Artigos

Publicado em julho-agosto de 2010 - ano 51 - número 273 - (pp. 13-18)

O pacto da governabilidade de Lula: avanços e desafios

Por Claudemiro Godoy do Nascimento

Enfim 2010 chegou! Os primeiros dez anos do século XXI foram importantes para a transformação da sociedade brasileira. Lembro-me das comemorações, em 2000, dos 500 anos de “descobrimento-colonização”, da imagem do índio desconhecido com um policial lhe apontando um rifle, como se fosse um criminoso perigoso que devia ser contido. A celebração litúrgica dos 500 anos do Brasil foi marcada por momentos de culto à colonização e à evangelização europeia. Houve poucos momentos de reflexão por parte dos representantes da política brasileira e até dos bispos que ali se encontravam. Não fosse o pronunciamento de dom Tomás Balduíno, o destino dessa celebração seria realmente a inércia crítica da história.

Em 2002, Lula disputava pela quarta vez a presidência da República, tendo como opositor o candidato do PSDB, José Serra. Era um momento de esperança, a qual despontava no imaginário coletivo de milhões de brasileiros. Acredito que muitos e muitas pensaram: “Vamos ver no que vai dar, vamos votar no Lula”. Lula se elegeu com o maior número de votos da história política brasileira. Foi um acontecimento marcante. O Brasil necessitava de uma mudança de rumos, de sentidos e de diretrizes. Lula se tornou o primeiro presidente da história proveniente das camadas populares. Apenas esse dado já é substancial para entendermos a base sobre a qual a cultura política brasileira está, ainda hoje, alicerçada. Trata-se de uma cultura patrimonialista, que preconiza práticas políticas atrasadas, dentre as quais se destaca o coronelismo com sua cultura do favor. Essa cultura política ainda se encontra bem viva no imaginário coletivo dos brasileiros e brasileiras (Nascimento, 2009). Nesse contexto, Lula foi um marco histórico que conseguiu romper com essa cultura política do atraso. Por outro lado, além da cultura política patrimonialista, o Brasil vivia os áureos anos de outra cultura política e econômica defendida por Collor (1990-1992), Itamar (1992-1994) e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a saber: o neoliberalismo.

 

1. Do neoliberalismo ao pós-neoliberalismo socialista

No Brasil, o neoliberalismo encontra sua essência na velha e clássica concepção de liberalismo aqui existente, o qual difere do liberalismo europeu. O liberalismo brasileiro, assim como nos outros países da América Latina, traz em si simbolismos de um autoritarismo ditatorial. Francisco de Oliveira trabalha com a ideia de divisor de águas entre o velho liberalismo ditatorial e o surgimento do neoliberalismo, que se dá com a efetivação do Plano Real no governo Itamar Franco, em 1994. Na época, o ministro da Fazenda era o então senador Fernando Henrique Cardoso, que viria a ser, por oito longos anos, presidente da República. Na verdade, a efetivação do Plano Real alavancou a candidatura de FHC, que venceu o candidato da oposição Luiz Inácio Lula da Silva em 1994 e em 1998. O Plano Real, se fez a economia se recuperar, em contrapartida fez o social piorar. Para Francisco de Oliveira (1998, p. 28), o governo implementou o programa neoliberal desde 1993 e pretendeu realizar a “destruição da esperança e a destruição das organizações sindicais, populares e de movimentos sociais que tiveram a capacidade de dar uma resposta à ideologia neoliberal”.

Recentemente, o mundo assistiu atordoado à brusca queda das bolsas de valores em todos os países, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. Houve um sobe e desce de números, alta do dólar, queda nas transações. Enfim, a bola da vez se chama “crise”. Mas o que seria essa crise? O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos convida-nos a olhá-la na perspectiva da ampliação do Estado e, talvez, da minimização do mercado total.

A crise não se encontra no Estado; pelo contrário, está no mercado. O mercado entrou em crise por conta das dívidas dos norte-americanos com o setor imobiliário; e, com os financiamentos para pagar as dívidas, o problema tornou-se maior ainda, atingindo países da Europa, da Ásia e da América Latina. O efeito cascata tomou proporções extraordinárias. Contudo, uma questão podemos evidenciar nesse mar de sujeiras: agora o mesmo Estado foi chamado para socorrer os bancos em falência, bem como os aflitos e moribundos do mercado total que, até pouco tempo atrás, “arrotavam” barbáries contra a presença estatal.

Não se trata de defender a tese da “estadolatria”, pelo contrário: precisamos de um Estado popular em que os princípios democráticos estejam realmente a serviço de todos e todas. O Estado, no passado, cometeu erros nos dois extremos, seja com o nazifascismo, seja com o comunismo socialista das antigas repúblicas soviéticas. E ainda comete erros quando se curva em adoração ao mercado. Não seria o momento de romper definitivamente com a doutrinação do mercado, alavancada de forma mais feroz desde o “Consenso de Washington”?

Nesse sentido, o neossocialismo tem a missão de ser um novo momento para a história, ou seja, o momento de pós-neoliberalismo. Um evento e um momento novo para a humanidade, que passa por dramas e tramas neste cenário dialético de mundialização e exclusão. Reverter esse quadro é tarefa dos governos populares que assumam como caminho o neossocialismo. Quanto aos descontentes, são livres para realizar suas críticas e praticar o ritual de defendimento do capital, do deus “mercado”, das ideologias elitistas. São livres para se afirmarem também como pessoas humanas. Mas, como já dizia Emmanuel Mounier (1976), “a Liberdade é sempre condicionada”. Nesse caso, a crítica ao neossocialismo é bem-vinda desde que não haja falsidade nos discursos e mentiras “ideológicas” que pareçam verdades absolutizadas.

 

2. O pós-neoliberalismo de Lula: o pacto da governabilidade

Nesse sentido, análises sobre o governo Lula estão sendo ecoadas por vários autores e cientistas políticos. Alguns destacam o continuísmo do primeiro e do segundo mandato em relação ao governo anterior, baseados no convencimento de que as coisas se mantiveram ortodoxas no plano econômico. Outros discernem a mudança de paradigma do atual governo, especialmente ao verificarmos o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), assinado em dezembro de 2009, que provocou um alvoroço nas consciências elitistas. Particularmente, partilho das convicções de que uma nova plataforma política se encontra em construção neste cenário de refluxo do paradigma neoliberal. Os que achavam Perry Anderson maluco, por causa de sua teoria do pós-neoliberalismo, começam a rever suas opiniões. As posições de ortodoxia econômica adotadas pelo governo Lula na chamada “era pallociana” estão sendo profundamente questionadas por membros da cúpula do Partido dos Trabalhadores e pelo próprio presidente.

A política econômica do governo Lula apostou na baixa e no controle da inflação, o que proporcionou a melhoria das condições de vida dos brasileiros. O questionamento acima aludido diz respeito às altas taxas de juros, que impediram maior crescimento. No entanto, alguns pontos merecem destaque, como o recorde nas exportações e o aumento significativo no superávit da balança comercial. Outro fator positivo diz respeito ao Risco Brasil, que atingiu o menor patamar da história, caindo de 2.035, no último trimestre do governo FHC, para 213 pontos, em janeiro de 2010. Com tais avanços, caiu também o índice da desigualdade social no país e cresceu a renda dos mais pobres, muitos dos quais passaram da exclusão social à inclusão. Em quatro anos, o nível de miserabilidade diminuiu significativamente. Além disso, o PIB cresceu, o Brasil controla a dívida pública, o déficit em transações correntes foi revertido, há uma ampliação das reservas internacionais e a dívida externa pública caiu de 214 bilhões de dólares, em 2003, para 195 bilhões de dólares, em 2008. No que diz respeito a este último ponto, o principal de tudo foi a quitação dos valores junto ao FMI, com a qual o Brasil conseguiu a tão sonhada independência, a ponto de vir a tornar-se credor do Banco Mundial e do Fundo.

Outro ponto forte do governo Lula foi a geração de emprego e renda. Foram criados mais de 10 milhões de empregos diretos e indiretos, houve um avanço nos programas com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), os recursos do BNDES para as empresas fizeram aumentar a geração de empregos, o salário mínimo subiu mais de 100% e os reajustes salariais foram os melhores dos últimos dez anos. Outro aspecto importante no atual governo foi o avanço no combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil por meio das ações da Polícia Federal, fazendo a lei ser cumprida e angariando elogios da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Nos últimos anos houve uma reestruturação do serviço público na esfera federal, pois, no governo FHC, se promoveu verdadeiro desmonte nesse setor, graças às políticas neoliberais preconizadoras do chamado Estado mínimo. Foram contratados, mediante concurso público, mais de 100 mil novos servidores, mais de 21 mil novas vagas foram preenchidas em 2006 e, somente neste ano de 2010, mais de 90 mil servidores serão contratados. Promoveu-se um canal de diálogo permanente com o servidor público, e o governo concedeu reajustes salariais diferenciados por meio dos Planos de Classificação de Cargos (PCC). Tais reajustes de forma alguma comprometem a disciplina fiscal, afirmação que vai contra as ideias de economistas defensores do corte de gastos públicos em prejuízo dos proventos dos servidores.

Na política externa, o governo retoma o sentido estratégico e o Brasil se situa numa posição de destaque no cenário internacional, pois lidera, juntamente com Índia, México e África do Sul, o bloco dos países emergentes. O Brasil propôs a criação do G-20; investiu politicamente no Mercosul, o que interrompeu as intenções estadunidenses de implantar a Alca em toda a América Latina; estimulou o processo de integração entre os países do Mercosul; defendeu benefícios para seus cidadãos, promoveu a criação do Parlamento do bloco e a sua aproximação com a Comunidade Andina; financiou obras no Mercosul via BNDES; propôs um novo modelo para a Alca; ampliou as parcerias com países emergentes, principalmente na África e na América do Sul como um todo, e com isso as exportações brasileiras cresceram acima da média mundial. Dois pontos merecem especial destaque nesse cenário das políticas externas, a saber: a aproximação do Brasil aos países árabes e sua luta contra a fome e a miséria no mundo.

No agronegócio, a produção de grãos cresceu 69,1% e a safra de 2006/2007 teve um crédito de R$ 60 bilhões. O chamado crédito agrícola aumentou em 26%, o governo paga prêmio do seguro rural e os incentivos fiscais são ampliados. Na agricultura familiar e reforma agrária se firmaram 57% a mais de novos contratos do Pronaf-Crédito e, ainda, de forma discreta, houve uma valorização da assistência técnica para a execução de projetos de extensão rural e de fortalecimento dos Projetos de Assentamento de Reforma Agrária. Foi repactuada a dívida de agricultores familiares e assentados, o seguro passou a cobrir o financiamento da agricultura familiar, houve uma reformulação do Programa Garantia Safra, o que permitiu o avanço nas políticas de estratégia comercial, com o sistema apoiando o comércio dos produtos no mercado interno. Vários programas do Ministério do Desenvolvimento Agrário foram instituídos para incentivar a agricultura familiar, o que possibilitou o crescimento do orçamento para a reforma agrária. Em que pesem as críticas ao modelo adotado, pautado pela lógica capitalista e por uma concepção minifundiária, o fato é que no governo Lula foram assentadas mais de 310 mil famílias e houve crescimento de áreas destinadas à reforma agrária. Além disso, o Incra contratou, por meio de concurso público, mais de 1.700 servidores.

A criação da Secretaria de Aquicultura e Pesca possibilitou um olhar político e social a diversas comunidades de pescadores que não estavam amparados por nenhuma forma de política pública do Estado. Agora, já existem projetos que beneficiam pescadores artesanais, programas que garantem crédito e modernização da frota, o Brasil passou a investir em terminais pesqueiros, cresceu o número de pescadores com seguro-defeso, a criação de parques aquícolas gera novos empregos e renda e consolidou-se uma das principais políticas de afirmação para os pescadores: o Programa Alfabetiza, introduzido nas comunidades, que alfabetizou mais de 100 mil pessoas.

As empresas estatais foram valorizadas. Encerrou-se, nos últimos anos, a lógica neoliberal da privatização, o que permitiu o fortalecimento da soberania nacional. Com a Petrobras, o país alcançou a autossuficiência em petróleo, houve um investimento considerável em novas refinarias e o país conseguiu, pela primeira vez, iniciar uma política de exportação para outros países. Além disso, espera-se um crescimento da economia brasileira com o pré-sal e com a criação de uma nova estatal, a Petrosal.

No âmbito da segurança pública e do combate à corrupção, as ações contra o crime no aparelho estatal e fora dele cresceram 815%, aumentou o cerco contra a lavagem de dinheiro, a Controladoria Geral da União iniciou profunda fiscalização nos municípios brasileiros, obtendo a aprovação da Organização dos Estados Americanos (OEA) no que se refere ao combate à corrupção. Todos os gastos públicos foram disponibilizados na internet para que qualquer cidadão possa conferir. As compras públicas passaram a ter como regra fundamental o pregão eletrônico. No combate à violência, foi criado o Sistema Único de Segurança Pública e a Força de Segurança Nacional. A Polícia Federal teve um orçamento 74% superior ao verificado no governo FHC, aumentou o efetivo e os órgãos de perícia foram reforçados, além dos investimentos na construção de penitenciárias federais. Mais dois projetos ainda devem ser ampliados, buscando atingir principalmente a consciência da população brasileira, a saber: o programa que pode modernizar as Delegacias das Mulheres e a continuação da Campanha Permanente do Desarmamento, para que se reduzam os homicídios.

Mas os grandes destaques do governo Lula foram as políticas públicas de educação e na área de ciência e tecnologia. Na educação, o Fundeb, aprovado pelo Congresso Nacional, prevê um ensino integrado da educação infantil ao ensino médio, o que permitirá o atendimento de 47,2 milhões de alunos e alunas no país. O salário-educação cresceu 46,9%, não obstante o fato de que esse programa precise ser revisto a fim de se lhe conferir um caráter emergencial e menos assistencialista. Houve profunda capacitação dos professores da educação básica e criou-se o incentivo aos livros didáticos, com a distribuição de 120 milhões de livros ao ano. Na educação superior avançamos muito na superação das desigualdades sociais, pois se ampliou o ensino universitário federal, com a criação de dez novas universidades federais: Univasf (vale do São Francisco), UFRB (Recôncavo Baiano), UFCG (Campina Grande), Ufersa (semiárido), UFGD (Grande Dourados), UFABC (ABC), Fafeod (Vale do Jequitinhonha e Mucuri), Unipampa (pampas), Unila (integração latino-americana), Unifal (Alfenas), além dos novos campi de extensão em processo de expansão. Foram retomados os investimentos no ensino superior, principalmente por meio do Prouni, que concede 242 mil bolsas de estudos pelo país. Novos professores universitários, mestres e doutores, foram contratados mediante concurso público e cresceram os recursos destinados ao Programa Brasil Alfabetizado, chegando a 48% a mais do que no governo anterior.

Na área da ciência e tecnologia, se verificaram investimentos superiores aos realizados por qualquer outro governo na história republicana brasileira, com a política de incentivo ao fundo de desenvolvimento científico. Efetivou-se um programa que garante computador a pessoas de baixa renda, ampliando o acesso à internet, e, com a Lei de Inovação, os produtos se tornaram mais competitivos. A TV digital, com sua capacitação tecnológica, chegou para ficar e ampliou a democratização das comunicações — nas mãos, historicamente, de grupos econômicos detentores da hegemonia do capital. Outra conquista foi a aprovação da Lei de Biossegurança, que permitirá investimentos em pesquisas nas áreas de saúde e agronomia.

O Brasil elevou os investimentos na área da saúde, instituindo, a princípio, a Tabela do SUS. Também criou o Programa Saúde da Família (PSF), que contribuiu significativamente para a redução da mortalidade infantil, e o país passou a ter 23 mil novos agentes comunitários de saúde. Também foi prioridade o Programa de Saúde Bucal, o investimento de 75% a mais em compras de medicamentos para o SUS, a constituição das farmácias populares e a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), o qual pôde salvar milhares de vidas graças à rapidez do sistema. A venda de remédios fracionáveis, que evita o desperdício, os mais de 2.700 novos leitos de UTIs credenciados e o crescimento do número de transplantes são outros dados que caracterizam a política de saúde nos últimos tempos.

Na assistência social, o governo investiu 94,6% a mais do que seu antecessor — dado expressivo sobretudo se pensarmos nas mais de 9,2 milhões de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família, programa amplamente criticado pelos que talvez nunca tenham passado por situações de miserabilidade —, além dos mais de R$ 27 bilhões aplicados no combate à fome e à miséria. A política de assistência social fortaleceu-se com a criação do projeto que construiu mais de 105 cisternas, principalmente no semiárido nordestino, com o programa que beneficiou mais de 2,7 milhões de idosos e pessoas com deficiência e com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que tem preservado a saúde e a segurança de muitas crianças.

Estes são alguns pontos do que considero uma política de pós-neoliberalismo fomentada pelo governo Lula. Evidentemente, 500 anos de história não se mudam em apenas oito anos. A continuidade dessas diretrizes possibilitará ao governo estabelecer nova plataforma política, privilegiando a redistribuição de renda entre os mais pobres, para que possamos dar sinais de que outra sociedade brasileira é realmente possível, uma sociedade onde todos possam ter dignidade e justiça social.

Lula representa a força histórica dos pobres e oprimidos que nunca alcançaram o poder do Estado. Ele representa os milhões de homens e mulheres que estavam nos porões da casa desde o chamado “descobrimento” — a invasão da cultura europeia nestas terras. Enfim, representa o avanço das oportunidades de emprego e geração de renda, a moradia, a superação da fome e da miséria, a criação das novas universidades federais, o Prouni, a dignidade das comunidades quilombolas, a busca incansável por uma reforma agrária realmente sustentável para os trabalhadores rurais, a solidificação da economia, o aumento das exportações, o não ao projeto norte-americano da Alca, o fortalecimento do Mercosul, a conquista da autonomia petrolífera para o consumo interno, a luta implacável contra mafiosos que sonegam impostos, a Polícia Federal atuante e combatente contra o crime organizado, o apoio aos movimentos sociais e outros tantos. Lula representa exatamente o projeto de descolonização e soberania nacional para o país.

 

3. Desafios do pacto da governabilidade: a questão ambiental-ecológica e o problema da terra

O pacto da governabilidade de Lula possui dois grandes desafios, a saber: a questão ambiental-ecológica e o problema da terra. São problemas da sociedade brasileira que podem ser considerados insignificantes diante da ameaça concreta à vida do ser humano. A extinção do ser humano é uma possibilidade real. Não se trata de messianismos ou de tipos de convulsões coletivas fundamentalistas de mortes em massa em nome de um sistema religioso. Ao contrário, são os próprios seres humanos que estão promovendo essa possibilidade real de extinção, de desaparecimento, de fim.

O modelo predatório nega a existência do ser humano, o direito das pessoas de ter atendidas suas necessidades materiais, existenciais, biológicas, econômicas e sociais, causando a geração de violência no campo e na floresta, com forte imposição do trabalho escravo e a morte de trabalhadores rurais, indígenas e agentes de pastoral. Tais situações são monitoradas pela Comissão Pastoral da Terra, que a cada ano lança um Relatório dos Conflitos no Campo. Esse modelo se pauta por quatro eixos predatórios: madeira, pecuária, extração mineral e monocultura agrícola. Para esses “homens de negócio”, a floresta é um obstáculo ao latifúndio e à concentração de renda. Além disso, esse modelo predatório consegue financiamento público para atingir os interesses capitalistas por meio de três bancos públicos: Banco da Amazônia, Banco do Brasil e Sudam. Com dinheiro público se financia a cultura de morte e o modelo predatório, que se torna a fonte especulativa mais perigosa na Amazônia, especialmente na região sul do Pará.

O modelo socioambiental, utópica e urgentemente necessário, permite à floresta uma possibilidade de viver e aos povos que dela dependem a utilização da metodologia do socioextrativismo, interrompendo a cultura predatória. Os ambientalistas apontam a urgência das demarcações das terras indígenas, dos quilombolas, de seringueiros e ribeirinhos. Atualmente, 4% da Amazônia já é uma reserva extrativista que deve ser mantida e ampliada. Por isso, pensar a Amazônia significa pensar outro tipo de democracia que possibilite o diálogo com base em forças mediadoras. Pensá-la é pensar também os conflitos de interesse. São os interesses do capital predatório que geram o que podemos chamar de “crise civilizatória”.

Por outro lado, temos o problema da terra, que ainda não foi resolvido no governo Lula e é tido como um desafio. O Brasil apresenta uma estrutura agrária em que convivem extensos latifúndios improdutivos, grandes monoculturas de exportação e milhões de trabalhadores rurais sem-terra. A área média de pequenas propriedades não ultrapassa os 20 hectares e a população rural vive em péssimas condições de higiene e alimentação, o que resulta em elevados índices de mortalidade. Há regiões no país em que os processos de irrigação, fertilização e recuperação do solo são desconhecidos, o analfabetismo prevalece e quase inexistem escolas técnico-agrícolas.

De acordo com as pesquisas mais detalhadas sobre o tema, o sistema defendido pelo MST não é o adotado pelo governo. O governo adota o oposto da concepção de reforma agrária defendida pelo MST. Geralmente, adota o modelo de reforma agrária sindical segundo os interesses da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), baseando-se na desapropriação e distribuição da terra em pequenos assentamentos, divididos em parcelas individuais. De um latifúndio para o minifúndio. Já o MST, mesmo que, em alguns casos, seja obrigado a assumir esse modelo em razão de fatores culturais, possui outro modelo de reforma agrária, baseado no cooperativismo e no associativismo.

A reforma agrária brasileira, cujo modelo atual funciona há mais de 20 anos, tem sido usada em grande parte para mandar ou devolver ao campo os desempregados urbanos e as legiões de excluídos da atividade rural pelos processos da chamada modernização da agricultura, como bem demonstrou em 2006 a TV Globo, com um documentário apologético sobre o Brasil rural. Na verdade, o Brasil rural das grandes empresas de soja transgênica e dos fazendeiros com seus milhares de cabeças nelores pastando em terras que poderiam ser realmente utilizadas para a plantação e para outro modelo de reforma agrária que abolisse a propriedade privada.

Percebo apenas uma vantagem no modelo atual de luta pela terra e pela reforma agrária: a atuação de resistência do MST, que continua organizando o povo para reivindicar, ocupar, resistir e produzir em comunhão, no espírito da partilha. Em contraposição às dificuldades encontradas nos projetos de reforma agrária, existe no Brasil, principalmente nos estados do Sul (até mesmo por motivos culturais), o sucesso do modelo de cooperativas do MST. Em alguns casos, as cooperativas respondem por mais de 40% da produção nacional de determinada cultura. O grande problema é que, para ligar uma coisa com a outra, se depende da familiaridade do assentado com o trabalho em união e de sua aptidão para ele, o que percebemos ser difícil encontrar nos assentamentos das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Por isso, acredito que a reforma agrária bem-sucedida somente se efetivará com modificações mais profundas na maneira de tratar a propriedade da terra e nas concepções culturais sobre ela. Esperamos que essas e outras transformações sejam levadas a cabo na continuidade e no aprofundamento do que o governo Lula já iniciou.

 

BIBLIOGRAFIA

MOUNIER, E. O personalismo. 4ª ed. Lisboa: Martins Fontes, 1976.

NASCIMENTO, C. G. Educação do campo e políticas públicas para além do capital: hegemonias em disputa. 2009. Tese (Doutorado em Educação) — Faculdade de Educação. Universidade de Brasília, Brasília, 2009.

OLIVEIRA, Francisco de. “Neoliberalismo à brasileira”, in: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org.). Pós-neoliberalismos: as políticas sociais e o Estado democrático. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

 

Claudemiro Godoy do Nascimento