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Publicado em número 160 - (pp. 17-22)

Evangelização e movimentos populares: Discernimento do discurso religioso

Por Prof. Jung Mo Sung

“Qual é a principal mensagem do cristianismo?”

Com essa pergunta comecei uma palestra, anos atrás, para um grupo de lideranças de diversas comunidades da cidade de São Paulo. Era uma segunda-feira à noite, no centro da cidade, e os que estavam lá eram pessoas que trabalhavam pelas redondezas.

A resposta veio imediatamente: “Amar ao próximo como a ti mesmo”.

Retruquei: “E o que é amar ao próximo?” “Bem, amar ao próximo é querer bem ao outro”, respondeu alguém.

De novo perguntei: “E o que é querer bem?”

“Querer bem é amar o outro”…, e foram assim sucessivamente de pergunta em pergunta, de resposta em resposta, dando voltas em círculos. Levamos mais de trinta minutos para entender concreta­mente o que significa “amar ao próximo”.

Nessa noite consegui ver mais claramente uma preocupação que já me atingia: o nosso discurso de evangelização era uma linguagem muito abstrata, sem conteúdos concretos para orientar a vida cotidiana das pessoas. Isso significava que na prática o discurso cristão não tinha relações com a história humana. Uma coisa era a salvação dos cristãos, na aceitação e repetição dos “dogmas”, como, por exemplo: “Deus existe”, “Jesus é o Senhor”, “Jesus morreu para nos sal­var”…; outra coisa eram os problemas concretos e históricos do povo.

Mas restou outra questão, que percebo melhor hoje: Se o nosso discurso é, muitas vezes, tão desvinculado da vida cotidiana, por que as pessoas continuam indo às igrejas e vão, também, a cursos e palestras? Qual é o sentido dessas doutrinas para as suas vidas concretas? Sem um significado concreto para as suas vidas, as pessoas não retornariam para ouvir esses discursos.

É em torno dessas questões que eu quero refletir neste artigo, especialmente a partir da experiência da relação entre a evangelização e os movimentos populares.

 

1. Qual é o conteúdo da boa-nova?

Em preparação à IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, a discussão do momento é a evangelização e as culturas. Tema também deste e dos dois últimos números desta revista.

As palavras de “moda” do momento são culturas, inculturação, culturas das minorias etc. Para muitos, é a descoberta que vai corrigir os desvios da evangelização acontecida com a “politização” da Igreja; e para outros, o caminho que vai resolver as nossas dificuldades de nos comunicarmos com os pobres e as minorias. Parece que achamos o nó da questão pastoral: como dialogar com as culturas, isto é, a questão “pedagógica” ou o método pastoral.

O perigo é esquecermos que num diálogo nós precisamos ter claro o conteúdo da nossa mensagem. Esse deslocamento das preocupações pode camuflar a nossa dificuldade em elaborar a nossa mensagem de “boa-nova”. Como diz Pe. Comblin, “o grande problema da evangelização não é a inculturação. É o problema de não saber o que dizer, isto é, o que é que Deus diz aos homens de hoje e como é que se manifesta aos homens para que ouçam sua palavra”. “Faz 500 anos que falamos em evangelização e não conseguimos descobrir o que é. Por quê? Porque não sabemos o que é o Evangelho, o que é a palavra que o mundo espera”[1].

Alguém poderia retrucar dizendo que o conteúdo da nossa mensagem já está definido há muito tempo e compõe-se do que nós chamamos de doutrina cristã, ou a doutrina ortodoxa. Mas, como responde o próprio Pe. Comblin, “a ortodoxia em si nunca chamou a ninguém nem convenceu ninguém da verdade do evangelho”[2].

 

2. Boa-nova, para quem?

O conteúdo da boa-nova tem uma característica que o diferencia dasoutras mensagens: é profundamente marcado pelo ouvinte. Numa mensagem comum, é o comunicador que determina o conteúdo da mensagem. O ouvinte assume um papel passivo, pelo menos no primeiro momento. Se gostar da mensagem, ótimo; senão, paciência. Mas no caso do anúncio da boa-nova é diferente. Se o nosso interlocutor não percebe a nossa mensagem como boa-nova, nosso anúncio deixa de ser “evangelho”.

Isso não quer dizer que o cristianismo não tenha uma mensagem própria, e que faça o papel de camaleão, adaptando-se às pessoas e ao meio em que está. Pelo contrário, muitos deram a sua vida, come­çando por Jesus de Nazaré, por causa de sua mensagem. Quer dizer somente que não é possível discutirmos o conteúdo do evangelho sem discutirmos ao mesmo tempo os destinatários dessa boa-nova. E, como nos ensina Jesus de Nazaré, “a boa-nova é anunciada aos pobres” (Mt 11,5c, e outros). A nossa pregação deve ser para todos, sem dúvida, mas são os pobres que devem julgar se o nosso discurso é uma notícia nova e boa.

Infelizmente, muitas vezes nós anunciamos notícias que são boas para nós, Igreja e/ou grupos dominantes da sociedade ou de relações sociais concretas, e não para os pobres. Sem dúvida, elas também não são notícias novas, provavelmente são velhas travestidas com roupagem nova.

Alguém pode achar que estou sendo um pouco exagerado nas minhas posições ao fazer esse tipo de afirmação. Não quero analisar aqui as intenções dos missionários, padres ou agentes de pastoral do passado ou presente. Precisamos analisar da forma mais objetiva possível as consequências que, muitas vezes, independem e vão em direção contrária às intenções. Afinal, é pelo fruto que se conhece a árvore, e não pelas intenções. Também porque as nossas intenções não são tão claras nem para nós mesmos. A psicologia tem mostrado como por trás das nossas intenções conscientes podem estar escondidas muitas coisas inconscientes.

 

3. Boa-nova para os pobres?

No trabalho de formação e assessoria com as lideranças dos movimentos populares, maioria de origem ou participantes das CEBs, notamos uma consciência religiosa cristã muitas vezes incoerente e conflitante na sua lógica interna. Quero levantar algumas questões a partir de uma experiência concreta.

Num curso para lideranças de movimentos e comunidades populares, uma senhora relatou as suas experiências de Deus nos momentos difíceis de sua vida. Ela teve a infelicidade de perder o seu marido e o seu filho num acidente. Nesse momento de dor e desespero, o consolo que recebeu foi: “Deus sabe o que faz”. Na esperança de que “Deus sabe o que faz”, ela foi aos poucos reconstruindo a sua vida, junto a sua única filha que restara e o seu genro. Tempos depois, o seu genro perdeu o emprego. Ela buscou a força em Deus e disse à sua filha: “Deus vai nos ajudar a superarmos essa dificuldade”, e as duas assumiram a responsabilidade de sustentar a casa, durante o desemprego do genro.

Aqui temos duas imagens de Deus: um “Deus que sabe o que faz” e um outro “Deus que nos ajuda”. Essas duas imagens presentes no meio do povo são, sem dúvida, resultantes da evangelização da Igreja e do processo de assimilação e compreensão feita pelo povo. Analisemos essas duas imagens.

 

3.1. “Deus sabe o que faz”

Quem não se lembra do antigo catecismo de primeira comunhão que começava com a famosa pergunta: “Quem é Deus? Deus é um ser perfeitíssimo, onipotente, onisciente, criador do céu e da terra”. Essa é, sem dúvida, a principal imagem que se passou a respeito de Deus por muito tempo. Deus é um ser onipotente. Por isso, tudo o que acontece nas nossas vidas tem uma marca de Deus. Nada acontece sem a sua permissão ou sua vontade explícita. Diante do desespero e da dor da perda dos entes muito queridos é uma explicação que nos consola. Saber que “Deus sabe o que faz” significa que essas mortes devem ter algum sentido que escapa aos humanos, mas não a Deus. Saber que Deus está por trás dessas mortes significa que Deus pode estar cuidando deles num mundo melhor, e, por isso, poderemos revê-los um dia.

É por essa força de consolação que muitos padres, freiras e leigos “catequistas” ensinaram que “Deus sabe o que faz”. O que nem sempre tiveram clareza foi do “outro lado da moeda”. Se “Deus sabe o que faz”, foi Deus quem os matou. A morte teve a origem na vontade e na sabedoria de Deus. Deus é apresentado aqui como alguém que deseja e gera a morte. Mais ainda, as mortes lentas, os sofrimentos dos pobres que antecipam as suas mortes aos poucos devem ser também frutos da “sabedoria” e da “ação” de Deus. Afinal, ele é o todo-poderoso e “sabe o que faz”.

Essa imagem de Deus, que aparentemente consola o povo no sofrimento, na verdade é uma velha e notícia. Os pobres sempre aprenderam que eles são culpados da pobreza (“o pobre é pobre porque é vagabundo”), e que Deus não se preocupa com esse sofrimento material porque a salvação é um problema somente “espiritual”. Sendo assim, Deus não pretende tirá-los dessa situação, pelo menos nesta vida. Esse ensinamento de que “Deus sabe o que faz” é um reforço desse velho ensinamento presente em toda a história humana, em quase todos os lugares do mundo.

Essa “boa-nova” reforça a dominação à que os pobres estão submetidos, na medida em que coloca a morte e o sofrimento como frutos da sabedoria e da ação de Deus. Portanto, como uma ação salvífica. É pelo sofrimento e pela morte que Deus está salvando os pobres. As mortes prematuras e os sofrimentos humanamente evitáveis não são considerados responsabilidade das pessoas, mas de Deus. O que significa que nós, seres humanos, não podemos fazer nada. Só nos resta pedir para os seres sobrenaturais (santos, anjos, espíritos, Deus…) que tenham “pena de nós”.

 

3.2. “Deus vai nos ajudar”

Felizmente, essa “religião do destino”, sustentado por um Deus que “sabe o que faz”, não é onipotente como pretende ser o seu Deus. Há espaço de resistência no povo para buscar outras imagens mais verdadeiras de Deus. No caso específico do testemunho da senhora do curso, a resistência inconsciente se deu com a imagem de “Deus que vai nos ajudar”. Inconsciente porque nem ela sabia conscientemente que estava rejeitando a primeira imagem de Deus.

Quando alguém diz que “Deus vai ajudar” está dizendo que a situação não é da vontade de Deus. Que nem tudo que acontece na vida é fruto da ação e da sabedoria de Deus. É uma afirmação de fé em Deus que não quer e nem aceita passivamente o sofrimento das pessoas. É um Deus que não é “todo-poderoso” e, por isso, deixa espaço de ação para as pessoas, não as considerando impotentes (outro polo da relação com Deus onipotente).

Se Deus não é “o todo-poderoso” na relação com a humanidade, isso significa que ele não é perfeito? Não! O conceito bíblico de perfeição é diferente do conceito da filosofia grega. Para os gregos, de onde vem essa noção de Deus onipotente, o fundamento da perfeição é o poder; o poder que não respeita a diferença nem a liberdade do outro. Enquanto que na Bíblia a perfeição se fundamenta na capacidade de amar e de respeitar a liberdade do outro. Por isso é que na Bíblia “Deus é amor” e são Paulo nos diz que “onde está o Espírito está a liberdade”.

A fé em “Deus que nos ajuda” é uma profissão de fé anti-idolátrica[3] contra um deus, feito pelos homens, que apresenta a morte e o sofrimento como caminho de salvação, como vontade divina.

Essa experiência de Deus que quer Vida e por isso entra na história para ajudar a humanidade a construir sociedades e relações mais humanas e justas é o fundamento da boa-nova. A novidade consiste justamente em dizer que o sofrimento dos pobres não é o pagamento exigido por Deus para a remissão dos pecados. Nosso Deus é um Deus que tem um coração maior do que a mais generosa das mães, por isso pede “misericórdia e não o sacrifício” (Os 6,6; Mt 9,13). Se Deus é assim, o sofrimento dos pobres e dos fracos não procede da sabedoria e da ação de Deus e ele não está do lado dos que impõem sofrimento e morte aos mais fracos. Essa é uma grande novidade na história das religiões e na vida dos pobres. Uma grande e boa novidade para os pobres e para os que se convertem à causa deles.

 

4. O Reino de Deus e a Igreja

A tomada de consciência de que o Deus de Jesus Cristo não compactua com o sistema de morte levou muitos agentes de pastoral a assumirem a luta pela vida dos pobres. Isso significou tomar mais cuidado, ter um espírito mais crítico, com discursos religiosos aparentemente abstratos, mas que na realidade significam a legitimação da dominação; e elaborar novas formas de anunciar o evangelho e, é óbvio, novos conteúdos concretos.

Começou-se a desconfiar de toda linguagem que separava a fé dos problemas concretos da vida. Aos poucos, muitos de nós fomos percebendo que esse tipo de discurso tinha um papel importante de proporcionar uma consciência tranquila diante dos sofrimentos alheios. Bastava classificar os problemas históricos e sociais como sendo não importantes em relação à salvação. Com isso, tanto os cristãos como a parcela integrada na sociedade poderiam continuar sendo in­diferentes aos problemas sociais tão gritantes dos marginalizados. Propôs-se, então, uma fé articulada com a política, a famosa relação “fé e política”.

A partir de estudos bíblicos, em particular dos profetas e dos evangelhos, e das pregações dos agentes de pastoral, muitos cristãos assumiram as lutas populares em nome da fé cristã. Não é segredo para ninguém que muitos dos movimentos populares estão em estreita ligação com as CEBs ou são compostos, em grande parte, pelos cristãos provenientes das CEBs.

Nessas lutas populares, das comunidades e movimentos populares, foram aparecendo novos problemas. Quero analisar aqui dois deles: a difícil relação “fé e política”; e a limitação de tempo para participar de dois lugares ao mesmo tempo.

 

4.1. “Fé e política” e a linguagem religiosa

Estamos vivendo um momento difícil na rela­ção “fé e política”. As reclamações sobre este tema não são mais exclusivas da classe média ou de comunidades conservadoras. Mesmo nas comunidades “progressistas” existem muitos pobres engajados nas comunidades e nas lutas populares reclamando que “padre só fala de política”. Essas reclamações estão vindo também daqueles que teoricamente são beneficiados por esse discurso: os pobres “politicamente conscientizados”. Além de que os cursos de “fé e política” andam com “ibope” baixo em quase todas as partes.

Para entendermos esse problema precisamos resgatar a origem e o processo em que se deu esse trabalho de fé e política. Esse grande movimento que se espalhou pelas comunidades teve como um dos objetivos superar o dualismo que separava a fé/salvação dos problemas históricos e sociais. Geralmente, os ditos “conservadores” afirmavam que a fé não tinha nada a ver com a política. E os ditos “progressistas” contrapunham com cursos e discursos de “fé e política”. Mas, na prática, quase todos os cursos de “fé e política” se resumiam em cursos de política promovidos pela comunidade. A palavra “fé” servia para chamar os cristãos da comunidade ou no máximo para dizer que Deus quer que lutemos pela vida dos pobres. Depois disso, o curso se resumia em análises da sociedade capitalista e outros assuntos políticos. Faltava uma verdadeira articulação da fé com as questões políticas.

As causas para isso são muitas. Levantemos algumas. Em primeiro lugar, as lideranças que promoviam esses cursos geralmente tinham tido uma formação prévia na área da Bíblia, até chegarem à conclusão da necessidade de “fé e política”. A partir dessa conclusão, muitos cometiam o erro de pressupor que o povo da comunidade já tinha esse nível de conhecimento e promoviam cursos e palestras para atender as necessidades de conhecimento político dessas próprias lideranças e não do povo convidado.

Em segundo lugar, os palestristas convidados eram geralmente políticos ou professores da área, que nem sempre eram de origem ou participantes das comunidades. Por isso eles não conseguiam fazer a articulação, e isso nem era pedido a eles.

Com a dificuldade teórica de articular “fé e política”, muitos padres acabavam também só falando das questões políticas e sociais nos seus sermões. Com isso acabavam frustrando o povo que ia à igreja para ouvir sobre Deus.

Na prática, esses problemas acabaram produzindo o efeito contrário ao pretendido. Ao invés de afirmar a relação intrínseca que existe entre a fé em Deus e as lutas sociais, acabavam afirmando que a fé realmente não tem relações com a política. Pois, mesmo os que diziam que existe essa relação não a faziam; dando, assim, razão aos ditos “conservadores” que se atinham ao discurso religioso, sem aparente relação com a política.

Como vimos no ponto três, mesmo um discurso que na sua aparência não tem nada a ver com os problemas sociais tem profundas implicações políticas. O que não isenta de erros a posição dos que em nome de “fé e política” abandonam o discurso religioso para se restringirem à linguagem política. A questão central é o problema da linguagem e do conteúdo da mensagem. O conteúdo da boa-nova é que Deus está do lado dos pobres para defender o seu direito à Vida. A linguagem utilizada para anunciar isso numa igreja deve ser religiosa, como num movimento popular ou num partido deve ser adaptada ao meio. Ninguém vai a um bar para rezar, nem a um partido para ler a Bíblia.

O desafio para as nossas comunidades é a criação de uma nova linguagem religiosa que seja capaz de anunciar e celebrar esse Deus que está no meio da luta pela vida dos pobres. Se não conseguirmos vencer esse desafio, a nossa boa intenção de ajudá-los pode se transformar em mais um fardo na vida dos pobres porque lhes frustramos o desejo de expressar a sua fé no Deus da Vida, no “Deus que vai nos ajudar”, na sua linguagem religiosa. O povo expressa a sua esperança no Deus da vida dos pobres na linguagem mais apropriada: a linguagem religiosa.

 

4.2. O Reino de Deus ou a Igreja?

Na luta pela vida dos pobres, como a concretização da luta para que “todos tenham a vida” (cf. Jo 10,10), houve uma mudança significativa no nosso discurso de evangelização. O objeto da pregação deixou de ser a Igreja para ser o Reino de Deus. Sem dúvida, existem ainda os que identificam a Igreja com o Reino de Deus, mas é um erro teológico primário que a maioria não comete. Pelo menos em termos de discurso consciente.

Na prática pastoral, entretanto, acontecem fatos que nos fazem pensar sobre a relação entre o Reino de Deus e a Igreja. Analisemos isso a partir de um exemplo concreto.

Todos que participam em comunidades de base e nos movimentos populares sabem como esses dois campos de atuação são exigentes, principalmente com as suas lideranças. Os que participam desses lugares como “voluntários”, isto é, não vivem profissionalmente dessas atuações, precisam utilizar os seus tempos de descanso e lazer. Isso significa na prática a administração de um tempo muito escasso.

Cristãos “convertidos” à causa dos pobres vão à luta nos movimentos ou outras organizações populares para reivindicar os direitos dos pobres. Se eles se tornam lideranças, o seu tempo será mais exigido nesse movimento. O que significa menos tempo para a atuação na comunidade eclesial. Aqui está um problema muito comum. O que fazer?

Acho que é diante de situações concretas como essa que se responde de verdade ao que é a Igreja e o Reino de Deus para nós. Se um padre ou um agente de pastoral responsável pela comunidade são incapazes de se alegrar com o fortalecimento dos movimentos e organizações populares que lutam pela vida dos pobres — por isso, semeiam o Reino de Deus no mundo —, mesmo que isso signifique a “perda” de alguns membros da comunidade em “serviços internos”, não entenderam que o “Espírito sopra onde quer” e que o Reino de Deus é maior e mais importante que a Igreja. Continuam achando que não existe Reino de Deus fora da Igreja e que não é possível encontrar Deus fora dos domínios do padre/comunidade.

A boa-nova para os pobres não significa dizer que Deus está na Igreja ou que “fora da Igreja não há salvação”. Não quero dizer com isso que a Igreja não seja importante ou que não se encontre com Deus na Igreja. Mas não podemos confundir Igreja (povo de Deus) com Igreja (instituição visível), nem Reino de Deus com Igreja (instrumento/sacramento do Reino de Deus). A boa-nova para os pobres consiste em dizer que Deus está do lado dos pobres lutando, com eles e não por eles, por uma sociedade fraterna e justa que seja sinal do Reino definitivo. A Igreja deve ser sinal desse Reino que é maior que ela e lugar de celebração da fé nesse Deus que caminha com os pobres e com os que assumiram a causa da Vida.

 

Conclusão

Apesar de dificuldades na pastoral e na comunicação dos agentes com o povo, muitas pessoas continuam participando, a seu modo, da vida da Igreja e das comunidades. Isso significa que para elas os discursos religiosos ainda têm um significado nas suas vidas. “Jesus Cristo é o Senhor!” pode significar para um a esperança de realizar um sonho, para outro a certeza de que faz parte de um grupo de “eleitos do Senhor”. Para uns o evangelho é a fonte de esperança, para outros é a “certeza” de que “não são como os outros”, repetindo assim no campo religioso as marginalizações da nossa sociedade. Precisamos saber que não bastam as nossas boas intenções. O nosso discurso religioso precisa passar por uma crítica para que não perca a sua dimensão de boa novidade para os pobres nas suas vidas concretas.

O que percebemos, pela experiência, é que as pessoas que fizeram a sua opção fundamental pela Vida, não somente a sua, mas também a dos mais pobres, são movidas pelo Espírito de Deus e sabem discernir, do seu jeito, o que é a boa-nova de Deus e a má-velha-notícia dos ídolos (deuses falsos) que infestam o mundo e as nossas igrejas.

O Espírito de Deus é maior que as nossas ações e intenções, o Reino de Deus transcende a Igreja e a fé do povo no Deus da Vida é mais sábia do que as nossas teologias. Mas essa realidade não nos isenta de buscarmos meios mais eficazes de uma verdadeira evangelização que ajude as organizações populares a caminharem o mais rapidamente possível em direção à uma nova sociedade que revele com mais transparência a presença do Deus da Vida no meio dos homens.



[1] José Comblin, A força da Palavra, Petrópolis, Vozes, 1986, pp. 18 e 10.

[2] Idem, p. 10.

[3] A respeito do problema da idolatria, existem diversos artigos e livros. Por exemplo: Pablo Richard, A força espiritual da Igreja dos pobres, Petrópolis, Vozes, 1989; Hugo Assmann e F. Hinkelammert, A idolatria do mercado, Petrópolis, Vozes, 1989; Jung Mo Sung, A idolatria do ca­pital e a morte dos pobres, São Paulo, Ed. Paulinas, 2ªed., 1991.

Prof. Jung Mo Sung