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Publicado em maio-junho de 2016 - ano 57 - número 309

Nossa pastoral diante do novo “ícone pop” da economia, Thomas Piketty

Por Nicolau João Bakker, svd

A Igreja, em princípio, não pode acolher nenhum tipo de capitalismo, por mais decente que seja. Como também não pode dar-se por satisfeita com nenhuma das experiências socialistas postas em prática até hoje. A proposta de Jesus é muito mais radical do que a proposta de qualquer esquerda política imaginável. Por mais radical que uma sociedade seja, ela não calará a prece do povo: Que venha a nós o “vosso” Reino!

Neste artigo, gostaria de apresentar a todos os leitores da Vida Pastoral o surpreendente livro do economista francês Thomas Piketty, O capital no século XXI. O livro foi editado no Brasil pela Editora Intrínseca (Rio de Janeiro, 2014), tornando-se imediatamente um best-seller nas principais livrarias. Assim como Karl Marx (†1883), Piketty, novo “ícone pop” da economia, conforme The Economist, faz uma análise profunda do capitalismo, abrangendo, porém, um período histórico muito mais amplo. Com diversas equipes altamente especializadas, pesquisou durante 15 anos as fontes mundiais mais confiáveis, trazendo à luz, por meio de uma impressionante série de gráficos e tabelas, autêntica “tomografia computadorizada” do sistema capitalista.

Considero o livro de grande relevância pastoral porque todos nós, ministros ordenados, religiosos/as, ou leigos/as atuantes na Igreja, estamos diante de uma sociedade cada vez mais complexa, com a incumbência de captar o que Deus tem a nos dizer mediante uma leitura atenta aos sinais do nosso tempo, como nos lembrou Gaudium et Spes números 4 e 11. E é bom lembrar que o “eixo” que faz girar todas as engrenagens da sociedade é a economia. Quem não souber “ler” o sistema econômico que nos aprisiona dificilmente será uma “luz que brilha diante dos homens” (Mt 5,16). Quero apresentar neste artigo apenas uma espécie de “roteiro de leitura” para o livro de Piketty. Que ele fale por si mesmo. Como Gaudium et Spes nos pede que leiamos os sinais do tempo “à luz do Evangelho”, acrescentarei algumas observações neste sentido após a “leitura” do texto.

 I – ROTEIRO DE LEITURA

 Questão 1: Da “renda nacional”, qual a parte que cabe ao trabalhador?

Piketty diz: Por definição, a renda nacional mede o conjunto das rendas de que dispõem os residentes de um país ao longo de um ano (p. 49) […] Renda nacional = renda do capital + renda do trabalho (p. 51) [] Em termos práticos, a renda nacional de uns 30.000 euros por habitante em vigor nos países ricos se decompunha em aproximadamente 21.000 euros de renda do trabalho (70%) e 9.000 euros de renda do capital (30%) (p. 58) […] O caso mais importante […] é sem dúvida o da alta da participação do capital durante as primeiras fases da Revolução Industrial (1800-1860). No Reino Unido, cujos dados são mais completos, os trabalhos históricos disponíveis […] sugerem que a participação do capital se expandiu em dez pontos percentuais da renda nacional, passando de cerca de 35-40% ao fim do séc. XVIII e no início do séc. XIX para 45-50% em meados do séc. XIX, momento em que o Manifesto Comunista era redigido (p. 220).

O conceito de “renda nacional” é básico em análise de economia, pois permite indicar qual a parte que cabe ao trabalhador e qual ao capital. Os gráficos de Piketty mostram a famosa “curva em U”: o capital era forte no século XIX, decresceu na primeira metade do século XX (entre outros motivos, em razão das guerras, da desvalorização imobiliária e financeira, além de altos impostos sobre a renda) e voltou a crescer com força na segunda metade do século XX (especialmente com a onda neoliberal).

 Questão 2: Da “renda nacional”, qual a parte que cabe ao capital?

 Piketty diz: A relação capital/renda (nos países desenvolvidos) seguiu trajetórias muito semelhantes, apresentando uma relativa estabilidade nos séculos XVIII e XIX (o capital nacional valia de seis a sete anos de renda nacional em 1910), depois passando por um enorme choque no séc. XX (não valendo mais do que dois a três anos de renda nacional em 1950), para finalmente retomar, no início do séc. XXI, aos níveis próximos dos observados, às vésperas das guerras do séc. XX (p. 118) [] O capital mudou de natureza – ele era a terra e se tornou imobiliário, industrial e financeiro –, mas não perdeu nada de sua importância (p. 121) [] O décimo superior da distribuição da riqueza, mais ainda do que o décimo superior da distribuição de salários, é por si só extremamente desigual. Quando esse décimo superior possui 60% do patrimônio total (em 1910 era 90%!) – como é o caso de vários países europeus hoje em dia –, o centésimo superior possui cerca de 25% e os 9% seguintes possui cerca de 35% (p. 254).

Uma tese central no livro de Piketty é que a tendência atual é a de fortalecimento do capital. Se a taxa média anual de poupança de um país (pelos mais diferentes motivos) é de, p. ex., 12% da renda nacional, e a taxa de crescimento da renda nacional por habitante for de 2%, a longo prazo, “o país terá acumulado o equivalente a seis anos de renda nacional em capital” […] “Um país que poupe muito e cresça lentamente acumula, a longo prazo, um enorme estoque de capital” […] “É a queda do crescimento – sobretudo da expansão demográfica – que conduz ao retorno do capital” (p. 165) […] “Resumindo: o crescimento moderno, fundado no crescimento da produtividade e na difusão do conhecimento, permitiu evitar o apocalipse marxista e equilibrar o processo de acumulação do capital. Mas ele não modificou as estruturas profundas do capital – ou, ao menos, não reduziu de verdade sua importância macroeconômica em relação ao trabalho” (p. 229).

 Questão 3: O “mercado livre” é anjo ou demônio?

Piketty diz: Essa desigualdade fundamental, que denotarei como r > g, em que r é a taxa de remuneração do capital (isto é, o que rende, em média, o capital durante um ano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, aluguéis e outras rendas do capital, em porcentagem de seu valor) e g representa a taxa de crescimento (isto é, o crescimento anual da renda e da produção), desempenhará um papel essencial nesse livro. De certa maneira, ela resume a lógica de minhas conclusões. […] É importante ressaltar que a desigualdade fundamental, r > g, a principal força de divergência no meu estudo, não tem relação alguma com qualquer imperfeição do mercado… É possível imaginar que instituições e políticas públicas possam contrabalançar os efeitos dessa lógica implacável: por exemplo, a adoção de um imposto progressivo sobre o capital pode atuar sobre a desigualdade r > g, alinhando a remuneração do capital e o crescimento econômico (p. 33-34).

Para Piketty, o mercado livre está mais para anjo. A falta de políticas públicas adequadas, contudo, transformam-no em demônio.

 Questão 4: No sistema capitalista, os ricos ficam cada vez mais ricos?

Piketty diz: A principal força desestabilizadora está relacionada ao fato de que a taxa de rendimento privado do capital r pode ser forte e continuamente mais elevada do que a taxa de crescimento da renda e da produção g. A desigualdade r > g faz com que os patrimônios originados no passado se recapitalizem mais rápido do que a progressão da produção e dos salários. Essa desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho (p. 555). [] O mais assombroso é que, em todas essas sociedades (Europa), a metade mais pobre da população não possui quase nada: os 50% mais pobres em patrimônio detêm sempre menos de 10% da riqueza nacional, e geralmente menos de 5% (p. 252).

Para Piketty, de fato, a “contradição central do capitalismo r > g” faz com que os ricos tendam a ficar cada vez mais ricos, e, pelas numerosas tabelas e gráficos que apresenta, é esta, claramente, a tendência da atual fase neoliberal do capitalismo.

 Questão 5: Qual a marca principal do capitalismo atual?

Piketty diz: Desde os anos 1970-1980, assiste-se a uma explosão sem precedentes da desigualdade da renda nos Estados Unidos. A parcela do décimo superior passou de 30-35% da renda nacional nos anos 1970 para cerca de 40-45% nos anos 2000-2010, uma alta de quase quinze pontos percentuais da renda nacional americana (p. 287). [] Dos 15 pontos percentuais de renda nacional suplementar que foram absorvidos pelo décimo superior, em torno de 11 pontos – quase três quartos – foram arrebanhados pelo 1% (isto é, o grupo das rendas atuais superiores a 352.000 dólares em 2010), e a metade disso foi para o 0,1% (o grupo das rendas anuais acima de 1,5 milhão de dólares (p. 289). [] A nova desigualdade americana tem relação estreita com o advento de uma sociedade de “superexecutivos” (p. 295) [] A parcela do milésimo superior (0,1%) passou de 2% a quase 10% da renda nacional (p. 310). […] As ordens de grandeza obtidas para a parcela do centésimo superior na renda nacional nas nações pobres ou emergentes são, a princípio, extremamente próximas das observadas nos países ricos (p. 318) […] A arrecadação fiscal hoje se tornou ou está a ponto de se tornar regressiva no topo da hierarquia das rendas na maioria dos países (p. 483).

Piketty atribui a decolagem dos “superexecutivos” ao surgimento das macroempresas modernas e ao “extremismo meritocrático”, sem nenhuma ligação lógica com aumento de produção, além da “enorme queda da taxa do imposto sobre a renda marginal superior nos países anglo-saxões a partir dos anos 1970-1980” (p. 327).

 Questão 6: Podemos continuar falando “do” capitalismo?

 Piketty diz: Para um mesmo salário médio de 2.000 euros por mês, a distribuição escandinava, mais igualitária, corresponde a 4.000 euros por mês para os 10% mais bem remunerados (e 10.000 para o 1% com os maiores salários), 2.250 euros para os 40% do meio e 1.400 euros para os 50% com os menores salários. Enquanto isso, a distribuição americana, mais desigual, tem uma hierarquia claramente mais acentuada: 7.000 euros para os 10% do topo (e 24.000 euros para o 1%), 2.000 euros para os 40% do meio e apenas 1.000 euros por mês para os 50% da base da distribuição (p. 251) […]. A história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos (p. 27) […]. Por volta de 1900-1910 […] não havia classe média, uma vez que os 40% do meio eram quase tão pobres quanto os 50% mais pobres (o 1% mais abastado possuía sozinho mais de 50% do total da riqueza) (p. 255).

 Dependendo do foco, faz sentido falar “do” capitalismo, mas, em geral, é preciso deixar claro de qual capitalismo estamos falando. Dependendo do tempo e do lugar, as realidades são totalmente diferentes. Não faz sentido levantar as placas “condenado” ou “aprovado” sem entrar nos detalhes. As generalizações inúteis são muito comuns, também na Igreja.

Questão 7: Fazendo sua análise “do Capital”, Marx errou ou acertou?

Piketty diz: Marx rejeitou a hipótese de que o progresso tecnológico pudesse ser duradouro e de que a produtividade fosse capaz de crescer de modo contínuo – duas forças que poderiam, em alguma medida, se contrapor ao processo de acumulação e concentração do capital privado. Sem dúvida, faltavam-lhe dados estatísticos para refinar suas posições… O princípio de acumulação infinita proposto por ele contém uma noção fundamental, tão válida para a análise do séc. XXI como foi para a do séc. XIX (p. 17-18).

Assim como para o capitalismo, também não valem as placas de “aprovado” ou “desaprovado” para o marxismo. Tudo depende do foco em discussão. Marx foi o ícone do passado, Piketty é o ícone do presente.

 Questão 8: Fazendo sua análise “do Capital”, Piketty traz algo novo?

Piketty diz: A lição geral de minha pesquisa é que a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergência vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam… A melhor solução é o imposto progressivo anual sobre o capital. Com ele, é possível evitar a espiral desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças de concorrência e os incentivos para que novas acumulações primitivas se produzam sem cessar (p. 555-556)… O imposto progressivo exprime, de certa forma, um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual (p. 492).

A proposta de um imposto progressivo sobre o capital, como complemento aos impostos sobre a renda e a herança, não elimina o sistema capitalista, mas inova no sentido de impedir a “acumulação infinita” que faz parte de seu DNA.

 Questão 9: No sistema capitalista, os salários são sempre achatados?

Piketty diz: Na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão, a renda média passou de pouco mais de 100 euros por mês e por habitante em 1700 para mais de 2.500 euros por mês em 2012, multiplicando-se em mais de vinte vezes. Na realidade, a expansão da produtividade, ou seja, da produção por hora trabalhada, foi ainda mais elevada… O poder de compra médio em vigor no Velho Continente quase não mudou entre 1700 e 1820, depois mais do que dobrou entre 1820 e 1913 e, por fim, aumentou mais de seis vezes entre 1913 e 2012 (p. 90).

Cuidado com este “médio” do poder de compra. As médias escondem grandes disparidades. Todos ganharam, mas alguns bem mais que os outros.

 Questão 10: Com a queda do muro de Berlim, o capitalismo venceu?

Piketty diz: Elaborada em 1955 (a “teoria de Simon Kuznets”), trata-se de uma teoria sobre os anos mágicos do período pós-guerra (quando as economias desenvolvidas cresciam a taxas de até 5% anuais), que na França ficaram conhecidos como os “Trinta Gloriosos”, o intervalo compreendido entre 1945 e 1975. Para Kuznets, bastava ter paciência e esperar que o crescimento começasse a beneficiar a todos. A filosofia da época podia ser resumida em apenas uma frase: “Growth is a rising tide that lifts all the boats” (“O crescimento é como a maré alta que levanta todos os barcos”). Otimismo semelhante foi proposto por Robert Solow em 1956 (com a teoria do “crescimento equilibrado” para todos os grupos sociais) (p. 18).

A euforia capitalista dos “Trinta Gloriosos”, de fato, chegou ao auge (apesar da estagflação após 1975), com a queda do muro de Berlim (1989). A obra de Piketty, no entanto, traz um panorama histórico muito mais amplo, com gráficos e tabelas quase incontestáveis. Fato real é que surgiu, no pós-guerra da Europa, o que Piketty chama de “a classe média patrimonial”: boa parte da riqueza dos 10% mais ricos acabou indo para os 40% do meio. O que é importante observar, porém, é que os 50% de baixo ficaram quase na mesma. Piketty diz: “Que os leitores não se enganem: o desenvolvimento de uma verdadeira ‘classe média patrimonial’ constitui a principal transformação estrutural da distribuição da riqueza nos países desenvolvidos no séc. XX” (p. 255).

 Questão 11: E a tal “meritocracia”, ela é mesmo a solução?

Piketty diz: No futuro poderemos reencontrar uma combinação de dois mundos: de um lado, o retorno das fortes desigualdades do capital herdado e, do outro, as desigualdades salariais exacerbadas e justificadas por mérito e produtividade (cujo fundamento factual se mostrou, como vimos, muito escasso). O extremismo meritocrático pode assim conduzir a uma disputa entre os superexecutivos e os rentistas, em detrimento de todos os que não são nem uma coisa nem outra (p. 407).

Piketty afirma que “a desigualdade não é necessariamente um mal em si: a questão central é decidir se ela se justifica e se há razões concretas para que ela exista” (p. 26) . Mas diz também: “Quando a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de crescimento da produção e da renda, como ocorreu no séc. XIX e parece provável que volte a ocorrer no séc. XXI, o capitalismo produz automaticamente desigualdades insustentáveis, arbitrárias, que ameaçam de maneira radical os valores de meritocracia sobre os quais se fundam nossas sociedades democráticas” (p. 9). A meritocracia, para Piketty, admite a desigualdade, desde que “justa” (p. 37). “O capital é potencialmente útil para todos, e, se as sociedades forem organizadas o suficiente, todos poderão se beneficiar dele” (p. 166). O que fazer, porém, com os doentes e paralíticos à beira da estrada?

 Questão 12: A economia manda na política, ou nem sempre?

Piketty diz: A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política (p. 27) […]. Existem, contudo, meios pelos quais a democracia pode retomar o controle do capitalismo e assegurar que o interesse geral da população tenha precedência sobre os interesses privados, preservando o grau de abertura econômica e repelindo retrocessos protecionistas e nacionalistas. Ao longo do livro, tento fazer proposições neste sentido, e elas se apoiam nas lições tiradas dessas experiências históricas, cuja narrativa forma a trama principal deste texto (p. 9) […]. O fracasso cada vez mais evidente dos modelos estatizantes soviético e chinês nos anos 1970 levou os dois gigantes comunistas a implantar, no início dos anos 1980, uma liberalização gradual de seus sistemas econômicos (p. 139). […] A desigualdade aumentou desde os anos 1970-1980, com fortes variações entre países, o que sugere que as diferenças institucionais e políticas tenham exercido um papel central (p. 233).

Piketty crê firmemente que uma política de impostos progressivos, anuais e globais, sobre o capital é perfeitamente capaz de impor um eficaz controle sobre as “loucuras” (p. 462) da economia liberal. Formas estatizantes, no entanto, não fazem parte de sua proposta, embora esteja aberto a novas formas de propriedade coletiva e controle democrático do capital (p. 553-554).

 Questão 13: O meio ambiente tem futuro dentro do sistema capitalista?

Piketty diz: O Relatório Stern, publicado em 2006, dividiu a opinião pública. […] Para Stern, a perda em matéria de bem-estar global para a humanidade é tal que justifica gastar a partir de agora o equivalente a pelo menos 5% do PIB mundial por ano para tentar limitar o aquecimento global futuro. […] Esse é um dos principais debates para o futuro (p. 551-552).

Jogando o problema do meio ambiente para o futuro, Piketty “sai de fininho”. O problema é fruto do sistema (econômico) e, acolhendo o sistema, é preciso dizer como o problema pode ser resolvido dentro dele.

Questão 14: Os “paraísos fiscais” constituem entraves à democracia real?

Piketty diz: O papel principal do imposto sobre o capital […] é evitar uma espiral desigualadora sem fim e uma divergência ilimitada das desigualdades patrimoniais, além de possibilitar um controle eficaz das crises financeiras e bancárias. Contudo, antes de poder cumprir esse duplo papel, o imposto sobre o capital deve permitir que se atinja um objetivo de transparência democrática e financeira sobre os patrimônios e os ativos detidos pelos indivíduos em escala internacional (p. 504). […] O imposto sobre o capital seria uma forma de cadastro financeiro mundial, algo que não existe hoje… Cada autoridade fiscal nacional deve receber todas as informações (internacionais) necessárias para lhe permitir calcular o patrimônio líquido de cada cidadão (p. 506). […] A transparência financeira internacional é uma questão central para o Estado fiscal moderno (p. 510).

Pesquisas feitas indicam que 10% do PIB mundial está escondido nos paraísos fiscais. Piketty admite que, sem os devidos controles bancários e sem uma transparência financeira internacional popularmente acessível, sua proposta de um imposto progressivo sobre o capital é pouco viável. A crescente concorrência entre os países é o grande entrave atual.

 Questão 15: O imposto progressivo sobre o capital é a melhor solução?

Piketty diz: A instituição ideal que seria capaz de evitar uma espiral infindável de aumento da desigualdade e retomar o controle da dinâmica em curso seria um imposto progressivo global sobre o capital (p. 459). […] O imposto progressivo sobre o capital é um instrumento mais apropriado para responder aos desafios do séc. XXI do que o imposto progressivo sobre a renda inventada no séc. XX (veremos, porém, que esses dois instrumentos podem ter papéis úteis e complementares) (p. 461). […] É necessário […] retomar o controle de um capitalismo financeiro que enlouqueceu (p. 462). […] A questão do desenvolvimento de um Estado fiscal e social no mundo emergente reveste-se de uma importância fundamental para o futuro do planeta (p. 479). [] Se essa regressividade fiscal no topo da hierarquia social se confirmar e se amplificar no futuro, é provável que haja consequências importantes para a dinâmica da desigualdade patrimonial e para o possível retorno de uma enorme concentração do capital (p. 483). […] As maiores fortunas mundiais (incluindo as herdadas) progrediram em média a taxas elevadíssimas ao longo das últimas décadas (da ordem de 6-7% ao ano) – rendimentos bem mais altos do que a progressão média dos patrimônios (p. 420). [] Um imposto igual a 1% ou 2% do valor da fortuna é relativamente pequeno para um empreendedor que consegue obter um retorno de 10% ao ano sobre seu patrimônio (p. 513).

Piketty se diz “vacinado” contra ideias marxistas (p. 37). Não quer mudar o sistema econômico, muito menos o desmonte do Estado Social moderno. Sua proposta é: aperfeiçoamento. Sendo a renda média dos ricos mais alta do que a renda média dos pobres, propõe, além do imposto sobre a renda (cujo “nível ótimo… seria superior a 80%”! – p. 499) e a herança, um imposto direto e progressivo sobre o capital acumulado. “Mencionamos a possibilidade de uma tabela de cálculos de tributos com taxas limitadas a 0,1% ou 0,5% ao ano para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para aqueles entre 1 e 5 milhões de euros, 2% para os que estão entre os 5 e 10 milhões de euros, podendo subir até 5% ou 10% ao ano para os patrimônios de centenas de milhões ou bilhões de euros” (p. 556)… “Todavia, sua aplicação iria requerer um esforço brutal de coordenação internacional” (p. 34).

II – À LUZ DO EVANGELHO

A Bíblia não tem a intenção de oferecer análises científicas. Os autores sagrados falam do que o Espírito de Deus lhes inspirava, partindo de sua própria leitura do contexto social e cultural da época e levando em conta a riqueza espiritual já transmitida pelos antepassados. A Igreja, até hoje, percorre o mesmo caminho. Ainda recentemente, no Sínodo da Palavra de Deus (2007), o papa Bento XVI nos lembrava a importância da “leitura canônica”: a leitura do presente se ilumina com a leitura do passado (unindo a Palavra revelada com a Tradição vivenciada). Assim, diz Dei Verbum, n. 8, “a Igreja, no decurso dos séculos, caminha continuamente para a plenitude da verdade divina”.

Hoje, percebemos melhor que algo muito parecido acontece com todas as religiões: os povos deste mundo, na busca por uma vivência, convivência e sobrevivência feliz, debruçam-se sobre os desafios do presente, amparando-se nas riquezas culturais (“religiosas”) do passado. Nossa “teologia do pluralismo religioso”, atualmente, enriquece-se com uma antropologia – neste caso mais biológica que cultural – que vê o ser humano dotado de uma carga genética (Bento XVI falava de uma “gramática”, e Tomás de Aquino (†1274) de uma “lei natural”) na qual as sementes do bem e do mal (genes egoístas e altruístas) competem entre si, com a feliz tendência de as sementes do bem chegarem à vitória. Se, de alguma forma, o Espírito de Deus permeia toda a realidade, o happy end está garantido, não é mesmo? Aproxima-se o “banquete nupcial. Felizes os convidados!” (Ap 19,9). A utopia de um final feliz é uma utopia humana quase universal.

Lendo o livro de Piketty, veio-me à mente o tom às vezes bastante azedo das disputas polêmicas em torno da teologia da libertação latino-americana. E isto não apenas nos níveis mais altos da hierarquia eclesial, mas também no nível básico das lideranças leigas envolvidas com as pastorais sociais. Com relação à sociedade, em qual proposta embarcar: marxismo, socialismo, capitalismo? Se não for nem socialismo, nem capitalismo, qual a alternativa? Um “outro mundo” é possível? Piketty, como já observamos, declara-se “vacinado” contra ideias marxistas. Opta pelo “mercado livre”. Mas o capitalismo que Piketty propõe é muito diferente do que temos visto até agora. Sua proposta de um imposto progressivo não apenas sobre as rendas mas também sobre o capital acumulado vem muito mais ao encontro do que a Igreja sempre defendeu: preservar a liberdade, mas prendê-la ao objetivo maior do bem comum. Desigualdade, diz Piketty, apenas quando útil ao bem comum. A proposta “laica” de Piketty, sem dúvida, aproxima-se bastante das simpatias de alas muito fortes da Igreja.

Mas não me parece ser esta a proposta de Jesus. Por mais que a teoria econômica de Piketty, caso posta em prática, possa provocar uma reversão radical nas “loucuras” do atual capitalismo neoliberal ou financeiro – e, pastoralmente, devemos apoiar qualquer ação concreta nessa direção –, a Igreja, em princípio, não pode acolher nenhum tipo de capitalismo, por mais decente que seja. Como também não pode dar-se por satisfeita com nenhuma das experiências socialistas postas em prática até hoje. A proposta de Jesus é muito mais radical do que a proposta de qualquer esquerda política imaginável. Por mais radical que uma sociedade seja, ela não calará a prece do povo: “Que venha a nós o “vosso” Reino. A mensagem cristã aponta para algo que vai além do historicamente viável. O Reino de Deus já “está no meio de vós”, mas sua concretização final estará sempre no porvir (Mt 4,17).

A narração bíblica que mais belamente trata de tudo isso – resumindo a história de Israel e a história da humanidade – é a que fala dos celeiros abarrotados e a dos lírios do campo (Mt 12,13-34). Na perspectiva do Reino, é inútil acumular bens sobre bens, consumir sempre mais e destruir celeiros para construir outros maiores. Se Deus veste tão bem o que é insignificante, para que se preocupar tanto? Muito mais do que uma “doutrina”, o cristianismo é uma espiritualidade, um “Caminho” a seguir. O que importa não é acumular, mas partilhar. Apenas quando Deus governa, o coração humano pode descansar. Ninguém, então, ficará à beira do caminho. A sociedade não será meritocrática, mas “gratuicrática”, e até os coxos e paralíticos vão andar. A profunda crença humana na utopia da “Terra sem Males”, por alguns considerada pura alienação, na verdade é a energia mais forte que habita o coração humano.

Isso não dispensa a Igreja de, também, fazer uma análise racional do “sistema econômico” e trabalhá-la pastoralmente, mas essa é outra questão.

Nicolau João Bakker, svd

Missionário do Verbo Divino, sacerdote, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais (com pré-especialização em Economia dos Países em Desenvolvimento). Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo foi educador popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP/CL) e professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia (Itesp/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra- SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema-SP. Nos últimos anos publica regularmente na Vida Pastoral, REB, Convergência e Grande Sinal. E-mail: [email protected]