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Publicado em número 254 - (pp. 9-15)

Esperança política e espiritualidade no Profeta Jeremias

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

Introdução

Há um trecho de um belo poema de Bertolt Brecht que diz assim: “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”.

Mas, ao contrário do poema acima, quando estamos envolvidos em uma situação de profunda decepção, a vontade que assume o controle de nossas vidas é, justamente, aquela de “entregar os pontos”, de deixar-se abater e, por fim, desistir. Tudo passa a ser considerado muito natural e, portanto, impossível de ser alterado.

Vivemos situação semelhante, por exemplo, com a política. Quantas e quantas vezes já nos decepcionamos com a maneira de fazer política em nosso país. Quantas e quantas vezes os políticos que receberam nossos votos confundiram — eterna confusão — o público com o privado e, consequentemente, se esqueceram de vivenciar a política como uma ferramenta de construção do bem comum.

Por muito tempo, pensei que os sonhos de minha adolescência fossem indestrutíveis. Vários desses sonhos relacionavam-se com o mundo da política e a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Da adolescência à vida adulta, a percepção da vida e da sociedade foi-se alterando. A sociedade sonhada e idealizada da adolescência teimava em não se concretizar. Às vezes, pensava que o problema estava em meus sonhos. Talvez nunca devesse tê-los sonhado. Afinal, o cotidiano representava exatamente o contrário daquilo que estava registrado em minha mente. Pensei em deixar de sonhar. Parar de sonhar? Essa não é a melhor saída. Afinal, aqueles que não sonham deixam a mente ser povoada pelos sonhos de outras pessoas. A partir daquele momento, percebi que precisava alimentar meus sonhos com novo alimento e fui procurar esse alimento no profeta Jeremias.

Jeremias, muito mais do que nós, tinha todas as prerrogativas possíveis para deixar de sonhar com a melhora da vida política no dia a dia de seu povo. Para onde quer que ele olhasse, a situação era completamente desoladora. Vou dar alguns exemplos das dificuldades do povo de Deus no Antigo Testamento:

A (falta de) administração da justiça: “Ai de vocês que decretam leis injustas, leis para explorar o povo. Vocês não defendem o direito dos pobres nem a causa dos necessitados e exploram as viúvas e os órfãos” (Is 10,1-2).

O comércio fraudulento: “Assim como a gaiola está cheia de pássaros, também a casa deles está cheia de coisas roubadas. É por isso que são poderosos e ricos e estão gordos e bem alimentados. A maldade deles não tem limites; não defendem a causa dos órfãos, nem se importam com os direitos dos pobres” (Jr 5,27-28).

A escravidão: “O Senhor falou de novo comigo depois que Sedecias fez um acordo com os moradores de Jerusalém para darem liberdade aos seus escravos. Cada um devia pôr em liberdade os seus escravos hebreus, tanto homens quanto mulheres, para que assim nenhum hebreu tivesse como escravo uma pessoa da sua raça. E todo o povo e as autoridades concordaram em libertar os seus escravos, prometendo nunca mais escravizá-los. Eles libertaram os escravos, mas depois mudaram de ideia e os fizeram voltar, e os obrigaram a se tornarem escravos de novo” (Jr 34,8-11).

O latifúndio: “Ai de vocês que compram casas e mais casas, que se tornam donos de mais e mais terrenos! Daqui a pouco não haverá mais lugar para os outros morarem, e vocês serão os únicos moradores do país. Ouvi o Senhor todo-poderoso dizer isto: As grandes e belas mansões serão destruídas e ninguém ficará morando nelas. Um alqueire de parreiras dará somente uns vinte litros de vinho, e cem quilos de semente produzirão somente dez quilos de trigo” (Is 5,8-10).

O salário: “Ai daquele que constrói a sua casa com injustiça e desonestidade, não pagando os salários dos seus vizinhos e fazendo com que trabalhem de graça. Ai daquele que diz: ‘Vou construir uma casa bem grande, com quartos espaçosos no andar de cima!’ Então ele põe janelas na casa, forra as paredes com cedro e pinta de vermelho. Será que você é rei só porque constrói casas forradas de cedro melhores do que as dos outros?” (Jr 22,13-15).

O luxo e a riqueza: “Naquele dia, o Senhor tirará das mulheres de Jerusalém todos os seus enfeites: os que elas usam nos tornozelos e na cabeça, os colares, os brincos e as pulseiras. Tirará os véus, os chapéus e os enfeites para os braços e os cintos e faixas. Tirará os frascos de perfume, os talismãs, os anéis e as argolas de usar no nariz; os vestidos luxuosos, os mantos, os xales e as bolsas; as saias transparentes, os lenços de linho, os turbantes e as mantilhas. Em vez de andarem perfumadas, elas vão cheirar mal; em vez de cintos finos, usarão cordas grosseiras. Não farão penteados bonitos, mas ficarão carecas. Não usarão roupas finas, mas roupas feitas de pano grosseiro. A beleza delas vai virar uma feiúra de dar vergonha!” (Is 3,18-24).

Tributos e impostos: “Perto de qualquer altar pagão, eles se assentam sobre as roupas que receberam como garantia de pagamento de dívidas e comem dos sacrifícios oferecidos aos ídolos. Para comprar o vinho que bebem no templo do deus deles, usam o dinheiro que receberam de multas injustas. (…) Vocês exploram os pobres e cobram impostos injustos das suas colheitas…” (Am 2,8; 5,11).

Roubo: “Contra as autoridades e os líderes, ele fará esta acusação: Foram vocês que acabaram com Israel, a minha plantação de uvas! As suas casas estão cheias de coisas que vocês roubaram dos pobres! Com que direito vocês esmagam e exploram os pobres?” (Is 3,14-15).

Assassinato: “As roupas de vocês estão manchadas com o sangue de pobres e inocentes que nunca assaltaram as suas casas” (Jr 2,34).

Garantias e empréstimos: “E não explora nem rouba ninguém. Ele devolve aquilo que lhe foi dado como garantia de empréstimo. Dá comida a quem tem fome e roupa a quem está nu. Ele se recusa a fazer o mal e não empresta dinheiro a juros altos…” (Ez 18,16-17).

 

Todas as situações apresentadas acima parecem ser endêmicas à maior parte das sociedades humanas sem instituições políticas e sociais fortes, tanto no passado quanto no presente. Quando olhamos em direção a Israel e Judá, podemos observar que eram, essencialmente, partes de uma comunidade nacional muito jovem e, consequentemente, não possuíam tradições profundas e compromissos bem estabelecidos para efetivar tanto as instituições sociais da lei quanto a estabilidade econômica. Em razão disso, é possível supor que o avanço do imperialismo mesopotâmico — testemunhado por Jeremias — piorou ainda mais a já vulnerável situação desoladora vivida pelo povo.

Não tenho dúvidas de que Jeremias é o mais pertinente dos profetas de Israel para o nosso tempo e lugar. Se fizermos um pouco de exercício hermenêutico, até mesmo poderemos ouvir sua voz crítica, mas também carregada de esperança, tocando as grandes questões que nos incomodam em nosso cotidiano. A época que acompanha a vida do profeta Jeremias é muito abrangente e toda ela é permeada de conotação política. Poderíamos esquematizá-la, segundo os reis e seus reinados, da seguinte maneira: Josias, Joacaz, Joaquim, Joaquin (Jeconias) e Sedecias.

Do ponto de vista da fé israelita, Josias foi um dos poucos reis que mereceram aprovação. Aproveitando-se da decadência da Assíria, fez ampla reforma religiosa. Todavia, por causa de infeliz visão política, acabou falecendo numa batalha no ano de 609 a.C., ao tentar impedir a passagem das tropas egípcias, que então defendiam a Assíria agonizante contra as poderosas forças aliadas dos medos e babilônios. Por quatro anos o Egito voltou a dominar o cenário político da região. Joacaz assumiu em lugar de Josias, mas permaneceu tão somente três meses na posição de rei: foi preso e substituído por outro filho de Josias, Joaquim (609-598). Nessa época, a Babilônia apresentava-se como a potência máxima em toda a região: derrotou o Egito em Carquemis (605) e assumiu a dominação sobre Judá. O rei Joaquim ainda tentou resistir, mas morreu sem ver as consequências de sua terrível política. Assim seu filho Jeconias (598) assumiu o reinado, mas, depois de apenas três meses, teve de render-se e foi exilado na Babilônia, juntamente com altos oficiais e outros importantes (597 a.C., a primeira deportação). O império da Babilônia até permitiu que Judá continuasse existindo como nação sob o governo de Sedecias, que havia sido instalado por Nabucodonosor para reinar em Jerusalém. Num primeiro momento, o rei Sedecias submeteu-se aos babilônios, mas posteriormente, pressionado por seus oficiais, tentou armar nova rebelião. Tais gestos precipitaram o desastre final: após 18 meses de sítio, apenas 22 anos depois da morte de Josias, Jerusalém foi conquistada, seus muros destruídos e o templo arrasado. Em 587 a.C., ocorreu a segunda deportação.

 

Descrevendo nossa personagem

Jeremias nasceu ao redor do ano 645 antes de Cristo em Anatot, pequeno povoado próximo da cidade de Jerusalém. O pai chamava-se Helcias. Não sabemos nada a respeito do nome de sua mãe. Jeremias era de família sacerdotal. Há uma possibilidade de que um dos ancestrais de Jeremias fosse o sumo sacerdote Abiatar. Ele foi sacerdote no tempo do rei Davi, quase 400 anos antes. Na vida desse sacerdote houve um fato marcante: ele e mais alguns líderes foram contra a candidatura de Salomão ao governo. Após a vitória, Salomão promoveu feroz vingança contra aqueles que lhe eram contrários, eliminando a todos. Entretanto, o rei, não tendo coragem de matar o sacerdote, cassou os direitos dele e o exilou em Anatot.

Um dos maiores problemas de Jeremias encontrava-se, justamente, nos integrantes do clero do templo. Esse clero era dirigido por membros da casa de Sadoc. E o profeta provavelmente estava ligado ao rival de Sadoc, Abiatar! Jeremias tinha ao redor de 18 anos quando, em 627 a.C., recebeu sua vocação. Ele não era um homem da capital, mas um jovem agricultor. Em suas imagens é possível observar a influência do ambiente rural: observa os costumes dos animais (8,7); inquieta-se com as consequências de uma seca (14,4); interessa-se pela vinha (8,13).

Pode-se dizer que Jeremias pertencia à esfera de influência dos sacerdotes resistentes de Anatot e, como benjaminita, estava muito próximo às tradições das tribos do Norte, das quais era conhecedor, com destaque para a do êxodo libertador. Anatot era uma cidade levita do território de Benjamin. A tradição dos levitas era zelar pela causa de Javé e manter viva, no meio do povo, a fé nele. Possivelmente Jeremias estava mais ligado às tradições proféticas do Reino do Norte e, por isso, criticava as injustiças da monarquia contra o mundo dos camponeses, o seu próprio mundo.

A leitura do texto de Jeremias tem o poder de retirar-nos da passividade e levar-nos a olhar, com outros e melhores olhos, para a nossa prática cristã na sociedade em que vivemos. A espiritualidade que emana de suas palavras leva-nos a pensar que, em cada um de nós, arde a alma de um profeta e, por isso, não podemos deixar de sonhar com uma sociedade inclusiva. Para facilitar a compreensão do nosso tema, abordarei tão somente uma das percepções políticas de Jeremias, entre tantas possíveis, e a maneira pela qual ele, em meio às turbulências do cotidiano, agiu como filho de Deus à luz de sua espiritualidade.

 

À procura da justiça e do direito

A prática da justiça é a exigência básica que percorre o livro de Jeremias do começo ao fim; a denúncia social em seu discurso é fundamental e inquietante: Não há leis! Não há limites! Buscar a Javé, para Jeremias, não significa visitá-lo informalmente no templo, mas, sim, encontrá-lo na prática da justiça e do direito nas ruas da cidade. Seria no espaço público que a justiça e o direito se encontrariam e se beijariam. O profeta não abre mão de dispensar um tratamento mais profundo ao compromisso da monarquia com a justiça. Sua insistência na defesa das pessoas mais fracas e na proibição de derramamento de sangue inocente é essencial para entendermos a maior novidade de seu discurso, ou seja, a promessa de continuidade da dinastia davídica. Tal promessa não é incondicional, mas vincula-se à prática da justiça. Contudo, ao contrário de Jeremias, a população de Judá está plenamente convencida de que a presença entre eles de um rei da casa real de Davi é um sinal seguro do favor e da proteção de Deus. Mais de três séculos de história parecem provar essa crença, especialmente quando contrastada com o destino das curtas dinastias do Reino do Norte. Jeremias expõe essa perigosa falácia. Para ele, uma fé que tem como seu objeto uma pessoa ou instituição, e não o próprio Deus, é incompleta e inadequada. Um rei indulgente na opressão e que abusa dos privilégios de sua posição não pode esperar receber a bênção e a proteção divina.

Pode-se dizer que estamos, de fato, diante do coração da teologia política de Jeremias: o reinado davídico não é essencial para a eleição divina de Israel. Na verdade, esse mesmo reinado pode tornar-se um obstáculo ao correto relacionamento entre o povo e Deus.

Você dirá ao palácio do rei de Judá: escute a palavra de Javé. Casa de Davi, assim diz Javé: Vocês, de manhã, administrem a justiça e libertem o oprimido da mão do opressor. Senão, a minha ira devorará como fogo; ela se acenderá, e ninguém poderá apagá-la, por causa de todo o mal que vocês praticam. Eu estou chegando, Moradora do vale, Rochedo da planície — oráculo de Javé. Vocês dizem: “Quem poderá vir para nos atacar? Quem entrará em nossas casas?” Eu castigarei vocês conforme o fruto de suas ações — oráculo de Javé. Porei fogo na floresta de vocês e ele devorará tudo em volta. Assim diz Javé: Desça ao palácio do rei de Judá. Chegando aí, diga o seguinte: Rei de Judá, você que está sentado no trono de Davi, escute a palavra de Javé. Que seus funcionários também escutem, como todo o povo que costuma entrar por estas portas. Assim diz Javé: Pratiquem o direito e a justiça. Libertem o oprimido da mão do opressor; não tratem com violência, nem oprimam o imigrante, o órfão e a viúva; e não derramem sangue inocente neste lugar. Se vocês obedecerem de verdade a esta ordem, os reis que se sentam no trono de Davi, e também os seus funcionários e todo o seu pessoal, continuarão entrando pelas portas deste palácio, montados em carros e cavalos. Mas se vocês desobedecerem a estas palavras, eu juro por mim mesmo — oráculo de Javé — que este palácio se transformará em ruína (Jr 21,11-22,5).

A tarefa primordial do rei é a administração da justiça desde o seu palácio. De fato, o palácio deveria ser o local de irradiação do direito e da justiça, mas acabou transformando-se em fonte inesgotável de injustiça e opressão. A justiça, para com aqueles que não conseguiam fazer valer os seus direitos, deveria ser considerada imprescindível. Afinal, as leis serviam para proteger o povo contra as extorsões dos poderosos, preveni-lo contra a corrupção dos juízes e ainda amenizar a sorte das categorias desfavorecidas. Assim sendo, a ação preferencial da realeza deveria promover a defesa dos oprimidos e não fomentar a injustiça. E o texto bíblico procura ser metódico na defesa dos enfraquecidos: a defesa precisa acontecer de manhã! Por quê? Exatamente porque é pela manhã que os pobres comparecem ao tribunal público, levando as suas causas (cf. 2Sm 15,2-4). A administração da justiça foi um tema frequente nos profetas anteriores. Dela dependia, em grande parte, a existência da sociedade. Até então, só encontramos exortações dirigidas a alguns grupos específicos, entre os quais os juízes, as autoridades, os chefes de Israel e de Judá e os sacerdotes. Todos esses eram responsáveis pela administração da justiça. Porém o rei, como o responsável último, não era mencionado. Jeremias muda essa situação e mostra que é, de fato, o rei que deve servir de intermediário entre o povo e Deus, administrando a justiça e o direito.

Apesar disso, em vez de solidariedade aos pobres, o que se pode observar é a mais pura e nociva presunção dos que moram na cidade: “Quem pode vir nos atacar? Quem poderá entrar em nossas casas?” Jerusalém sente-se inexpugnável e, por isso, não tem medo. Assim, pode continuar com seus atos de opressão sem qualquer tipo de preocupação. Mas Javé está atento: o desrespeito pelos mais pobres pode implicar a ruína dos mais ricos causadores da opressão. Para a teologia bíblica, a continuidade ou extinção da vida depende da construção ou não de relações profundamente humanas e afetivas com aqueles transformados em objeto! Há no ar a percepção de que a humanidade não pode e não deve ser reduzida a apenas uma categoria de indivíduos e, portanto, as linhas-limite que impedem a construção de uma sociedade planetária e cidadã devem ser alteradas.

Para isso, é fundamental entender que só podem existir dois relacionamentos fundamentais entre uma pessoa e outra entidade individual. O primeiro relacionamento poderíamos chamar de eu–coisa. É uma forma de relacionar-se com algo como com uma coisa ou objeto, cujo valor é extrínseco ou instrumental. Quando se encontra em uma relação desse tipo com algo, a pessoa valoriza-o apenas à medida que ele serve aos seus propósitos. Seria o caso de um relacionamento com um copo, cujo único valor consiste em sua capacidade de conter a água que se está bebendo e de levá-la de uma forma eficiente até a boca. O segundo relacionamento poderíamos chamar de eu–tu. É a atitude fundamental que um ser humano deveria tomar sempre para com o outro, um relacionamento de respeito em que ao outro indivíduo é atribuído um valor intrínseco, valor em e por si, independentemente de poder gerar qualquer outro valor particular. É uma postura de respeito e de dignidade.

O descaso com o que é genuinamente humano é o principal motivo pelo qual tantas pessoas na sociedade se sentem mais vítimas do que beneficiárias dos avanços do progresso científico-tecnológico e econômico. Talvez seja necessário perceber que a deterioração da percepção do outro produz, consequente e inevitavelmente, uma negação ontológica que desemboca na violência e se traduz no fato de que o ente, sem desaparecer, se encontra em meu poder. Ora, semelhante negação — ainda que parcial — é desumana. Nega a independência do outro, torna-o dependente. Para Jeremias, nenhuma alternativa é possível: somente a prática da justiça e do direito poderá sustentar o trono. Sem essa prática, o palácio transformar-se-á em um luxo-lixo inútil e perigoso.

 

Solidariedade como prática política

E qual seria o princípio da solidariedade? Justamente a prática do direito e da justiça. No começo, o texto fala de modo genérico dos que sofrem a opressão, mas depois os especifica. Genericamente são os oprimidos, que em seguida assumem o rosto do imigrante, do órfão e da viúva. Convém salientar que, por enquanto, o profeta não está dizendo nada de novo. Ele simplesmente invoca com insistência a legislação que protege os inocentes: “Não maltrate a viúva nem o órfão, porque, se você os maltratar e eles clamarem a mim, eu escutarei o clamor deles” (Ex 22,21-22); “Não distorça o direito do estrangeiro e do órfão, nem tome como penhor a roupa da viúva” (Dt 24,17). Contra eles há modos diferentes de agir opressivamente. O texto cita pelo menos três: “mão do opressor”, “tratar com violência” e “derramar sangue inocente”. O espaço do palácio privilegia grupos que dão sustentação ao projeto real; o palácio é um espaço privado por excelência que, consequentemente, marginaliza os grupos sociais minoritários. Aos pertencentes ao espaço privado — rei, funcionários e os que costumam frequentar o local — contrapõem-se os habitantes do espaço público, ou seja, o imigrante, o órfão e a viúva.

Ai daquele que constrói a sua casa sem justiça e seus aposentos sem direito, que faz o próximo trabalhar por nada, sem dar-lhe o pagamento, e que diz: “Vou construir uma casa grande, com imensos aposentos”. E faz janelas, recobre a casa com cedro e a pinta de vermelho. Você pensa que é rei porque tem mais cedro que os outros? O seu pai não comeu e não bebeu? Pois ele fez o que é justo e o que é direito, e no seu tempo tudo correu bem para ele. Ele julgava com justiça a causa do pobre e do indigente; e tudo corria bem para ele! Isto não é conhecer-me? — oráculo de Javé. Mas você não vê outra coisa e não pensa a não ser no lucro, em derramar sangue inocente e em praticar a opressão e a violência (Jr 22,13-17).

Jeremias faz uma descrição corajosa do rei Joaquim. O país encontra-se sob o domínio do Egito. O faraó impôs pesado tributo a Judá. O texto bíblico em 2Reis 23,33 dá a conhecer a dimensão do tributo: “O faraó impôs ao país um tributo de três toneladas e meia de prata e trinta e quatro quilos de ouro”. O rei Joaquim, para ser “fiel” ao conquistador, “para pagar a quantia exigida pelo faraó, teve que criar impostos no país” (2Rs 23,35). Ou seja, o rei repassa a dívida para o povo, gerando uma exploração ainda maior. A corrupção anda solta. Mesmo nessa situação, o rei acha normal construir seu luxuoso palácio enquanto o povo passa fome. A descrição do texto bíblico não deixa lugar para dúvidas: apesar da falta de dinheiro por causa do tributo, o rei gasta verdadeira fortuna na construção de um palácio de uso privado! Uma lógica perversa começa a ser construída. Uma inversão que até hoje, numa sociedade consumista, consagra o ter e degrada o ser. Joaquim está contrariando o que diz Deuteronômio 44,14-15: “Não explore um assalariado pobre e necessitado, seja ele um de seus irmãos ou imigrante que vive em sua terra, em sua cidade. Pague-lhe o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e a sua vida depende disso. Assim, ele não clamará a Javé contra você, e em você não haverá pecado”. O que se pede é que as relações sociais sejam baseadas na fraternidade e na solidariedade, e não na instrumentalização do outro como fonte de lucro.

A fim de que nada se extravie nessa descrição, o profeta compara Joaquim ao seu pai, Josias. É na prática de cada um deles que verificamos a diferença básica. Em Josias encontramos um rei que, com seu governo, procurou reformar a vida da nação. Mas, em Joaquim, o próprio governo transformou-se num centro de opressão, corrupção e violência. É a própria concepção de realeza que está em jogo. Joaquim não somente infringe uma lei do Deuteronômio, mas também falta com a sua obrigação de rei ao deixar a justiça e o direito distantes de sua prática real. Que significa o próximo na vida do rei Joaquim? Absolutamente nada! O próximo é reduzido a mão de obra e objeto de opressão. Ao reduzir o ser humano a menos do que ele é, o rei Joaquim sinaliza que ele mesmo já se desumanizou. Ao negar ao outro uma visão enriquecedora do ser humano, ele mesmo se identifica como o protagonista da antivida.

 

Espiritualidade e política

Joaquim vive na prática da injustiça e essa situação impede-o de conhecer a Javé. Que significa conhecer a Javé? O texto não deixa dúvidas: é reconhecer suas exigências éticas. Mas como poderia Joaquim viver segundo um padrão ético se o seu coração está totalmente entregue ao lucro? Se, para atingir o lucro, é capaz de fazer uso da violência e assassinar o próprio povo? Os olhos e o coração de Joaquim transbordam de práticas injustas de tal maneira, que não há espaço para o cultivo da justiça e do direito. Quando há ausência da justiça e do direito, multiplicam-se todos os tipos de injustiças. Triste a situação de Joaquim: o dinheiro é o seu deus e, por isso, o rei é incapaz de reconhecer o Deus verdadeiro, que não tolera qualquer tipo de adversário! Na morte de Joaquim não se fará uso das lamentações normais (1Reis 13,30) e ele também não terá um funeral real (2Reis 24,6). Ao contrário, será jogado sem cerimônia num monte de lixo, assim como jumentos mortos eram arrastados para fora da cidade e deixados para apodrecer. A veemência do ataque de Jeremias ao rei Joaquim constitui uma das mais incisivas condenações a um governador encontradas nas páginas da Bíblia. Triste destino para aquele que fazia do luxo seu principal objetivo. Triste fim, do luxo para o lixo!

A atualidade dos textos de Jeremias é impactante assim como a sua mensagem e exemplo. Muitas vezes pensamos, de forma errônea, que a espiritualidade é algo a ser cultivado apenas interiormente. O exemplo de Jeremias vai em outra direção: a espiritualidade manifesta-se preferencialmente no encontro com a vida e, sem sombra de dúvida, na defesa da vida. “Conhecer a Deus” é a fonte em que aprendemos a ser éticos e mediante a qual irrigamos, pelo nosso comportamento e participação, a sociedade em que vivemos. Nesse sentido, espiritualidade não é isolamento, e a participação política do cristão representa excelente oportunidade de testemunho espiritual.

 

Bibliografia

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Luiz Alexandre Solano Rossi