Artigos

Publicado em março-abril de 2011 - ano 52 - número 277

A ecologia numa perspectiva Bíblica: Pautas para uma espiritualidade ecológica

Por Celso Loraschi

Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente doente. O problema ecológico é muito sério. Até os “donos do mundo” estão preocupados. O aquecimento global já produz efeitos maléficos sobre a natureza. Poderá trazer, a curto prazo, consequências ainda mais catastróficas do que as que o mundo hoje já experimenta: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares com a decorrente elevação do nível do mar, cobrindo as áreas litorâneas, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas… Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.

 

1. Por uma espiritualidade ecológica

 

Diante da grave situação em que se encontra a humanidade, tomamos consciência da responsabilidade comum que os povos precisam assumir para salvar a nossa casa comum. Independentemente de raças, culturas ou tradições religiosas, o momento é de união para a busca de soluções criativas em vista da garantia de vida para a humanidade, também para as gerações que virão.

A Bíblia não trata diretamente da ecologia. Outros contextos determinaram seus textos. No entanto, a palavra de Deus contida na Bíblia ilumina e interpela o ser humano em seu contexto histórico, independentemente da época em que vive. Ela oferece princípios orientadores para a defesa e a promoção da vida. Nela também encontraremos textos que legitimam a opressão. Depende do lugar social de onde eles emergiram e dos interesses de seus autores. Depende, também, do lugar social e dos interesses dos intérpretes de hoje. Neste breve artigo, perpassando pelas principais etapas da história de Israel, pretendemos ressaltar alguns textos que nos ajudam a perscrutar caminhos de espiritualidade ecológica.

Espiritualidade significa viver segundo a dinâmica profunda da vida. Ela revela um lado exterior como conjunto de relações que concernem ao outro como homem-mulher, a sociedade e a natureza, produzindo solidariedade, respeito às diferenças, reciprocidade e sentido de complementação a partir dos outros (Boff, 1993, p. 138).

 

2. A natureza solidária

 

A Bíblia testemunha que, em meio às situações de crise, o povo redescobre o rosto de Deus, investiga seu projeto e experimenta sua presença amorosa, dedicando-lhe confiança na busca de soluções criativas para os seus problemas. É o que constatamos já na origem do povo de Israel. O clamor dos escravizados do Egito chegou até Deus. Um novo espírito, a partir da ação subversiva de duas parteiras (Ex 1,15-22), alimentou a resistência e a organização das pessoas oprimidas. Nelas explode a utopia da terra sem males, que as leva a superar o medo, confrontar-se com os interesses do faraó e iniciar o movimento do êxodo. A natureza, em seus diversos fenômenos, foi-lhes companheira determinante para a saída do Egito. As pragas são a expressão dessa solidariedade, bem como a passagem pelo mar Vermelho. O deserto serviu como espaço de aprendizagem para a construção de novo projeto social. A nuvem foi o símbolo maior da presença misteriosa de Deus caminhando à frente de seu povo.

É nessa caminhada que nasce o povo de Israel, resultado da união de diversas tribos que se unem e se identificam no mesmo propósito de liberdade e de vida digna. Buscam desvencilhar-se do modelo concentrador do Egito e das cidades-estado que apresentavam declínio de poder, com dificuldade de controlar todos os seus territórios. No meio dos pastores e agricultores, especialmente, cresce a consciência política de oposição ao sistema vigente já enfraquecido e busca-se construir um modelo econômico sem exploração. A terra vai sendo assumida como dom de Deus e, portanto, patrimônio comum das tribos. Inicia-se o período conhecido como tribalismo (1200 a 1000 a.C.), resultado de um processo conflituoso, com inúmeros desafios internos e externos. O novo modelo social sustentou-se alicerçado em princípios políticos e econômicos vividos com base nas organizações locais, como a família e o clã, ligadas às mais amplas, como a tribo e a união das tribos. O povo foi adquirindo a consciência de pertencer a uma só nação, formada por uma “rede de tribos”.

Para o objetivo de nosso estudo, queremos ressaltar o texto de Ex 16, por exprimir a concepção das tribos a respeito dos bens que a natureza oferece. É o relato sobre “o maná e as codornizes”. De dois fenômenos naturais retiram-se as lições que fundamentam a economia de uma sociedade justa e fraterna. A falta de alimentos não é proveniente da escassez de produção. A natureza é pródiga, reveladora da providência divina. Ao ser humano, criatura dotada de inteligência e vontade, cabe administrar com justiça, evitando o acúmulo e respeitando as necessidades de cada um. “Assim, Iahweh ensina uma ética revolucionária e popular, que sabe que as pessoas têm necessidades que devem ser satisfeitas, mas não tolera a acumulação” (Pixlei, 1987, p. 121). Além disso, Iahweh garante o alimento também para o sétimo dia, dedicado ao descanso, à memória das ações salvíficas de Deus, bem como ao fortalecimento das relações gratuitas. Isso lembra o ponto alto do relato da criação (cf. Gn 2,2): tempo dedicado ao cultivo da dignidade da criação, da santidade da terra e do trabalho humano. É a consagração do tempo e do espaço. “Desde que Israel recebeu a revelação de que o tempo é de Deus, também descobriu que a terra é de Deus. A posse do tempo, como a da terra, é recebida de graça e repartida. Há, então, na lei de Israel, uma relação profunda entre o sábado e a posse da terra” (Barros, 1996, p. 44).

Em síntese, as diferentes tribos de Israel formaram um só povo. A partir das instituições locais, garantiram os recursos necessários a todas as famílias. Leis diversas protegeram o cuidado com a terra (como a do ano sabático: Lv 25,1-7) e o direito à vida digna sem exclusão (como a do resgate das propriedades e das pessoas: Lv 25,23-55). Mesmo sendo textos posteriores ao tribalismo, guardam elementos tradicionais. É claro que o modelo social do tribalismo israelita sofreu contradições internas, intrigas entre tribos e guerras com vizinhos. No entanto, dele herdamos os princípios básicos que orientam a espiritualidade ecológica: fundamenta-se na relação respeitosa com a natureza, fonte de todos os recursos para a vida de todas as nações.

 

Mais do que nunca, é necessário nova espiritualidade. Como seres humanos, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a criação possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça (Vieira, 1999, p. 87).

3. O espinheiro presunçoso

 

Em torno do ano 1000 a.C., inicia-se nova situação de clamor popular. A ameaça de invasão de povos vizinhos e as intrigas internas das tribos provocaram a mudança de regime em Israel. Estabelece-se a monarquia, não sem conflitos entre essa proposta e os movimentos de oposição. O conhecido “apólogo de Joatão” (Jz 9,7-15) satiriza a opção pela monarquia, dando voz às árvores e pondo-as em assembleia com o objetivo de escolher um rei. Ao receber a proposta de reinar sobre as demais, cada uma das principais árvores frutíferas de Israel (figura do regime tribal) rejeita-a imediatamente, em fidelidade aos bons frutos que produz. No entanto, o espinheiro (figura da monarquia) aceita de bom grado a oferta, impondo duras condições aos seus súditos. De fato, pouco a pouco, o povo é expropriado de suas terras e dominado pelos interesses dos sucessivos reis.

O terceiro capítulo de Gênesis reflete sobre as consequências da monarquia. Com a pretensão de “ser como Deus”, ela é responsabilizada pela desordem da natureza, pela exploração do trabalho humano e pela quebra das relações de fraternidade. Dominada pelos interesses dos poderosos, a terra já não responde graciosamente, e as famílias passam a conhecer a fadiga e as dores.

Deus ouve o clamor de seu povo e conhece os seus sofrimentos. Manifesta-se agora por meio do movimento profético, apontando caminhos de justiça social. Elias e Eliseu são conhecidos como “pais” desse movimento. Em virtude de sua fidelidade à aliança com Deus, indispõem-se com a política dos reis. Basta citar o episódio da vinha de Nabot, cobiçada e usurpada pelo rei Acab e sua mulher, Jezabel. O intento foi alcançado mediante o assassinato de Nabot. Elias fulmina a condenação de Deus sobre o rei (cf. 1Rs 21). Ele e Eliseu se confrontam também com os falsos profetas, ideólogos apoiadores da política palaciana. Comprometem-se na solução dos problemas que afetam o cotidiano das pessoas necessitadas. Vão ao encontro e põe-se a serviço de quem precisa de ajuda: pode ser uma situação de fome ou de doença, ou uma panela envenenada, ou um machado perdido, ou até a morte de uma criança. Não importam as situações: importa é o amor efetivo. Os recursos da natureza e a prática da partilha são meios privilegiados para a eficácia da ação profética de Elias e Eliseu (cf. 1Rs 17,1-16; 2Rs 4,1-6,7).

Também as veementes denúncias dos profetas literários revelam a triste realidade provocada pela ganância dos poderosos, pelas suas mentiras, roubos, assassinatos e toda espécie de violência. “Por isso, a terra se lamenta, os seus habitantes desfalecem, os animais dos campos desaparecem, bem como as aves do céu e até os peixes do mar” (Os 4,3). Mas profecia não é sinônimo de catastrofismo. Ela aponta para a possibilidade de transformação social. Tanto Oseias como Amós a descrevem à imagem de uma restauração da natureza, apresentada em toda a sua grandiosidade e beleza (cf. Os 14,6-7 e Am 9,13-15).

A situação do Reino do Norte, onde atua Oseias, não é diferente da do Reino do Sul, onde, contemporaneamente, atua o profeta Primeiro Isaías. De forma alegórica, este contempla Israel como uma vinha edificada cuidadosamente por Deus, que “esperava que ela produzisse uvas boas, mas só produziu uvas azedas… Esperava o direito, mas o que produziram foi a transgressão; esperava a justiça, mas o que apareceu foram gritos de desespero” (Is 5,2.7). O profeta aponta para a causa dessa situação desesperadora, formulando a ameaça divina: “Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra” (5,8). Ele, porém, aponta também para um novo futuro, anunciando o dia em que se cantará a “vinha graciosa”, sendo o próprio Deus aquele que a rega e a vigia para que não seja danificada (cf. Is 27,2-3).

Constatamos, então, que o movimento profético não se atém à denúncia da política perversa. É, sobretudo, o portador da benevolência divina às vítimas do poder. A profecia desperta a consciência adormecida e imprime nova dinâmica no meio popular. Por exemplo, o profeta etíope Sofonias, no século VII a.C., vislumbra a saída da opressão por meio de uma nova política, organizada com base na união dos humilhados e enfraquecidos do campo (os pobres da terra) e da cidade (o povo pobre e humilde): “Procurai a Iahweh vós todos, os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a pobreza… Deixarei em teu seio um povo pobre e humilde que procurará refúgio no nome de Iahweh, o Resto de Israel. Eles não praticarão mais a iniquidade, não dirão mentiras; não se encontrará em sua boca língua dolosa. Sim, eles apascentarão e repousarão sem que ninguém os inquiete” (2,3; 3,12s).

O profeta Jeremias, já no contexto do exílio da Babilônia, fazendo uso de verbos próprios do cultivo da terra, reflete sobre a experiência desastrosa pela qual passou o povo, enfatizando as perspectivas de reconstrução. Israel, em seus momentos históricos marcados por opressões e crises, sempre testemunhou a intervenção misericordiosa de Deus para corrigir e condenar, mas também para perdoar e fazê-lo levantar-se: “Assim como velei sobre eles para arrancar, para arrasar, para demolir, para exterminar e para afligir, assim também velarei sobre eles para construir e para plantar, oráculo de Iahweh” (Jr 31,28).

Para uma espiritualidade ecológica, não podemos deixar de resgatar as denúncias e as propostas levantadas pelo movimento profético. Elas oferecem subsídios importantes para a reflexão e o posicionamento diante da gravidade do momento histórico em que nos encontramos.

 

O que temos de entender é que a crise social e a crise ecológica que estamos vivenciando brotam do mesmo modelo de desenvolvimento. São intrínsecas ao atual modelo de sociedade. Para o livre-comércio, a livre circulação das mercadorias, e para o livre trânsito do capital, não interessa nenhum tipo de regulamentação, seja de proteção aos direitos trabalhistas, seja de proteção às culturas e aos povos nativos e originários, seja de proteção ambiental. O atual modelo econômico direcionado para a reprodução do capital devora tanto as pessoas quanto as culturas, tanto as florestas quanto o restante do patrimônio hídrico-natural (Dietrich, 2007, p. 79).

 

O que temos de entender também é que, se dentro de cada um de nós, parafraseando L. Boff, existe um Homo demens, capaz de destruição e de morte, existe também o Homo sapiens, capaz de reconstruir as condições para um mundo solidário. A fé que herdamos da tradição profética nos impulsiona a trilhar o caminho da justiça e salvar o planeta.

 

4. Água e árvores no deserto

 

No exílio da Babilônia (séc. VI a.C.), à medida que passam os anos, cresce o desespero dos que foram retirados de sua terra, com a sensação de um futuro fechado. Novamente, Deus mostra seu rosto amigo, prometendo assumir o pastoreio de suas ovelhas dispersas, suscitando coragem e reunindo os “ossos secos”, a fim de que formem um corpo cheio de vida (cf. Ez 34 e 37). Também agora, nessa difícil situação, Deus renova a aliança: “Concluirei com eles uma aliança de paz e extirparei da terra as feras, de modo que habitem na terra com segurança e durmam nos seus bosques”. Garante-lhes ainda uma natureza abençoada: “A árvore do campo dará o seu fruto, e a terra produzirá a sua safra…” (Ez 34,25.27).

A profecia acorda a consciência. A esperança de um futuro novo faz o povo erguer a cabeça. Vislumbram-se o declínio do império babilônico e a ascensão da Pérsia, trazendo novas perspectivas. Os fatos sinalizam o caminho a ser seguido. Além de Ezequiel, o movimento profético de Segundo Isaías anuncia novo êxodo. A situação de morte em que vivem os exilados será transformada: Deus suscita uma nova criação. É no exílio da Babilônia que o primeiro relato da criação é elaborado. Está em andamento o resgate da identidade de um povo chamado a ser artífice de uma nova história. “A coisa nova justamente acontece ao acender a consciência da condição de exilados e ao despertar a memória das tradições culturais teológicas do passado. O Deus que libertara os escravos no Egito, do fundo da escravidão, é o Deus que agora pronuncia o nome daqueles que não possuem nome reconhecido na sociedade” (Hahn, 2009, p. 42).

A atualização da memória histórica gera a capacidade de discernimento e renova as forças para a retomada da utopia de uma terra sem males. Ao citar as sete árvores que brotarão no deserto e na estepe, o profeta anuncia a vida em abundância numa terra de liberdade: “Farei jorrar rios por entre montes desnudos e fontes no meio dos vales. Transformarei o deserto em pântanos e a terra seca em nascentes de água. No deserto, estabelecerei o cedro, a acácia, o mirto e a oliveira; na estepe, colocarei o zimbro, o cipreste e o plátano” (Is 41,18-19).

O grupo profético do Segundo Isaías caracteriza-se como “mensageiro do novo. É evangelista, no sentido literal do termo… A dor está com os dias contados” (Schwantes, 1987, p. 101). Não há situação sem saída. Nada poderá levar o ser humano ao fatalismo. Deus, criador de todas as coisas, é também o libertador das condições desumanas: “Os pobres e indigentes buscam água, e nada! Sua língua está seca de sede, mas eu, Iahweh, os atenderei, eu, o Deus de Israel, não os abandonarei” (Is 41,17).

 

Não basta recordar a ação divina do passado. É preciso prestar atenção ao novo que Deus está criando na história do seu povo. Esse novo engloba toda a natureza junto com Israel: “Eis que faço uma coisa nova! Já está despontando, não o percebeis? Sim, abro uma estrada no deserto, faço correr rios em terra árida. Os animais selvagens me darão glória, os chacais e as avestruzes, pois dei água ao deserto e rios à terra árida. O povo que formei para mim proclamará meu louvor” (43,19-21) (Garmus, 2006, p. 38).

 

5. A natureza como leito nupcial

 

Os que voltam da Babilônia vêm com o projeto de reconstrução do templo, sob a égide do governo persa. Os agricultores, ocupantes da terra, são impedidos de colaborar, o que provoca grandes conflitos internos. Impõe-se o grupo dos que voltaram, liderados por sacerdotes que, pouco a pouco, estabelecem o sistema sacerdotal de pureza. A maioria da população é excluída da pertença ao povo eleito e também da posse da terra. Toda a vida social é estruturada ao redor do Templo com suas imposições legalistas. Também nessa nova situação de crise, Deus suscita profetas e, sobretudo, movimentos sapienciais, animadores da resistência e do empenho por uma nova sociedade. É o que constatamos, por exemplo, neste anúncio de Terceiro Isaías: “Com efeito, vou criar novos céus e nova terra… Não haverá ali criancinhas que vivam apenas alguns dias, nem velho que não complete a sua idade… Os seres humanos construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos…” (Is 65,17-25).

Vários outros grupos populares manifestam o despertar de uma nova consciência, não atrelada aos interesses dos que concentram o poder e a terra. Um deles transparece no livro do Eclesiastes reivindicando uma organização social inspirada no tribalismo, um modelo que garante o bem-estar e a felicidade a todas as famílias: “Comer e beber, desfrutando do produto do nosso trabalho… Isso vem de Deus!” É a tese fundamental levantada ao longo do livro. Por sete vezes é enfatizada a mesma proposta (cf. 2,24-26; 3,12-13; 3,22; 5,17-19; 8,15; 9,7-9; 11,9-12,1): o direito ao trabalho livre para suprir as necessidades básicas das famílias, sem exploração e sem expropriação dos produtos pelo governo.

O movimento sapiencial manifesta-se, especialmente, pelo protagonismo das mulheres. Sua resistência e criatividade são evidentes. Levantam ousadamente novas propostas sociais, como podemos perceber por meio dos livros de Ester, Judite e Rute. Aqui nos interessa especialmente o Cântico dos Cânticos, também expressão de um movimento feminino. A identificação dos enamorados – camponesa e pastor – situa o lugar social desse movimento. Ele vem do campo. A cidade é lugar de violência. Daí a evocação de toda a simbologia da natureza, do cosmos e dos animais, próprios do mundo campesino. Daí o convite para viver o amor com toda a sua intensidade no espaço da roça.

A natureza exerce relevância especial nessa coletânea de poemas que formam o livro. Ela contribui ativamente para a felicidade da mulher e do homem. A poesia nasce da contemplação de todas as criaturas. Assim, de maneira profundamente encantadora, exalta a beleza do amor humano vinculado ao espaço natural: “Vem, meu amado, vamos ao campo, pernoitemos nas aldeias, madruguemos pelas vinhas, vejamos se a vinha floresce, se os botões se abrem, se as romeiras florescem: lá te darei meu amor…” (Ct 7,12-13).

 

A natureza exuberante é o cenário de um amor apaixonado. Nos campos e vinhas, os amantes se encontram. A cidade, porém, com seus muros, guardas e reis, é lugar do desencontro, da saudade, do medo. Na cidade é preciso se defender, tomar cuidado, fugir. Nos campos, a entrega é total… Nesse relacionamento, a natureza não explorada (como queriam o Templo e o Estado, a serviço do mercado) torna-se cúmplice, aliada, amiga e companheira dos amantes (Rizzante Galazzi, 1993, p. 28-38).

 

É possível perceber, sem muito esforço, que as autoras do Cântico dos Cânticos propõem o resgate do estado original da criação de Deus. Numa atitude de permanente busca, mulher e homem se reconhecem um frente ao outro, numa relação de total transparência e de mútua confiança. Percebem-se no meio de um jardim, como nos inícios. Propõem o ideal vivido no tribalismo israelita. A mulher vem do deserto: quem é ela? (Ct 3,6) Pelo caminho do deserto, o povo de Israel libertou-se da escravidão e tornou-se sujeito de uma nova sociedade. Propõem o resgate da terra como espaço de liberdade e vida em abundância. Propõem também o resgate de uma espiritualidade baseada na contemplação do corpo humano e de toda a natureza, longe da exploração e da ganância. Propõem a religião do amor que se faz carne no cotidiano da existência, em íntima relação entre os seres humanos e com tudo o que existe. Propõem, enfim, o ideal da fraternidade: “Ah, se fosses o meu irmão!” (8,1).

 

6. A natureza e a proposta de Jesus

 

Jesus, como missionário itinerante, movimentou-se por inúmeros lugares e diversificadas paisagens. Seus ensinamentos possuem forte vinculação com a natureza: ela é uma das principais fontes de inspiração para sua proposta. Jesus demonstra possuir profundo senso de observação do seu ambiente vital. Dessa realidade extrai a maioria de suas parábolas, meio privilegiado para despertar uma nova consciência em seus interlocutores. “A fonte de sua sabedoria pode ter sido vista como uma profunda consideração do mundo natural e seus processos, conduzida à luz das escrituras hebraicas e do Deus criador de que elas falam” (Freine, 2008, p. 46).

Jesus herdou de sua tradição religiosa a concepção de Deus como Criador e capta a sua presença nos mínimos aspectos da natureza e nos gestos aparentemente insignificantes das pessoas sem projeção social. É revelador da sua fé e da sua atitude de profunda contemplação aquele momento em que se dirige ao Pai em ação de graças: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra…” (Mt 11,25). O Pai é cuidador da vida de seus filhos e proporciona todos os recursos necessários para a vida de cada um deles, também dos pássaros do céu e dos animais do campo. A providência divina, tão evidente em toda a natureza, está vinculada ao cuidado que o ser humano deve ter com todas as coisas.

 

Jesus convida a sua audiência a considerar os lírios do campo, cuja vida é tão breve, e os pássaros no ar, que, aos olhos dos homens, têm pouco valor por conta do seu grande número. Não obstante, em ambos os casos, Deus provê as necessidades deles. No interior dessa “cadeia do ser”, os seres humanos podem ter um lugar especial, mas isso não deve levá-los a ignorar o cuidado que Deus tem pelos elementos em aparência mais insignificantes do seu mundo criado, do qual também são parte (Freine, 2008, p. 45).

 

A providência divina está, portanto, intimamente ligada à ética social. Herdeiro da legítima tradição profética de Israel, Jesus condena veementemente a exploração econômica, a concentração dos bens e toda forma de dominação. Em sua missão em favor das pessoas marginalizadas, deixa claro não ser possível “servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). Relaciona-se com todas as criaturas, respeitando a dignidade de cada ser. É só abrir o Evangelho e observar, em cada texto, como Jesus vive e apresenta a sua proposta de vida digna sem exclusão. Por meio dos cinco sentidos próprios de todo ser humano, ele expressou seu amor cotidianamente, construindo relações de fraternidade e de justiça. Seus olhos, ouvidos, tato, olfato e paladar revelam sua maneira característica de ser portador da graça divina em todo lugar e em toda circunstância. Sua prática transformou-se em caminho para uma vida verdadeiramente humana, que ele chamou de “reino de Deus”.

 

7. Sob o impulso do Espírito

 

O intuito principal deste artigo é colaborar para uma espiritualidade que emerge da compreensão do caráter sagrado da natureza, palco dos acontecimentos reveladores da bondade salvífica de Deus. Na tradição judaico-cristã, a vida do ser humano está intimamente ligada com a vida da natureza. As dimensões política, econômica e religiosa estão relacionadas com a dimensão ecológica. Uma depende da outra. Todas dependem do modo de administrar adotado pela criatura inteligente.

Estamos hoje num momento histórico crítico. A espiritualidade ecológica exige nova postura. Não foge da crise, pois sabe que as situações de crise se mostram favoráveis às mudanças necessárias, tanto em nível pessoal como social.

 

A crise é uma situação de alerta, de tensão e de exigência. Alerta anunciando que o estado presente, somatório de etapas passadas, chegara ao seu ponto de maturação, exigindo mudança. Tensão entre o estado alcançado e o modelo que a natureza aspira, exigindo ação de escolha e discernimento. Exigência de providenciar as mutações reivindicadas pela tensão presente no novo que se anuncia. Pede capacidade de julgamento e decisão (Gorgulho, 1994, p. 55).

 

A Bíblia testemunha que os seres humanos podem ser agentes de bênção ou de maldição. À medida que a sagrada aliança é respeitada, a bênção divina se concretiza na fertilidade e na abundância dos frutos da terra. A bênção está relacionada com a concepção da terra como dom de Deus para a vida das pessoas e dos animais. “Ela é muito boa”, como tudo o que Deus criou (cf. Gn 1). Por isso, a organização social e política (como aconteceu no tribalismo) deve garantir o cultivo da terra e a partilha dos bens segundo a necessidade de cada família. A maldição é consequência da infidelidade à aliança. Ela se manifesta na desolação da terra e na carência dos recursos necessários para a vida do povo (cf. Dt 28). Está relacionada com a proposta sociopolítica (como aconteceu com a entrada da monarquia israelita) baseada na ambição e na ganância dos grupos que vão se impondo hegemonicamente sobre a maioria da população.

A tradição judaico-cristã revela-nos que o Espírito de Deus age junto às vítimas do poder, suscitando movimentos e organizações capazes de abrir caminhos novos em vista da reconstrução de um mundo justo e fraterno. Os movimentos proféticos e sapienciais cumpriram esse papel. Jesus bebeu da fonte da Profecia e da Sabedoria para apresentar sua proposta de vida digna sem exclusão. Seu movimento estendeu-se pelo mundo, anunciando a chegada de um novo tempo.

Hoje, são milhares as iniciativas de defesa e promoção do direito e da dignidade de toda a criação. Em dores de parto, gememos – o ser humano e a natureza –, na expectativa da redenção (cf. Rm 8,18-25). Ela está permanentemente em gestação sob o impulso do Espírito de Deus e da responsabilidade humana. Na esperança militante, apostamos no advento de “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21), com a tenda de Deus no meio de nós e com o respeito e a veneração devidos a todas as coisas, não só porque a Trindade habita toda a criação ou porque todos nos encontramos na mesma casa, mas sobretudo porque formamos um só corpo.

 

 

* Professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc), Florianópolis. E-mail: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

BARROS, Marcelo. Testemunho e utopia: quando a Torá e a Terra se encontrarem. Ribla, Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, n. 24, 1996.

BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade: a emergência de um novo paradigma. São Paulo: Ática, 1993.

DIETRICH, Luiz José. Pautas para uma hermenêutica ecológica: a solidariedade abarcando todas as formas de vida. Encontros Teológicos, Florianópolis: Itesc, n. 46, 2007.

FREINE, Sean. Jesus, um judeu da Galileia: nova leitura da história de Jesus. São Paulo: Paulus, 2008.

GARMUS, Ludovico. Criação e história em Is 40-55. Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n. 89, 2006.

GORGULHO, Maria Laura. O novo eixo nas decisões da vida: a novidade deuteroisaiana. Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n. 42, 1994.

HAHN, Noli Bernardo. Vozes proféticas em Dêutero-Isaías: a recriação da identidade de um povo. Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n. 103, 2009.

PIXLEI, George. Êxodo. São Paulo: Paulinas, 1987.

RIZZANTE GALAZZI, Ana Maria. E Javé passeava pelo jardim (Gn 3,8). Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, n. 38, 1993.

SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1987.

VIEIRA, Tarcísio Pedro. O nosso Deusum Deus ecológico: por uma compreensão ético-teológica da ecologia. São Paulo: Paulus, 1999.

 

Celso Loraschi