, Tiamat, que representa o caos ou o abismo, em hebraico tehom, é reduzida a massa informe e destituída de sua divindade, e Marduk, considerado o deus criador segundo o mito babilônio, também será reduzido à condição de simples luzeiro (1,14). A criação mostra o poder e a soberania de Deus. E declarar Elohim como o autor da história do céu e da terra é afirmar que o Deus de Israel é o único e verdadeiro Deus: “esmagaste Raab[4] como um cadáver, dispersaste teus inimigos com teu braço poderoso” (Sl 89,11). A seguir, o sopro de Elohim (1,2b), que não é maligno como no mito babilônico, prepara e anuncia a intervenção de Deus, a sua palavra criadora (cf. Sl 33,6).

A obra da criação é apresentada num plano de sete dias: seis de trabalho e um de descanso, o sábado. O poema é ritmado por frases solenes e expressões que se repetem: “Deus disse (…) e assim se fez”, “houve uma tarde e uma manhã”, “Deus viu que isso era bom”. A regularidade indica o uso litúrgico do poema, servindo para animar a assembleia e facilitar a memorização. O ponto alto é o sétimo dia. Vamos acompanhar passo a passo o relato da criação segundo Gn 1,1-2,4a.

A expressão “Deus disse” aparece dez vezes e representa possível alusão aos Dez Mandamentos. Deus cria por meio de sua palavra: ele ordena e as coisas se cumprem. A criação não é espontânea, mas ato deliberado de Deus, expressão do que ele quer. Não é o resultado de combates entre deuses, como no mito babilônico. Deus age sozinho e, por meio de sua palavra, realiza-se a sua vontade. Nos Dez Mandamentos, as palavras de Javé também representam palavras de ordem para que o povo de Israel preserve a vida em harmonia e liberdade.

No primeiro dia, “Deus disse: ‘Haja luz’, e houve luz”. Deus cria a luz e a separa das trevas. Nas religiões antigas, a luz é o elemento primeiro e caracteriza a divindade que expulsa o mal, as trevas e o caos, mas, em Gn 1,3, é só uma criatura, sinal de vida, juntamente com os demais elementos integrantes do universo.

Deus cria pela força de sua palavra e, a seguir, nomeia as criaturas. À luz ele chama dia, e à treva, noite (1,3-5). O ato de nomear cada elemento criado pode ser entendido como princípio de separação e ordenamento.

No segundo dia, Deus faz o firmamento (1,6-8) e o chama de céu. O céu é pensado como uma tigela com a boca para baixo, separando as águas de cima e as de baixo, conforme a visão de mundo daquela época. E Deus é quem abre “as comportas do céu” (7,11; Jó 37,18) para fazer cair a chuva. O céu, considerado na Babilônia morada dos deuses, constitui, segundo o relato de Gênesis, apenas um disco que divide águas.

No terceiro dia, Deus cria o continente e o separa das águas (1,9-13), chamando-os de terra e mares, pois “Ele represa num dique as águas do mar, coloca os oceanos em reservatórios” (Sl 33,7). No poema bíblico, também o mar e a terra são criados pela palavra de Deus, não são divindades. Ainda no terceiro dia, Deus ordena que a terra seja produtiva, com “ervas que deem sementes e árvores frutíferas”.

O quarto dia é central numa semana de sete dias. Nele ocorre, segundo o Gênesis, a criação de luzeiros no céu (1,14-19). O texto nos diz que Deus fez o “luzeiro maior para governar o dia e o pequeno luzeiro para governar a noite, e as estrelas”. Propositalmente, os autores não usam os nomes sol e lua. É que esses astros representam divindades na Babilônia, respectivamente Marduk e Sin. A cultura babilônia valoriza a arte de interpretar sonhos e presságios e acredita que no sol, na lua e nas estrelas está escrito o destino das pessoas, a vontade dos deuses. No relato bíblico, entretanto, eles são simples luzeiros que iluminam a terra e estabelecem a alternância de dias e noites, meses e estações. Apenas indicam o tempo. Nada mais. Para Israel, quem governa a vida e a história de seu povo não são as divindades astrais ou cósmicas, mas Elohim. No mesmo sentido, a profecia de Isaías repreende aqueles que buscam nas divindades babilônicas auxílio e proteção: “Fique, pois, com seus encantamentos, com a multidão de seus feitiços (…) que se apresentem, então, e a salvem os astrólogos que observam as estrelas e a cada mês fazem prognósticos do que vai acontecer a você” (Is 47,12-13).

No quinto dia são criados os peixes e as aves (1,20-23). No pensamento mítico, as águas do caos representam o lugar de onde brotou toda a vida. A vida dos seres criados começa nas águas. Pela segunda vez, o texto utiliza o verbo bara’, criar. Na primeira vez, referia-se à criação da luz; agora, à dos seres vivos. Os primeiros seres vivos criados são os monstros marinhos. No mito babilônio, o monstro marinho é criado pelo abismo, força obscura do caos. Novamente, Israel afirma que esses monstros são criaturas de Deus. Os seres vivos são abençoados por Deus e recebem a ordem de crescer e se multiplicar (1,23).

No sexto dia, a terra é chamada a produzir os animais terrestres segundo a sua espécie. E, no mesmo dia, Deus cria a humanidade, em hebraico ’adam (1,26-31). Na concepção mítica, a humanidade é criada para servir os deuses e prestar-lhes culto. Em Gn 1,26-27, ela é feita à imagem e semelhança de Deus, e o uso da forma verbal bara’, pela terceira vez no relato, aponta a originalidade da vida humana. Ao criar o ser humano à sua imagem e semelhança, Deus lhe confere identidade e lhe dá o senhorio sobre toda a criação. Mas se, no período da monarquia em Israel, somente o rei representava a imagem de Deus na terra, no exílio, toda a humanidade é criada à sua imagem e semelhança (Gn 5,1.3; 9,6).

Por fim, Deus abençoa a humanidade: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra” (1,28). Assim como a terra é chamada a produzir frutos e os animais crias, o ser humano é chamado à reprodução. No contexto do exílio, onde a sobrevivência do povo de Israel está ameaçada, essa bênção é fonte de esperança. Os verbos submeter e dominar refletem a cultura da época, sobretudo a mentalidade dos reis e dos sacerdotes. Mas, em nossos dias, essa linguagem tem sido revista por inúmeros grupos e setores da sociedade num esforço mundial de desenvolver uma economia solidária, responsável e não violenta em proveito de todos os seres vivos e do conjunto do universo. Nesse sentido, segundo o ideal da harmonia da criação, o ser humano é chamado a reconhecer sua relação de interdependência com todo o planeta e sua necessidade de manter uma atitude permanente de preservação da vida.

No final do sexto dia da criação, “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (1,31). Na cultura babilônica, como vimos, o mal é primário da mesma forma que o bem, numa alternância cíclica entre a vida e a morte. Mas, em Gênesis 1, tudo o que Elohim cria e faz é bom (v. 10.12.18.21.25). Portanto, o mesmo poder divino criador pode fazer voltar o bem e a harmonia das origens mesmo na realidade caótica do exílio. “Assim foram concluídos o céu e a terra.”

No sétimo dia, após concluir sua obra, Deus descansou. Ele abençoou e santificou o sétimo dia (Gn 2,3). Todo o poema da criação é organizado em função do sábado, ponto alto na sequência dos dias da obra da criação. Em Israel, o descanso semanal é uma tradição antiga: “Durante seis dias farás os teus trabalhos e no sétimo descansarás, para que descanse o teu boi e o teu jumento, e tome alento o filho da tua serva e o estrangeiro” (Ex 23,12). Os babilônios, ao contrário, não adotavam o ritmo da semana, mas o da lua, e as festas ocorriam, quando muito, em períodos quinzenais. O trabalho forçado era contínuo, e a exploração não dava trégua.

Por isso, durante o exílio, o sábado ganha um sentido especial: negar-se ao trabalho é corresponder ao Criador, que trabalhou seis dias, mas descansou no sétimo, santificando-o. Preservar o sétimo dia torna-se então símbolo da identidade do povo de Israel e do seu Deus, em oposição aos cultos às divindades babilônicas. Torna-se símbolo da resistência contra a exploração do trabalho e contra a idolatria. Enfim, dia de fazer memória da história de Israel, de rever as causas do exílio e de organizar o povo para o retorno.

 

5. Possível combinação para a colcha das memórias de Gn 1,1-2,4a

Um poema, ao relatar as origens, tende a ser lido como uma história sagrada, pois traz a força de acontecimentos primordiais e estabelece uma espécie de ordem natural e harmoniosa na criação, que deve ser aceita como tal e reproduzida da mesma maneira na terra.

Diante da narração das origens da criação, o povo de Israel exilado é apresentado a um passado comum, que o faz criar uma identidade também comum e mobiliza a todos na construção de um futuro promissor. A narração de um passado distante e harmonioso produz uma espécie de coesão social no presente, superando possíveis tensões e conflitos, e unifica a ação, tendo em vista novo horizonte.[5]

Em meio à catástrofe do exílio, Israel, ao ouvir o poema da criação, pouco a pouco começa a juntar os retalhos de sua história e a recompor sua identidade. Vê-se novamente como povo cujo Deus é o único e verdadeiro criador. O poder dele é capaz, portanto, de perdoar os erros que levaram o povo ao exílio e recomeçar tudo de novo.

A palavra de Elohim na criação é uma palavra abrangente de vida, e o mundo foi criado para ser a casa de vida para todos. Nesse sentido, fora da criação não existe salvação, pois destruir a vida na terra, qualquer uma de suas criaturas — as águas, as matas, o sol, a lua, as estrelas, os animais ou os seres humanos —, é afastar-se do projeto do Deus criador. E o povo de Israel na Babilônia compreende que o projeto da criação se concretiza na história: Deus vai libertá-lo do sofrimento por que passa no exílio. O povo ganha alento e reconstrói a esperança de um novo êxodo.

 

6. Refazendo a colcha do “nosso” jeito…

Uma última palavra. Quando olhamos as mãos daqueles que teceram os fios do poema da criação, podemos pensar na continuidade da colcha… O mesmo grupo sacerdotal que se beneficiava do sistema do palácio, do templo e da terra antes do exílio é o que reconstruirá a vida em Judá após o exílio, novamente em torno do templo e da Lei. Continuam a escolher retalhos e costurar memórias em linhas planejadas, retas… e duras.

O grupo dos sacerdotes e da elite judaica retorna do exílio considerando-se o verdadeiro Israel e assumindo a missão de fazer cumprir na terra a harmonia do céu. Para isso, recebe do império persa a ordem de estabelecer “escribas e juízes que administrem a justiça para todo o povo” de acordo com a Lei, e todo aquele que não cumprir a “Lei de Deus — que é a lei do rei — será castigado rigorosamente: com a morte ou o desterro, com multa ou prisão” (Esd 7,26).

As principais leis do templo de Jerusalém no pós-exílio estão reunidas no chamado código de pureza e de santidade (Lv 11-26). Essas leis determinam, por exemplo, quais são os animais puros e impuros (Lv 11), quais são as condições das pessoas com lepra e outras doenças (Lv 13-14) e quais são as ocasiões de impureza da mulher (Lv 12) na qualidade de mulher, mãe, filha e esposa, além de regularem as atividades sexuais do casal (Lv 15). E quem tem autoridade para definir o estado de pureza ou impureza, ou seja, de proximidade ou de afastamento das pessoas em relação a Deus, são os sacerdotes (Ez 44,23).

Ocorre que, com tantas leis, é difícil encontrar uma pessoa pobre ou uma mulher que não sejam consideradas impuras. Essas leis atingem e atormentam o cotidiano das famílias. E a única chance de ser readmitido(a) à comunidade é cumprir o rito de purificação, isto é, entregar ofertas e sacrifícios no templo para (a)pagar o pecado. Somente assim é permitido voltar ao convívio com os outros (Nm 5,1-3) e receber a bênção no templo. Desse modo, os sacerdotes garantem, por meio da arrecadação, o seu próprio sustento e ainda o pagamento dos impostos devidos aos persas.

As pessoas mais atingidas pela lei da pureza são os doentes e as mulheres (Lv 12; 15,18-33), sobretudo as mulheres estrangeiras (Nm 25,1-3; Esd 10,18-19.44). Elas são expulsas do templo, com suas crianças, em nome da formação de um povo judeu puro, eleito por Deus, sem mistura de etnias (Dt 23,2-9; Esd 9,1-10.44).

Por um lado, casamento puro, ou seja, sem ser com mulher estrangeira, significa religião pura de um templo único. E isso contribui para fortalecer o poder dos sacerdotes e aumentar a arrecadação do templo de Jerusalém.

Por outro lado, a exigência de um povo “puro” justifica, também, a tomada das terras da população local, considerada impura por causa dos casamentos mistos (com mulheres estrangeiras). Por isso, desde quando voltaram do exílio, os repatriados tratam de fazer listas de famílias e de antepassados (genealogias) na tentativa de provar que são “o verdadeiro Israel” e que a eles pertencem, portanto, as terras de Judá (Esd 2). O ideal de “pureza” torna-se sinônimo de exclusão.

Como podemos ver, há dupla exclusão: além das necessidades e do sofrimento que passam no dia a dia por causa da miséria e do preconceito social, essas pessoas sofrem com a condenação religiosa do templo, que transmite a imagem de um Deus juiz, severo e autoritário. A maioria do povo não consegue pagar o que a lei exige para a purificação. Sendo assim, permanece na impureza, excluída do templo e das bênçãos de Deus.

Quanto ao sábado, dia santificado por Deus, dia de vida e memorial da libertação (Gn 2,3), torna-se, pouco a pouco, dia de morte (cf. Ex 31,14-15). A situação chega a tal ponto, que, bem mais tarde, segundo o Evangelho de Marcos, Jesus pergunta aos defensores da Lei: “É permitido, no sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou matar?” (Mc 3,4). A partir dali, conspiram sobre como o destruiriam (Mc 3,6).

Ainda hoje, também podemos nos perguntar: quais instituições nos fazem perder a lucidez e a capacidade crítica diante dos fatos? E fragmentam nossa identidade pessoal e coletiva? E amortecem nossa sensibilidade? Como criar relações e estruturas familiares, sociais, econômicas, políticas, jurídicas e religiosas libertadoras?

Cabe-nos avaliar sempre os projetos de “criação” e as “instituições” que os representam, suas abrangências e implicações, a fim de que toda lágrima seja enxugada, já não haja morte, luto e dor e a vida tenha continuidade para todos, dignamente.

Voltamos a lembrar o povo da rua, debaixo do viaduto, tecendo suas colchas de memórias… Com tantas perdas em suas vidas, suas linhas não são tão definidas nem seus pontos sem embaraços… Muitos, porém, continuam tecendo suas colchas, reconstruindo suas histórias, recompondo suas vidas… ainda nas ruas, às margens dos governos autoritários e opressores das nossas cidades. O importante é ter coragem… Em silêncio ou nas conversas, essas pessoas ainda têm a coragem de afirmar, quando celebram o dia do Senhor na Casa de Oração do Povo da Rua: “Somos um povo que quer viver!”



[1] Enilda de Paula Pedro; Shigeyuki Nakanose. Como ler o Segundo Isaías (40-55): da semente esmagada brota nova vida. São Paulo: Paulus, 2004, p. 24.

[2] Confira a íntegra do relato do mito em: J. F. Bierlein. Mitos paralelos: uma introdução aos mitos no mundo moderno e as impressionantes semelhanças entre heróis e deuses de diferentes culturas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, pp. 85-87.

[3] John L. Mckenzie. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1983.

[4] Monstro mítico que personifica o caos marinho, cf. Jó 7,12.

[5] Luís Felipe Miguel. Em torno do conceito de mito político. Disponível em <www.scielo.br>. Acesso em 12 mar. 2007.

Cecília Toseli; Maria Antônia Marques