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Publicado em novembro-dezembro de 2011 - ano 52 - número 281

A pastoral em novas perspectivas (III): espiritualidade ecológica e perspectivas pastorais

Por Pe. Nicolau João Bakker, svd

INTRODUÇÃO

Observamos na introdução ao tema em foco (Vida Pastoral, n. 278/2011) que a ação pastoral da Igreja se alimenta de três fontes: a cosmovisão da época, a espiritualidade e a perspectiva política de futuro. Da cosmovisão da época e suas perspectivas pastorais tratamos no n. 279/2011. Da perspectiva política trataremos no próximo número. Nossa intenção agora é tratar da espiritualidade e sua íntima relação com a ação pastoral. Já alertamos para o fato da estreita interligação entre as três fontes. São como três córregos que formam um único riacho. A cosmovisão da época, sendo a geradora de sentido, é decisiva. Definindo-a como “determinado modo de conceber Deus, o mundo e a própria existência individual e coletiva”, já podemos perceber que a espiritualidade não é anterior à cosmovisão, embora a influencie. Ela nasce da cosmovisão da época, inspira-se nela e sustenta-se nela.

Dissemos que cada cosmovisão possui a sua própria “lógica”. No assim chamado mundo ocidental, as três lógicas, das cosmovisões teológica, antropológica e ecológica, foram sucessivas, porém sem divisórias muito rigorosas. Se uma lógica, um modo de pensar, é dominante, isso não significa que sufoca totalmente as outras. Dependendo das diferentes culturas ou dos diferentes segmentos populacionais em uma mesma cultura, as três lógicas estarão mais ou menos presentes. O que devemos perceber melhor agora é que a cada cosmovisão corresponde também uma espiritualidade própria, e esta, por sua vez, traz novas e significativas perspectivas para a ação pastoral.

A lógica de cada cosmovisão constitui, até certo ponto, uma “camisa de força” da qual é difícil escapar. Por isso, as espiritualidades que as acompanham não mudam facilmente. E quando uma espiritualidade já não satisfaz, leva tempo para surgir outra melhor. Hoje, na teologia, existe certo consenso em que as grandes mudanças que arrastam a população em direção a algo novo não provêm de novas doutrinas, por mais corretas ou belas que sejam. Algo deve tocar no interior das pessoas. Apenas uma nova “mística” abre caminhos novos. E isso tem tudo a ver com espiritualidade. Vejamos isso mais de perto.

 

1. ESPIRITUALIDADE NA COSMOVISÃO TEOLÓGICA

 

1.1. Uma espiritualidade baseada na conversão

Os quase 4 mil anos de tradição judaico-cristã, fundamentada numa fé em que Deus se comunica diretamente com o povo, deram ao mundo ocidental cristão profunda consciência de “um só Deus, um só povo eleito, um só Pastor e um só rebanho”. O que essa “teo-lógica” impõe em primeiro lugar é a espiritualidade da conversão. Antes de tudo, uma conversão pessoal: ouvir a Palavra revelada e aderir a ela de corpo e alma. Nessa tradição, o Deus que fala é um Deus que salva. Ele vem para libertar e salvar, porém há mandamentos a cumprir. Converter-se a esse Deus significa acolher os seus mandamentos. Surge uma espécie de acordo amigável: quem os cumpre com fidelidade será salvo; quem não os cumpre será condenado. Especialmente nos profetas, essa concepção de povo eleito é alargada, e Jesus declarará superada a barreira étnica, mas fica de pé a incondicional fidelidade ao Deus da nova aliança. Impõe-se a fidelidade a um “novo mandamento” (Jo 13,34).

 

1.2. Uma espiritualidade de missão

Essa espiritualidade da conversão vem acompanhada de sua irmã gêmea, a espiritualidade da missão. Como os infiéis são, para sempre, excluídos da salvação, o amor cristão exige, antes de tudo, o compromisso de salvá-los. Nossa sensibilidade moderna já nos tornou incapazes de medir com exata medida a urgência e o alcance dessa convicção do dever missionário. Na cosmovisão teológica, trata-se de ordem expressa do próprio Deus, o que facilmente dará origem a diversas formas de fundamentalismo. Podemos observá-las nas duras “disputas ideológicas” entre irmãos e irmãs de uma mesma Igreja ou nas odiosas tentativas de “converter” irmãos e irmãs de outras denominações cristãs. A ordem expressa: “Ide pelo mundo” (Mc 16,15) fez que os primeiros cristãos se lançassem império romano adentro, e esse elã missionário nunca mais parou. Uma vez descoberto um novo mundo, missionários e missionárias serão presença constante nos navios intercontinentais. O padroeiro dos missionários, são Francisco Xavier (†1552), exprimindo a espiritualidade missionária da cosmovisão teológica, ainda pôde anunciar aos aflitos japoneses que seus antepassados não batizados com certeza foram todos condenados ao inferno. E até em passado recente foi com essa espiritualidade missionária que a Igreja Católica e as protestantes buscaram converter os povos indígenas do Brasil.

 

2. ESPIRITUALIDADE NA COSMOVISÃO ANTROPOLÓGICA

 

2.1. Uma espiritualidade de “fidelidade à doutrina”

Com a mudança da cosmovisão teológica para a cosmovisão antropológica a partir do século XVI, também a espiritualidade do mundo cristão passa por mudanças profundas. Podemos dizer que a cosmovisão antropológica fez que a espiritualidade tradicional se dividisse em duas vertentes: uma de “fidelidade à doutrina” e outra de “fidelidade ao Espírito”. Conversão e missão não são dispensadas, mas, na ânsia de preservar a glória da cristandade medieval contra as ameaças do protestantismo e da modernidade, o foco central da espiritualidade se desloca cada vez mais para a “fidelidade à doutrina”. A grande síntese da fé cristã elaborada por santo Tomás de Aquino (†1274) será chamada de “teologia escolástica”, que – exatamente por sintetizar a racionalidade grega com a Tradição e com a teologia dogmática da Igreja até aquele momento – terá um caráter oficial. Roma tentará guiar a Igreja com base nessa doutrina – com inabalável firmeza – praticamente até os nossos dias. No século XIX surgirá uma neoescolástica, que procura adaptar a escolástica tradicional às vertentes filosóficas da modernidade. A encíclica Aeterni Patris (1879), do papa Leão XIII, abriu até algum espaço para isso, mas em geral a relação dessa nova teologia com Roma será extremamente tensa.

Não se pode negar que fidelidade à doutrina faz parte do que existe de mais sagrado na tradição judaico-cristã. Para os profetas e para Jesus, a fidelidade à doutrina significava, antes de tudo, fidelidade à Aliança. Quando um farisaísmo legalista toma conta da nação, Jesus a comparará a uma figueira seca (Mt 21,18-22). Ao derrubar as mesas do Templo e declarar que dele não ficaria pedra sobre pedra, Jesus demonstrou sua indignação não com a doutrina em si, mas com uma endoutrinação farisaica que perdeu o espírito da Aliança (Mt 21,12-13). O cristianismo não deixará de sofrer as mesmas tentações sempre de novo. Desde muito cedo, com visibilidade já nos relatos neotestamentários, a preocupação com a doutrina verdadeira se manifesta no interminável combate às heresias. No auge da cosmovisão teológica, ainda em plena Idade Média, ela dará origem ao que, despudoradamente, foi chamado de “Santa” Inquisição. O papa Gregório IX (†1241) contará com os religiosos, especialmente com os dominicanos, para cuidar dessa tarefa. Com alguma boa vontade podemos dizer que, com as “ameaças” do protestantismo e do modernismo, a insistência na “fidelidade à doutrina” se torna até uma consequência natural das circunstâncias. Dentro da cosmovisão teológica, a defesa da “verdade única” não podia mesmo deixar de ser prioridade absoluta. Mas, quando o amor à verdade se transforma em dogmatismo repetitivo – como vimos no artigo anterior –, a espiritualidade que dele nasce não tem futuro. Na verdade, já nasce morta.

 

2.2. Uma espiritualidade de “fidelidade ao Espírito”

Paralelamente à espiritualidade de fidelidade à doutrina, encontramos na cosmovisão antropológica a volta a uma das espiritualidades originais do cristianismo: a “fidelidade ao Espírito”. “Viver no Espírito” é o que Jesus pede aos seus discípulos (Jo 14,16). Paulo também o pede aos primeiros cristãos de Roma (Rm 8). Deixar o Espírito de lado e confiar mais na fidelidade às doutrinas e às leis é a eterna tentação do Templo. Os historiadores da Igreja costumam apresentar a “conversão” do imperador Constantino (†337), que deu ao cristianismo o apoio público da lei, como um mecanismo poderoso que mais prejudicou do que ajudou a espiritualidade da jovem Igreja. Muitos outros exemplos podem ser encontrados facilmente. Hoje ninguém mais põe em dúvida o equívoco do Concílio de Toulouse (1229), que proibiu aos leigos a leitura da Bíblia.

Os fundadores do protestantismo sacudiram as portas do Vaticano, clamando por fidelidade maior ao Espírito e à palavra de Deus do que aos dogmas, mas o diálogo já estava muito difícil. Com o Concílio de Trento (1545-1563), as portas do Vaticano se fecharam ainda mais. A doutrina católica é transformada num catecismo universal obrigatório, e o povo cristão o decora fielmente. Com a introdução do modelo ultramontano a partir da segunda metade do século XIX, a “romanização” se torna ainda mais rigorosa. Ficou cada vez mais difícil perceber os ventos do Espírito na vida eclesial. Para o povo cristão, o acesso aos sacramentos vai depender agora de um diploma de formação catequética, enquanto, nos seminários e conventos, a espiritualidade de fidelidade à doutrina será considerada a prova mais forte da autenticidade da vocação sacerdotal e religiosa. Ainda em 1964, como sabemos por própria experiência, a admissão à ordenação sacerdotal dependia de uma abjuração pública dos “erros da modernidade”. Ela era feita sempre, ainda que imposta.

A espiritualidade de fidelidade ao Espírito se manifesta com maior força primeiramente nos vigorosos movimentos de piedade popular no final da Idade Média e logo depois no protestantismo em ascensão. A autonomia da razão e o direito à liberdade começam a se impor. Rejeitando o dogmatismo papal, os fundadores protestantes seguem a cartilha da nova cosmovisão antropológica e insistem na capacidade subjetiva de cada cristão e de cada cristã para interpretar a Bíblia e seguir a inspiração do Espírito. Cabe à própria comunidade um controle maior sobre a nomeação e a conduta dos ministros e sobre a moralidade dos membros. A fidelidade ao Espírito torna-se um critério central.

Dentro da Igreja Católica, a vertente espiritual da fidelidade ao Espírito, por mais desvirtuada na prática, nunca esteve ausente. Ela simplesmente não pode ser descartada do evangelho. Após o Concílio Vaticano I (1870), o critério da racionalidade e da liberdade vão se tornar crescentemente mais importantes. A teologia neoescolástica, que polemizava defensivamente com a modernidade, agora, em meados do século XX, dá lugar à “Nouvelle Théologie”, que adota uma postura mais positiva. Nessa teologia, o papel da Igreja não é isolar-se do mundo moderno, mas inserir-se nele para transformá-lo. A palavra-chave é “engajamento”. A espiritualidade que nasce dessa “Nova Teologia” já não é a da “fuga do mundo”, mas a da “encarnação”. Uma encarnação fundamentada no retorno às fontes originais da Sagrada Escritura e da tradição patrística e em diálogo sincero com a racionalidade moderna. Os representantes dessa Nova Teologia – Chardin, Lubac, Chenu, Congar, Schillebeeckx, Rahner, Küng e muitos outros – são até hoje lembrados com muito carinho. O teólogo Ratzinger, atual papa Bento XVI, na sua fase pré-conciliar, também é contado entre eles. São os ventos dessa nova espiritualidade de fidelidade ao Espírito que fazem o papa João XXIII (†1963) sonhar com uma Igreja inteiramente renovada. Logo após o concílio, convocado por ele, o papa Paulo VI (†1978) perceberá, no entanto, que, dentro dos muros do Vaticano, nem todos dão a batalha por vencida. A resistência ao concílio, a “fumaça de satanás”, como ele teve a coragem de dizer, será fortíssima. A história humana é mesmo assim. Cosmovisões, e sua espiritualidade correspondente, mudam, mas não sem grande dificuldade.

 

3. ESPIRITUALIDADE NA COSMOVISÃO ECOLÓGICA

 

3.1. Surge a “espiritualidade da ética humanitária e ecoplanetária”

A roda da história do nosso mundo globalizado se acelera alucinadamente. Enquanto em alguns lugares a cosmovisão teológica ainda se impõe com naturalidade, na maioria dos lugares a cosmovisão antropológica constitui a fundamentação básica do crer e do agir. Mas já não reina de forma absoluta. A nova cosmovisão ecológica anda paralelamente a ela e em muitos lugares já a substituiu. Como conduzir uma ação pastoral num panorama tão diversificado?

Poderíamos chamar a espiritualidade da cosmovisão ecológica de “espiritualidade da ética humanitária e ecoplanetária”. Ela não dispensa a espiritualidade original da conversão e da missão. Dispensa, sim, o controle de uma verdade única como monopólio de determinada Igreja. Também não dispensa a espiritualidade da fidelidade a uma doutrina. Dispensa, sim, a fidelidade a uma doutrina encarcerada em fórmulas fixas tidas como definitivas e imutáveis. Muito menos dispensa a espiritualidade da fidelidade ao Espírito. Viver no Espírito é sua essência, mas a presença do Espírito já não está limitada a uma Igreja, nem sequer a um conjunto de Igrejas. O Espírito se manifesta em todo ser humano que busca Vida para si e seus semelhantes, com inclusão de todas as formas de vida presentes no planeta ou, quem sabe, no universo. Dissemos na introdução ao tema em foco que ninguém deixa de ter seu “sacrário pessoal”, no qual guarda suas convicções mais profundas, tidas como sagradas e inegociáveis, e com base no qual constrói seus valores e seus julgamentos acerca do bem e do mal. A espiritualidade da ética humanitária e ecoplanetária, hoje, conscientemente ou não, faz parte desse sacrário pessoal de todas as pessoas, crentes ou não.

 

3.2. A fundamentação teológica

Em qual teologia se baseia essa nova espiritualidade? Em nenhuma especificamente. Depois do Concílio Vaticano II, já não podemos falar em teologia dominante. A “Nova Teologia” se dispersou e criou cores e tonalidades diferentes de acordo com a cultura ou o ambiente onde ela é vivenciada. A teologia da libertação encarna o grito latino-americano pela superação das estruturas excludentes. Teologias asiáticas trazem o diálogo profético com todas as religiões e culturas. Também o continente africano apresenta seus enfoques próprios, como, mais uma vez, ficou evidenciado, recentemente, no Segundo Sínodo Africano. E quem negaria a importância para o mundo atual das teologias feministas, entre as quais a ecofeminista, lembrando ao mundo ocidental a chaga histórica do patriarcalismo e do modelo econômico social e ambientalmente destruidor e insustentável?

Por sua vez, onde se ancoram todas essas teologias? Sem dúvida, na Escritura, na patrística, na Tradição, nas culturas humanas e no “depósito da fé” acumulado pela Igreja no decorrer da história. Mas essas não são as únicas fontes. Cada vez mais, todas elas se inspiram também na cosmovisão ecológica. Esta põe sob nova luz todo o legado teológico e todas as vertentes espirituais do passado. Vemos isso com muita clareza no “imanentismo”, uma das características mais fortes da teologia e das vertentes espirituais da atualidade. A cosmovisão ecológica não se dá bem com o “transcendentalismo” da cosmovisão teológica e das correntes espirituais do passado, nas quais Deus falava diretamente ao coração das pessoas e, a todo momento, interferia no curso da história e da vida humana. A cosmovisão antropológica também rejeitou o transcendentalismo, mas, por acreditar apenas na razão, deixa Deus inteiramente de lado, sendo muito comum o combate direto a qualquer fé religiosa. Já na cosmovisão ecológica – onde a razão humana não é mais a única fonte de explicação, mas “o todo” da realidade, como vimos na introdução ao nosso tema –, as portas se abrem novamente para as vertentes espirituais da fé, desde que de forma “imanente”.

Numa espiritualidade ecológica, Deus não age de fora para dentro ou “sobre” a natureza, mas sempre dentro dela, de forma imanente. Com isso a fé acaba e a religião se torna sem sentido? Muito pelo contrário. Na cosmovisão ecológica, a fé adquire nova profundidade. Ainda que o consenso da atual teologia nos diga – como vimos no artigo anterior – que “todo nosso contato com o mundo sobrenatural é mediado” e que “não existe um caminho direto entre Deus e o ser humano”, ainda assim podemos, pela fé, “ouvir”, “ver”, “sentir” e “tocar” o nosso Deus, de forma indireta, a qualquer momento e em qualquer lugar. Infelizmente, a tradição secular de uma espiritualidade que apenas valorizava o não mundano ou o sobrenatural nos fez perder essa sensibilidade, mas o ser humano é capaz de perceber a presença indireta de Deus pelos mais diversos “sinais”.

Nos “sinais” encontramos o que o “imanentismo” da atual teologia tem de mais sadio. Quando as ciências naturais nos mostram que o surgimento da vida não é fruto de um evento sobrenatural, mas de um processo natural, ou quando a ciência da cognição humana nos afirma que não há meio de conhecer, objetivamente, o mundo que nos envolve, seja natural ou sobrenatural, à primeira vista parece ficar mais difícil manter a crença num Deus que nos acompanha em cada momento da vida e também no momento da nossa morte. Como em qualquer espiritualidade, devemos nos “exercitar” também na espiritualidade ecológica. Descobriremos as “pegadas” de Deus então até na sombra das árvores! O conhecido biblista brasileiro Carlos Mesters costuma lembrar a “flor da janela”. Para qualquer transeunte, uma flor apenas. Mas não para a moça enamorada que, surpreendida, a encontra ao passar. A flor adquire mil significados… Fantasias, sim, mas ao mesmo tempo tão reais!

 

3.3. A matriz da espiritualidade humana?

A história das religiões – de todas as religiões – demonstra que a religiosidade, a espiritualidade, não é característica exclusiva dos que creem, mas algo inerente ao próprio ser humano. Acompanhando a moda, alguns a chamam de “inteligência espiritual”. A tradição cristã a chama de “dom da fé”, não concedida, na cosmovisão de hoje, apenas a um povo eleito, mas a todos os povos da terra.

Qual é a fonte de onde brota essa religiosidade ou espiritualidade universal? São poucos os que se arriscam a dar resposta a essa pergunta. Nós também não nos sentimos preparados para isso, mas vemos uma tendência. Deixando de lado qualquer intuito dogmático, pensamos que a origem pode estar no “caso de amor” que, como vimos no artigo introdutório (Vida Pastoral, n. 278), existe no mais íntimo da própria matéria e da própria vida. No mais íntimo de cada átomo do universo, como assinalamos, tudo está interligado e tudo coopera com tudo. Em meio a infinitas possibilidades e intermináveis transições, cada átomo acaba adquirindo sempre um total equilíbrio. Em qualquer lugar do universo, todos os átomos da mesma “espécie” são sempre iguais. Vimos também que os átomos se atraem mutuamente e se “casam”, formando moléculas, e que essas moléculas também se atraem mutuamente, interagindo entre si até formarem células. A mesma lógica que domina o átomo domina a célula. As unidades particulares existem, mas apenas o conjunto lhes dá significado ou sentido. Como no átomo, também na célula as unidades são permanentemente substituídas, porém cada unidade que “morre” deixa outra no lugar para que “o todo” da vida seja preservado. Também as células, embora autônomas, de alguma forma percebem que, em conjunto, a vida é mais bem preservada e de qualidade “superior”. Essa mesma sabedoria ecológica se estende cada vez mais até dar origem a espécies vivas as mais diversas. Em nenhum momento essas espécies deixam de depender umas das outras nem de cooperar umas com as outras. A vida de cada unidade é preservada à medida que as unidades permanecem interconectadas entre si e com o meio envolvente, até o momento crucial em que nasce um ser tão interconectado, que se conscientiza a si mesmo, adquirindo a capacidade de destruir a teia que o envolve… ou de levá-la a uma qualidade de vida ainda mais elevada.

A fonte ou a base física da religiosidade humana podem estar nessa consciência fundamental do ser humano, o qual se percebe a si mesmo como um ser relacionado que sustenta sua qualidade de vida apenas em cooperação mútua? Não sabemos, mas a nova cosmovisão ecológica tende a responder afirmativamente. Diante do permanente desafio de sua qualidade de vida, humanitária e planetária, o ser humano percebe, a cada momento, “sinais” de destruição ou construção. Percebe-se pessoalmente envolvido no processo e, diante do fracasso pessoal, sua espiritualidade lhe mostrará a necessidade de conversão, como também a necessidade de retomar a missão que lhe cabe. Percebendo-se envolvido também numa grande teia ou rede humanitária e planetária, todo ser humano descobrirá igualmente incontáveis “sinais” de valores, qualidades e alegrias a serem preservados carinhosamente. Sua espiritualidade lhe dirá que, sim, existem verdades e princípios que merecem ser pregados, uma doutrina à qual se deve ser fiel. Enfim, percebendo-se um nada ao qual a vida oferece tantas alegrias profundas – como também dores indizíveis –, todo ser humano será levado por sua espiritualidade a acreditar em algum Espírito Superior, doador gratuito de tudo isso, ou, se não chegar a tanto, em alguma força espiritual que o leva a comprometer-se com alguma forma de ética humanitária e ecoplanetária. É esse o conteúdo básico do sacrário pessoal de toda a humanidade.

 

4. ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA E PERSPECTIVAS PASTORAIS

 

4.1. Respeito profundo pela plurirreligiosidade

A cosmovisão ecológica traz profundo respeito por qualquer tradição religiosa, a começar pela nossa própria. Não apenas pela religiosidade cristã como a entendemos hoje, mas também por nossas tradições religiosas do passado. Ainda que rejeitemos o “dogmatismo”, nenhuma doutrina ou tradição religiosa do nosso passado, na perspectiva de uma espiritualidade realmente ecológica, tornou-se verdadeiramente ultrapassada. O pensar da Igreja segue a mesma lógica da natureza, onde, a cada momento, tudo faz sentido, mas, ao mesmo tempo, tudo é transitório. Tudo está sempre em movimento e em busca de novo equilíbrio. Cada dogma pronunciado, ou cada tradição religiosa que se firmou em determinado lugar, teve seu sentido muito específico para aquele momento ou lugar. Na busca por uma qualidade de vida melhor, representou uma riqueza imperdível e um legado para o futuro. Ainda que, em outra época ou em outras circunstâncias, a formulação do dogma ou a expressão de determinada espiritualidade necessitem de nova roupagem, algo do seu valor essencial permanece. Não acreditamos que se possam fazer com muita facilidade analogias com o mundo quântico, mas os especialistas afirmam que, na microfísica da matéria, existe uma “memória quântica”. Cada elétron, para chegar ao seu novo equilíbrio, leva em conta a memória de todo o seu passado. Também na bioquímica da vida, o novo que surge tem sempre suas raízes nos caminhos percorridos no passado. Se somos todos e todas do mesmo “pó da terra” e parte da mesma natureza, por que não dar valor ao nosso próprio passado?

Em especial, a cosmovisão ecológica nos leva a respeitar profundamente as religiões que nos são estranhas. Todas as culturas e tradições religiosas exprimem a mesma dinâmica da vida, a busca coletiva por maior qualidade de vida, por “vida em abundância” (Jo 10,10). As perspectivas pastorais mais promissoras hoje talvez provenham da assim chamada “teologia do pluralismo religioso”. Já vimos que a espiritualidade da missão recebeu diversas tonalidades no decorrer da história. Nas décadas anteriores ao Concílio Vaticano II, com base numa maior democratização dos avanços científicos em áreas como filosofia, teologia, antropologia e nas ciências naturais em geral, a concepção de missão muda radicalmente. Nas Igrejas cristãs europeias surge forte movimento ecumênico que busca superar a divisão cristã interna, além de se posicionar de forma mais benevolente diante das religiões não cristãs. Na Lumen Gentium, o concílio distingue entre Igreja Católica e Igreja de Cristo. O tradicional adágio “fora da Igreja (Católica) não há salvação” é substituído por “sem Jesus Cristo não há salvação”.

Após o concílio, a palavra-chave na espiritualidade missionária é implantatio Ecclesiae: a Igreja de Cristo, com sua própria força convincente, deve estar presente no mundo inteiro, mas com grande respeito pela liberdade religiosa. O teólogo católico Karl Rahner (†1984) começa a defender, em oposição ao exclusivismo teológico tradicional, um “inclusivismo teológico”, afirmando que, nas religiões não cristãs, pode ser encontrado um “cristianismo anônimo” que também salva. Mas a nova sensibilidade ecumênica não para nesse ponto. O teólogo suíço Hans Küng polemizará com Rahner, dizendo que sua teologia era demasiadamente cristocêntrica. Jesus não pregou a si mesmo. Pregou o reino de Deus, ao mesmo tempo já presente e a ser construído. O inclusivismo, na opinião de Küng, era uma forma disfarçada de exclusivismo, pois a salvação é entendida ainda como uma propriedade exclusiva do cristianismo. A nova espiritualidade missionária que surge é a do chamado “otimismo soteriológico”, que vê força salvífica em todas as religiões. Essa espiritualidade macroecumênica é filha legítima da cosmovisão ecológica. Na lógica dessa cosmovisão, cada parte contribui para a qualidade de vida, para a inteireza ou a coerência de um todo, e desaparecem de vez as verdades únicas. Cada tradição teológica e espiritual traz a sua indispensável contribuição. O pluralismo religioso de fato passa a ser um pluralismo de direito. A lógica já não é de exclusão, mas de inclusão.

A cúria romana vê essa evolução com grande preocupação. O então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, J. Ratzinger, em Dominus Iesus (2000), no 22, ainda declara que as outras denominações religiosas se encontram, objetivamente, “numa situação gravemente deficitária se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação”. Talvez seja mesmo a função específica da cúria, em meio a tantas novidades teológicas, ser um baluarte de defesa para que não se percam as riquezas tradicionais da espiritualidade cristã. Todas elas, como dissemos, têm seu sentido específico. Mas o ponto é exatamente este: a riqueza está no seu sentido, não na sua formulação histórica. Numa célula viva, qualquer que seja, existe uma organela de “reciclagem”. Nada se perde, tudo se recicla. Com suas posturas dogmáticas, a cúria mais perde do que ganha. O teólogo de Sri Lanka Tyssa Balasuriya acusará a Igreja Católica de um “complexo de superioridade religiosa”, e o teólogo americano Paul Knitter afirmará que a busca por uma libertação humana integral – política, econômica, cultural e ecológica – é tarefa grande demais para ser assumida por uma única nação, cultura ou religião. É preciso, diz ele, manter uma “polaridade dinâmica” em processo permanente de fecundação mútua. Tudo isso é cosmovisão ecológica em estado puro. “Overdoses dogmáticas”, porém, não são privilégio do Vaticano. Também nos nossos seminários e conventos e nos mais diversos centros de espiritualidade cristã é preciso diversificar com urgência as nossas fontes de oração e meditação. Fazendo uso apenas de Bíblia, Ofício Divino e livros teológicos, a overdose tende a se manter, e aquilo que, pejorativamente, às vezes é chamado de “espiritualidade de capela” pode transformar-se em camisa de força. Nós não temos nada contra uma espiritualidade de capela, mas é fundamental ampliá-la com o estudo-meditação das ciências naturais para perceber quais as infinitas possibilidades que a Vida oferece e como superar uma espécie de “pastoral autista” que ainda nos caracteriza.

Ficamos agradavelmente surpreendidos com a proposta de nova lógica para o diálogo inter-religioso, a do “terceiro incluído”, apresentada por Gilbraz de Souza Aragão e Maria Clara Lucchetti Bingemer em “Teologia, transdisciplinaridade e física”, REB 263 e 264/2006. Ainda são raras as tentativas de buscar na física moderna nova fundamentação para o pensar e o agir da Igreja. Na lógica do terceiro incluído, duas verdades aparentemente antagônicas podem gerar, por assim dizer, “nova verdade mais verdadeira”. De fato, na busca coletiva por “vida plena”, por uma “verdade” que possa ser satisfatória para todos/as, nenhum ponto de vista deve ser desprezado. Pessoalmente, ao conceito de terceiro incluído preferimos o conceito de “sobreposição”, mais comum nos autores quânticos. Em seu livro O ser quântico, Danah Zohar nos dá uma descrição de “relacionamento quântico” que caracteriza seres humanos. Na lógica mecânica de Isaac Newton (†1727), as famosas bolas de bilhar jamais se sobrepõem, mas entre seres humanos, guiados pela “eco-lógica” de um cérebro quântico, as sobreposições são constantes. De cada relacionamento social saímos, de alguma forma, renovados. E quanto mais amorosas as relações, mais ricas as sobreposições e mais “resilientes” – como na natureza – em face das adversidades. O teólogo Schillebeeckx (†2009) já dizia que, do ponto de vista religioso, a força coletiva das religiões vale mais do que a força de uma só, sendo isso válido também para o cristianismo. É da sobreposição de todas as verdades parciais, sem limites de espaço e de tempo, que surge a “verdade evolutiva”, na feliz expressão de J. B. Libanio.

Na pastoral do ecumenismo, podemos também aplicar o importante conceito de “simbiose”, do qual damos uma descrição detalhada no artigo introdutório a este tema das novas perspectivas pastorais. A longa convivência com a cosmovisão antropológica, com sua supervalorização da razão humana, deu-nos a sensação de sermos seres “acima” da natureza. Na verdade, somos parte da natureza, e seria muito estranho não termos dentro de nós a mesma dinâmica que a caracteriza. Analogamente ao metabolismo biológico, possuímos uma espécie de “metabolismo espiritual”, afirma o teólogo Felix Wilfred. A pastoral da plurirreligiosidade – na verdade, uma nova espiritualidade – representa a lenta digestão da humanidade em direção à vida plena desejada por Jesus Cristo. Nada impede a humanidade de alcançar o sonho comum de maior qualidade de vida após romper com o passado milenar dos isolamentos dogmáticos. Para o teólogo jesuíta de Sri Lanka Aloysius Pieri, a plurirreligiosidade gera efeitos simbióticos de unicidade quando uma religião enriquece a outra com sua “memória histórica”. É preservando a riqueza da nossa própria tradição, mas mantendo-nos abertos ao fluxo de energias espirituais do meio envolvente, que podemos crescer espiritualmente. Jon Sobrino já dizia que, no diálogo inter-religioso, “mais valem os máximos verdadeiros do que os mínimos comuns”. Cabe à pastoral da Igreja – das Igrejas! – conduzir, amorosamente, esse processo. A pastoral não está sem rumo, como muitos afirmam. Apenas há dificuldade para enxergá-lo com o desaparecimento das verdades únicas. O maior potencial de unicidade, hoje, encontramos no incentivo à espiritualidade da ética humanitária e ecoplanetária. Captando o sentido dessa nova espiritualidade, Leonardo Boff lembra as palavras significativas do mestre iogue do Brasil, Hermógenes, em Canção universal (Rio de Janeiro: Record, 1991): “Pedi a bênção a Krishna, e o Cristo me abençoou. Orei ao Cristo, e foi Buda que me atendeu. Chamei por Buda, e foi Krishna que me respondeu”.

 

4.2. Por uma pastoral que dê acolhida à emoção

A cosmovisão ecológica clama por uma integração entre razão e emoção. Nos últimos 50 anos, houve uma guinada pastoralmente muito significativa. A Nova Teologia da fase pré-conciliar submeteu não apenas a teologia aos critérios da razão e da modernidade, mas também as tradições religiosas do povo cristão. Na Europa, e no mundo ocidental em geral, o cenário comum na espiritualidade católica era: um catecismo muito bem decorado, mas não questionado e sem fundamento bíblico; uma prática muito fiel dos ritos litúrgicos prescritos, mas sem preocupação em entendê-los ou participar deles; uma observância rigorosa dos preceitos morais, especialmente dos sexuais, mas muito em função do medo de um castigo eterno; um desprezo profundo pelos protestantes e por outras denominações religiosas em geral, sem sentir necessidade de saber das razões; participação civil apenas em organizações – e partidos – em que tremulasse orgulhosamente a bandeira católica do Vaticano, ainda que fosse numa simples fanfarra municipal.

Depois da Segunda Guerra Mundial, juntamente com ampla modernização econômica e grande distribuição de riquezas, em poucas décadas a espiritualidade católica mudou com muita rapidez, surgindo novo cenário: um catecismo pouco valorizado e uma esperança generalizada em renovação bíblica; uma liturgia enxuta, em vernáculo, com mais comentário, menos mística, e um clima generalizado de renovação; um “libera geral” na moral, com desprezo pelas ultrapassadas exigências do clero; uma convivência crescentemente amigável – ou indiferente – com os não católicos e a aceitação tranquila de times de futebol “mistos” antes inimagináveis. O Concílio Vaticano II foi realizado em meio a essas transformações já em curso e apenas as acelerou. Se tivéssemos de resumir o que aconteceu nestas poucas décadas numa só palavra, diríamos: a vida eclesial se “racionalizou”. Foi para a lata do lixo tudo que não tivesse fundamento na nova cosmovisão antropológica.

No entanto, com perdão para a simplificação, o ser humano não é um ser racional, mas emocional. Ao priorizar a dimensão racional, a cosmovisão antropológica, por assim dizer, cometeu um “equívoco antropológico”. Se 22 jogadores de futebol, durante uma hora e meia, correm atrás de uma bola e 3 bilhões de pessoas ficam grudadas à televisão, como no caso de um campeonato mundial, não é porque ali acontece algo de profundamente racional. O que prende o mundo ali é pura emoção. Analisemos o dia a dia das pessoas – e de nos próprios – e descobriremos que é sempre assim: não havendo emoção, não interessa. Os neurobiólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, citados no artigo introdutório, chamam o fenômeno biológico da auto-organização de “auto-poiese”. A palavra parcial poiese tem a mesma raiz grega de “poesia”. A vida tem alma de poeta. Não segue códigos racionais, mas, criativamente, vai em busca do que emociona, do que atrai, do que dá prazer. Elocuções racionais, especialmente sobre o longo prazo, não fazem parte da nossa herança biológica. Fôssemos realmente seres racionais, o mundo não poderia estar como está. Nossa atual capacidade de raciocínio e autoconsciência é tão recente, que, caso espremêssemos todo o tempo da evolução em uma única hora, a evolução surgiria apenas nos últimos segundos do último minuto. Não tenhamos dúvida. O que nos domina não é a razão, é a emoção. Faltando emoção à nossa espiritualidade, ela morre. E isso é de vital importância para a nossa ação pastoral. Não foi a teologia da libertação que empolgou o continente, mas sua espiritualidade. Foi a emoção, a “mística” das CEBs, que deu novo rosto à Igreja da América Latina.

Hoje está surgindo novo consenso: a emoção, infelizmente, atingiu apenas pequena parte da comunidade cristã católica. Dos pobres, sim, mas somente aqueles ou aquelas que tiveram o privilégio de “entender e participar da caminhada”. Apenas as Igrejas evangélicas conseguiram envolver realmente as massas populares, e esse é um dado de alta significância pastoral. Diante do fenômeno, nossa Igreja está perigosamente dividida. De um lado, uma Igreja comprometida, nos moldes da teologia da libertação, que, no entanto, não consegue envolver nem a classe média nem as massas populares. Do outro, uma Igreja em ascensão, que reage à modernidade racional terceiro-mundista e, corretamente, busca envolver a população pela emoção, mas, alcançando melhor a classe média, tem medo de apresentar o verdadeiro rosto de Jesus, o Jesus libertador dos pobres e oprimidos. Também essa Igreja apresenta dificuldades para, efetivamente, chegar às massas populares. De alguma forma, essas duas Igrejas, a Igreja da libertação, mais Reino-cêntrica, e a Igreja carismática, mais Espírito-cêntrica, hão de encontrar-se numa postura pastoral mais amadurecida. A lenta imposição da cosmovisão ecológica – provavelmente – abrirá o caminho.

Mais acima, caracterizamos a espiritualidade da cosmovisão ecológica como a espiritualidade da ética humanitária e ecoplanetária. Essa espiritualidade tem a capacidade de emocionar e empolgar a população? Na verdade, ela já é uma emoção global. Talvez não da mesma forma como pode empolgar uma religião mágica que oferece milagres e curas espetaculares em cada esquina. Ainda que o Espírito opere “milagres”, não são daquele feitio, e não podemos, demagogicamente, entrar naquela proposta. Mas todas as religiões têm no seu núcleo central forte preocupação humanitária. Hoje, acrescenta-se a ela a preocupação planetária. Talvez não exista, nos nossos dias, uma emoção mais forte do que essa. Ela brota, de fato, das próprias raízes materiais e biológicas da existência humana. A cosmovisão ecológica nos convida a implementá-la de todas as formas possíveis.

 

4.3. Atenção à classe média secularizada

Resta abordar um ponto pouco presente no atual panorama da reflexão pastoral: a espiritualidade da classe média secularizada. Fazendo do compromisso com os pobres e marginalizados o eixo central e exclusivo da mensagem e da espiritualidade de Jesus, algumas vertentes da teologia da libertação transmitiram a ideia de que “do outro lado dos excluídos” não existe espiritualidade e, muito menos, cristianismo. Décadas de leitura da realidade na ótica da “teoria da dependência”,2 que ressaltou o abismo entre dominadores e dominados, ricos e pobres, fizeram que grande parte da Igreja latino-americana visse na “inserção” no meio dos pobres a única opção espiritual justificável. Com isso, a classe média alta perdeu toda a respeitabilidade e ficou, de fato, “excluída” da atenção da Igreja. A cosmovisão ecológica nos faz olhar para esse desafio pastoral de grande atualidade com outros olhos. Antes de comentá-lo, gostaríamos de retratar um exemplo concreto que consideramos significativo. Como no artigo anterior, apresentaremos os dados em ordem cronológica:

 

            Entre 1974 e 1987, 63 das maiores empresas, entre nacionais e internacionais, depositaram, irregularmente, quase meio milhão de toneladas de produtos químicos tóxicos num terreno rural, na divisa dos municípios paulistas de Santo Antônio de Posse e Holambra, área metropolitana de Campinas. Avançando pelos lençóis freáticos, uma perigosa “pluma tóxica” começou a ameaçar todas as águas da grande Bacia Hidrográfica do rio Piracicaba (4,5 milhões de habitantes).

            Em 1988, é instaurada pelo município de Santo Antônio de Posse uma ação civil pública contra o aterro, e o dono do terreno, em 1995, é condenado a uma indenização de 90 milhões de reais. Não paga e fica por isso mesmo até hoje.

            Em agosto de 2000, a recém-criada ONG ambiental Suprema de Holambra, da qual participamos, assume o caso e apela ao CAO (Centro de Apoio Operacional) do Ministério Público Estadual. O MP Estadual, em março de 2001, instaura o Inquérito Civil 01/01 contra as empresas depositárias. É constituída uma comissão mista entre MP, Cetesb (órgão fiscalizador do Estado) e empresas depositárias. A multinacional suíça CSD Geoklock é contratada, por conta das empresas, para tomar medidas emergenciais e realizar amplo diagnóstico.

            Em junho de 2001, tendo em vista maior pressão popular, a ONG Suprema e a Câmara Municipal de Holambra, onde somos vereador presidente da Comissão de Meio Ambiente, realizam a primeiraaudiência pública, com a presença de ONGs e imprensa locais e regionais. É constituída, com as Câmaras Municipais dos municípios mais atingidos, a Ciaquim (Comissão Intermunicipal de Acompanhamento do Aterro Químico Mantovani).

            Em setembro de 2001, 48 empresas assinam com o MP o 1o TAC (termo de ajustamento de conduta), no qual se comprometem com um rateio de despesas para controle e recuperação da área. As demais empresas não assinantes são condenadas, cada uma, a uma multa diária de 5 mil reais.

            A Ciaquim, em conjunto com a Suprema e as ONGs ambientais da região, mais o apoio de Comissões da Assembleia Legislativa do Estado e do Congresso Nacional, realiza novas audiências públicas nos municípios de Santo Antônio de Posse (julho de 2002), Cosmópolis (agosto de 2003) e Artur Nogueira (fevereiro de 2005), com participação crescente da população e sempre com forte presença de TV e imprensa.

            Em março de 2003, a Cetesb, antes mais favorável às empresas, sob forte pressão da população, não aceita mais as propostas de remediação apresentadas pela CSD Geoklock, que está sob pressão das empresas. Surgem diversos “aditamentos” ao 1o TAC que obrigam as empresas a novas medidas de controle e remediação da área, a altos custos. Enquanto isso, a pluma tóxica, apesar das “barreiras hidráulicas” levantadas, avança. Em setembro de 2004, a CSD Geoklock apresenta novo diagnóstico e nova proposta de remediação. A Cetesb, mais uma vez, rejeita-a parcialmente.

            Em dezembro de 2004, o Coletivo Nacional “Defensoria das Águas”, fruto da Campanha da Fraternidade de 2004, assume, em nome da CNBB, o “caso Mantovani”. Adotando uma estratégia anarquista de extrema radicalidade, passa por cima de toda a organização local e regional, considerada lenta, corrupta, ineficaz e não popular, e apela à intervenção do Ministério Público Federal. A população do entorno do aterro cria até certa expectativa e apoia, mas todos os órgãos envolvidos se sentem desaforados e cortam qualquer diálogo. Em curtíssimo prazo, os MPs Estadual e Federal se entendem perfeitamente.

            Em fevereiro de 2005, a Cetesb emite parecer técnico sobre o “Relatório Caso Mantovani” da Defensoria das Águas, comprovando o blefe e colocando em total descrédito as análises de água e os laudos técnicos apresentados. Pouco depois, em audiência na sede do MP Estadual, o representante da Defensoria apresenta, aos gritos, sua denúncia pública contra a corrupção do MP. Este nem sequer responde e, de lá para cá, não se ouve mais falar da Defensoria. Para a “causa” de um dos casos mais emblemáticos do Estado e da Federação, o prejuízo ocasionado pela Igreja foi grande.

            De 2005 a 2007, o caso Mantovani, de extrema complexidade e gravidade, segue seu curso “normal” com os MPs cedendo novos aditamentos e as empresas empurrando com a barriga. As entidades locais, agora com o apoio da Cetesb, clamam pela retirada dos depósitos efetuados. Em 2008, as empresas assinam com o MP o compromisso oficial de dar início à retirada das primeiras 15 mil toneladas. Uma vitória da população como poucas vezes se concretiza na luta contra o altíssimo poder de fogo de tantas das maiores empresas do país.

 

A experiência acima relatada não teria sido possível sem a iniciativa e o apoio permanente da ONG ambiental Suprema, de atuação suprapartidária e suprarreligiosa. Um pequeno grupo de voluntários, bem formados, todos/as plenamente ocupados/as profissionalmente. Nenhum membro da ONG tem efetiva participação em alguma Igreja. Religião e política não estão em pauta. Reina um clima típico de “secularização”. Participamos da ONG como padre, mantendo, por opção, dedicação exclusiva à atividade política como vereador, mas ajudando ocasionalmente na paróquia como auxiliar. Em nenhum momento vimos qualquer sinal de apoio da paróquia ou da diocese, com exceção de um evento passageiro ligado à Campanha da Fraternidade.

A impressão mais forte que coletamos dos dez anos de participação nessa ONG “secularizada” é que, ali, aconteceu algo de profundamente religioso. Todos os membros da ONG se dedicaram de corpo e alma a uma “causa” que os próprios participantes teriam dificuldade em definir. Além do “caso Mantovani”, aconteceram inúmeras outras atividades de conscientização da população local, plantio permanente de árvores, elaboração de cartilhas escolares com envolvimento dos alunos, ações por reciclagem municipal e por uma legislação municipal completa, seminários e encontros regionais etc. Uma das mais recentes preocupações se referia ao “consumo consciente”, tendo em vista o aquecimento global. Conclusão: uma “emoção” para salvar a Vida do planeta como ainda não vimos em nenhuma das nossas comunidades de Igreja. Trata-se de clara demonstração da nova cosmovisão ecológica, que, uma vez interiorizada, produz uma espiritualidade ecológica que os altos muros das instituições eclesiásticas ainda têm dificuldade em perceber e apreciar.

É um equívoco pensar que “do outro lado” dos pobres não existe espiritualidade. A cosmovisão ecológica não usa o olhar dualista. A “espiritualidade secularizada”, sem dúvida, é outra. O “ponto de vista”, normalmente, não é o do pobre e dificilmente será. Mesmo assim há, frequentemente, grande preocupação com justiça social, desenvolvimento sustentável e superação de estruturas excludentes. Religiosidade é um traço inerente a qualquer ser humano. Cabe a todos nós “re-descobrir” os sinais de sua presença.

 

* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática: na pastoral rural; na pastoral urbana, em São Paulo; e como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo-SP, coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de Teologia de São Paulo). De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra-SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita-SP). Atualmente, atua na pastoral paroquial de Diadema-SP. Além de cartilhas populares, publicou diversos artigos na REB.

 

 

Notas:

 

1. O presente artigo dá continuidade aos artigos A pastoral em novas perspectivas (I) e (II), publicados na Vida Pastoral, n. 278 e 279, respectivamente.

2. Para quem quer conhecer melhor esta importante inflexão no pensamento latino-americano, aconselhamos o livro de Octávio Ianni Imperialismo na América Latina (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974).

 

Pe. Nicolau João Bakker, svd