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Publicado em número 116

Providência Divina e o lucro do sofrimento

Por Roque Frangiotti

Um filósofo da qualidade de Emanuel Kant acreditava seriamente que a guerra servia aos desígnios da Providência divina. Um teólogo como santo Tomás de Aquino podia dizer que os tiranos serviam aos fins estabelecidos pela Providência porque, sem tiranos, não haveria mártires (cf. Suma Teológica Ia, q. 22, a.2). Empregar hoje essa linguagem não seria uma blasfêmia? Após tantas e infindas guerras, massacres, conflitos, calamidades, crueldades, tiranias que teceram e tecem ainda hoje nossa história, seria possível continuar crendo que a história é dirigida por uma Providência amorosa? Seria possível crer e justificar que tudo é conduzido harmoniosamente pela Providência divina? Nosso objetivo é o de examinar como a tradição respondeu à estas questões e criticar essas respostas. Nossa reflexão não se alimenta simplesmente pelo gosto da crítica, mas pelo desejo de, em criticando, ajudar a purificação de nossos conceitos de Deus e de sua Providência.

1. Há conciliação entre providência e sofrimento?

A questão com a qual me ocupo neste artigo é a de tentar compreender a relação entre a Providência amorosa e o sofrimento. Trata-se de saber por quais caminhos a tradição teológica chegou a conciliar e a explicar estas duas afirmações contraditórias: a existência de uma Providência amorosa, benévola, e um mundo cheio de sofrimentos. Em outros termos, trata-se de procurar compreender porque a Providência permite os sofrimentos, especialmente o sofrimento dos inocentes, dos justos. Podemos hoje afirmar, como os antigos, que Deus se compraz no sofrimento daqueles que ele ama?

A doutrina tradicional da Providência divina deu muitas razões para justificar e legitimar os sofrimentos. No curto espaço deste artigo, não será possível abordar e analisar todas. Contentar-nos-emos em apontar as três grandes respostas dadas pela teologia tradicional da Providência e estudar apenas a terceira.

2. O sofrimento como punição

Se examinarmos a doutrina tradicional da Providência divina quanto à questão de saber por que Deus quer ou permite os males e os sofrimentos que nos afligem, a explicação mais comum é a que os apresenta como punição dos pecados. Esta ideia da punição dos pecados pelo sofrimento parece comum a toda a humanidade. Se existe um aparelho social para punir os maus cidadãos, a mesma exigência parece se impor para a humanidade, na ordem moral, na relação Deus-homem, com mais justeza.

Segundo a doutrina tradicional, todos os homens merecem ser castigados porque todos pecaram. Assim, o homem nasce sob o signo da punição. O amor de Deus se transforma em um zelo ardente a serviço de sua maior glória e se torna, ao mesmo tempo, uma paixão do mesmo caráter da paixão que anima um chefe de Estado, um chefe de partido político, ou de um fanático cuja causa e honra está em jogo. Mas como sustentar hoje que a fome que atormenta e mata milhões de seres humanos é uma punição dos pecados? Não será por causa de tal castigo que as pessoas são conduzidas a pecar ainda mais, a fazer maior violência e a se comportar com uma rara selvageria? Em que esse gênero de punição se parece com a sabedoria da Providência divina? Que glória Deus recupera através de tais males e sofrimentos dos humanos?

3. O sofrimento como prova-pedagógica

A segunda explicação que a tradição formulou como razão que justifica os sofrimentos é a de que eles são meios de educação e de conversão. A ideia de que os sofrimentos são uma prova é, ela também, comum ao pensamento pagão e bíblico. É assim que à questão posta pelo discípulo Lucilius, “se o mundo é regido por uma Providência, por que tantos males afligem os homens de bem?”, Sêneca responde: “Pela mesma razão que, no exército, os mais corajosos recebem as missões mais perigosas: é à elite destes homens que o chefe se dirige quando for necessário surpreender o inimigo (…). Deus nos honra em querer provar, em nós, a resistência da natureza humana”[1].

Para as Escrituras, é Deus mesmo quem prova o homem pelas aflições. A figura maior, neste assunto, é Jó. Ele foi horrivelmente provado em seus bens, em seus filhos e em sua própria carne para que fosse visível seu valor de crente íntegro e reto que temia a Deus. Encontramos assim a comparação do homem provado como o ouro que passa pelo fogo. O livro da Sabedoria, falando da sorte dos justos e dos ímpios, diz que “Deus os submeteu à prova e os encontrou dignos dele: como o ouro no crisol, ele os provou”[2].

Se a ideia de prova constitui um progresso em relação à ideia de punição, contudo, ela provocou a concepção segundo a qual esta vida não é nada mais do que um estado de prova, um noviciado da eternidade, como o diz santo Agostinho: “A vida temporal não é senão o noviciado da eternidade. Os infortúnios constituem, para os cristãos, uma prova e um castigo”[3]. O homem vive para ser provado. A vida se transforma num campo de batalha ou num grande ginásio. Os sofrimentos são meios para que cada um se exerça na prática da virtude, da paciência, especialmente. Assim, a pedagogia divina da aflição, dos sofrimentos, implica a justiça final de Deus como ato de remuneração, de recompensa. É o que devemos estudar em seguida, isto é, como a Providência credita os sofrimentos como ganho para a vida eterna.

4. O sofrimento para a recompensa

A primeira conclusão que se tira num estudo dos tratados sobre Providência divina, no capítulo do sofrimento, é que um mundo sem sofrimento é um mundo sem mérito. Uma vida sem sofrimento é uma vida sem redenção. É aqui que o aspecto político e econômico da religião parece mais evidente: sem sofrimentos, o homem não tem nada a negociar com Deus e Deus não encontra outro meio de melhorar o homem decaído ou de salvá-lo sem sofrimentos. Segundo esta doutrina, Deus não age gratuitamente: se ele doa qualquer bem ao homem, ele exige um pagamento pela moeda do sacrifício, do sofrimento. Por estas vias, essa doutrina assegura que o resultado final será sempre bom e justo. As tragédias, as calamidades, todos os males que nos afligem são meios necessários para que atinjamos a glória e nos mostremos dignos de recompensa.

A ideia de ser glorificado pela divindade era muito importante na concepção da moral grega. Ela tinha sido considerada como a recompensa da realização da ideia moral, a saber, a realização da aretê, da virtude[4]. O mito de Hércules, por exemplo, significa que a dor enobrece o homem e lhe alcança méritos e glórias. É precisamente isto que a aparição de Hércules à Rhodes se esforça em ensinar: “Eu te direi os males que sofri, todas as penas que suportei, uma após outra. Agora, ganhei uma glória imortal, como podes ver. Saiba-o bem, a ti também a dor é necessária. Em recompensa destes males, tu terás a vida gloriosa”[5].

Para o autor do livro da Sabedoria, o que justifica sobretudo a Providência, é a sanção da vida futura: só então a virtude será enfim recompensada, como ela o merece, enquanto que a vingança de Deus atinge os pecadores[6]. No capítulo 3,7-9, o autor fala da esperança dos justos e da confusão dos maus. Depois das provas desta vida, os justos terão uma gloriosa recompensa, e nos vv. 13-46, ele diz que mesmo a esterilidade terá uma compensação assegurada na outra vida. Os capítulos 4,20-5,23 mostram o ato do julgamento final. Há terror por parte dos ímpios e confiança por parte dos justos. Os ímpios se enganaram sobre a sorte dos justos e sobre sua própria conduta: aí há recompensa para os justos e aflição para os ímpios. A sorte de cada um é invertida. “… os justos vivem eternamente; sua recompensa está nas mãos do Senhor (…). Receberão da mão do Senhor a coroa real da glória e o diadema de beleza (…)”[7]. Sob a ação da Providência, todas as coisas concorrem para a felicidade dos justos, enquanto que se reserva para os maus a vingança por terem violado a ordem, pois o homem é punido lá mesmo onde ele pecou[8].Se a crença na vida futura assegura que uma sanção restabelecerá o equilíbrio na ordem individual, no tempo messiânico soará a hora das retribuições coletivas, nacionais[9].

Mas, já antes do livro da Sabedoria, a tradição de Israel havia elaborado a teoria de que Deus tinha prometido recompensa para os justos por numerosas gerações seguintes e que os ímpios não deixariam posteridade e memória[10].Assim os ímpios, terão uma surpresa muito grande diante da mudança de destino que vai se operar. Os justos lhes pareciam infelizes e dignos de desprezo, mas serão acolhidos na eternidade plenos de méritos, enquanto que eles, os ímpios, serão entregues aos tormentos.

5. A questão debatida no livro de Jó

É o livro de que nos oferece a possibilidade de continuar examinando a questão. Do ponto de vista teológico, o capítulo 36,5-23 retoma as teses clássicas sobre a retribuição das quais os amigos de Jó já tinham feito a base de suas argumentações: Deus não deixa viver o mau; ele faz morrer “em plena juventude os ímpios de coração que respiram cólera” (vv. 6.13). Em revanche, Deus faz justiça aos pobres e os faz assentar sobre o trono com os reis (vv. 6ss). Eliú acrescenta que, mesmo que os justos estejam na aflição, ligados pela “corda do infortúnio” (v. 8), Deus lhes oferece uma chance de “acabar seus anos nas delícias” (v. 11).

Toda a queixa de Jó é um apelo de esperança em Deus. Ele, Jó, colocou-se resolutamente em face desta doutrina tradicional da retribuição que seus amigos defendiam: boa ação é igual recompensa; má ação é igual punição. Jó colocou esta doutrina em suspeita. Ao final, se Jó é louvado por Iahweh e seus amigos criticados, é porque ele se elevou acima dos cálculos humanos, enquanto seus amigos não souberam ultrapassar a inexorável lei da justiça humana da retribuição, atribuindo-a a Deus.

Nesta perspectiva, o livro de Jó pode ser apresentado como uma espécie de protesto, contra a tese tradicional da retribuição, neste mundo, das faltas e dos méritos, pela adversidade ou prosperidade. Jó tenta fazer a dolorosa pesquisa das causas de seus infortúnios, já que ele rejeitava a tese tradicional da retribuição rigorosa. Os amigos de Jó têm a ideia que o mundo é um lugar de justiça onde os bons são recompensados na exata medida de suas virtudes, e os maus são castigados, eles também, na exata medida de seus vícios. Noutro extremo, Jó resiste à esta argumentação popular, porque ele não tem consciência de ter cometido grandes pecados e de ser um homem viciado. Ele aceita ser pobre diante de Deus, mas não de merecer castigos. Entretanto, se Jó ultrapassa as ideias correntes, ele o faz somente ao nível teórico, porque no final ele recupera todas as posses, retoma todas as suas possessões e riquezas e o vigor físico como recompensa por ter se comportado exemplarmente, na prova: “E Iahweh restaurou a situação de Jô (…), abençoou a nova condição de Jó ainda mais que a antiga” (Jó 42,10-17).

Essa conclusão do livro de Jó nos deixa ver que seu Autor não foi capaz de encontrar uma solução à questão tradicional: sendo justo, sofrendo com paciência, rezando por seus amigos que não tinham “falado bem de Iahweh”, Jó merece ser recompensado, mesmo nesta vida. O fim do livro marca um retorno à tese tradicional que, ao longo de seus discursos, Jó havia questionado e rejeitado.

6. A questão e a resposta dos Padres

Os Padres da Igreja não têm outra doutrina senão a do Antigo Testamento. É assim, por exemplo, que são João Crisóstomo, comentando os Atos dos Apóstolos, escreve: “Se alguém pergunta porque o Senhor permitira que fossem assim perseguidos, que ele saiba que as tribulações são para os justos uma fonte inesgotável de recompensa”[11].

Para são João Crisóstomo, há duas espécies de recompensas para o sofrimento do justo. Uma é a recompensa no Reino dos céus; outra, os ganhos obtidos na terra. A recompensa sobre a terra apresenta dois aspectos. O primeiro é que sofrer por um motivo elevado, como pela verdade, é já uma recompensa. O exemplo que ele oferece é a atitude dos Apóstolos saindo alegres do Conselho dos Judeus, porque tinham sido julgados dignos de sofrer pelo nome de Jesus: “E esta (a virtude), recebe o preço não somente após os combates, mas no meio mesmo dos combates e a luta é para ela uma recompensa (…). Aprendei como (…) a virtude se torna ela mesma, antes da recompensa, sua própria recompensa”. “Não é somente no Reino dos céus que está o preço da virtude, mas no fato mesmo de sofrer, porque a maior recompensa é de sofrer pela verdade. É por isso que o grupo dos apóstolos saía alegre do Conselho dos Judeus, não somente por causa do Reino dos céus, mas porque tinham sido julgados dignos de serem ultrajados por causa do nome de Jesus”[12]. Esta honra de sofrer pela verdade e de ser, pelas tribulações, associados aos sofrimentos de Cristo, deve tornar os justos alegres e ser a causa de sua felicidade.

O segundo aspecto da recompensa, são as vantagens que o justo sofredor recebe de seu sofrimento: ele adquire a glória, o crescimento das forças, um ensinamento, uma ação purificadora[13]. Tudo isso são João anuncia como a recompensa dada por Deus ao justo por seu sofrimento.

Mas, se como grego, ele é muito sensível a estes aspectos, como cristão, ele lembra que a recompensa do justo consiste essencialmente na aquisição do Reino dos céus. É este, finalmente, o fim de toda a existência humana e o sentido da prática da virtude e do acolhimento dos sofrimentos. Então, na certeza da recompensa futura, todas as antinomias da vida terrena, particularmente aquela do escândalo da prosperidade dos maus, são resolvidas. A certeza da recompensa dos justos, na vida futura, que se constitui na resposta aos sofrimentos sem número que os afligem, produz serenidade e tranquilidade nos sofredores. Quando tenta descrever e analisar os bens futuros e as recompensas magníficas da vida eterna, são João Crisóstomo se conscientiza de sua impotência e para, sabendo que estas realidades ultrapassam a palavra e o pensamento: “O que significa, na verdade, ser exilado, ir de país em país, ser arrastado ao tribunal, ter as roupas raspadas pelos soldados, padecer os malefícios daqueles que receberam de vós mil benefícios, passar pelas vexações dos escravos e dos homens livres, quando a recompensa destes males é o céu e estes bens que não podem ser expressos pela palavra e que não têm fim, mas que produzem a alegria eterna da qual eles são a fonte”[14].

São João Crisóstomo sublinha que não há medida comum entre a felicidade do céu e os sofrimentos da terra. Por outro lado, os sofrimentos constituem somente um estado transitório, uma condição passageira. Não devem ser rejeitados, mas ao contrário, bem acolhidos, porque eles são um ganho para a felicidade eterna: “Tendo deixado de considerar as armadilhas, os insultos, a perda dos bens, as mudanças contínuas de residência, a vida em país estrangeiro, e pisando aos pés tudo isto como coisa mais vil que a lama, sonhai com os tesouros que, em troca, vos são preparados no céu, (…) à riqueza que não pode ser roubada”[15].

Assim, numa perspectiva de eternidade, todos os sofrimentos são transformados numa sinfonia cósmica, numa harmonia universal. Vemos que as injustiças são praticadas pelo mundo inteiro, que os sofrimentos afligem os homens, que as misérias não cessam de se alastrar, mas se crê que a Providência do “bom Deus” faz da história um misterioso laboratório onde as violências, os crimes, as desgraças são transformadas em méritos para os bons e em punição para os maus. Os sofrimentos dos pobres se transformam em bem-aventuranças eternas. A condição pela qual Deus tolera o mal, os sofrimentos, é o bem-recompensa que ele pode dar aos fiéis. É o que deixa entender santo Agostinho, quando diz que se Deus não pudesse tirar do mal um bem maior, não permitiria de modo algum o pecado[16]. É talvez em tal contexto que ele pode exclamar: “Felix culpa”. O fundamento de toda recompensa é que o pecado fez com que o homem merecesse tão grande ato redentor. Assim, santo Agostinho pode responder à objeção: “Quanto não é preferível que Deus deixe a cada um a faculdade de ser aquilo que ele quiser, com a condição, todavia, que os bons não fiquem sem recompensas, nem os maus sem castigo, e que este castigo sirva aos outros (…). Por que, pois Deus criou os homens que ele previa que seriam maus? Porque por trás do mal que ele os via cometer, ele considerava o bem que tiraria daí”[17].

7. Conclusão

Uma leitura dos males e dos sofrimentos que inundam a história, com as lentes da doutrina da Providência divina, se revela como leitura miraculosa da história, das interações sociais. A Providência divina é a mão de Deus, como agente exterior que toma parte ativa nos afazeres humanos. Revela-se também como a crença que o mundo é um lugar de justiça. Mas esta crença comporta alguns paradoxos: a maneira de encontrar uma justiça no sofrimento, em si mesmo, torna-se legítimo somente numa perspectiva meta-histórica, isto é, numa referência escatológica de vida eterna, como lugar de justiça última. Assim, todo sofrimento não explicável, todo sofrimento não merecido, será naturalmente compensado mais tarde, nos céus. Desta maneira, não existe nenhuma injustiça e o mundo e a história podem ser lidos de novo como uma “harmonia maravilhosa” onde tudo concorre para o bem dos fiéis.

Olhando mais profundamente, o que está por trás, como ponto que deslancha as questões, é conjuntamente a experiência e a existência do mal, da injustiça e do sofrimento sem fim na sociedade e a extraordinária capacidade de se elaborar uma teodiceia, isto é, um discurso que tenta inocentar Deus, apelando para os desígnios insondáveis da Providência. Isso é dito, em linguagem popular, de maneira muito simples: “Deus escreve direito por linhas tortas”! Isso tem servido para muitos como consolo, mas também como descompromisso de se engajar numa busca de resposta mais realista. Esta crença, ou esta teodiceia, desemboca em estratégias cognitivas e em argumentação complexa que, embora constatando a existência do mal, da injustiça e do sofrimento por toda parte, se primam em encontrar razões e explicações. Ao mesmo tempo, essas razões e explicações jogando a chave das soluções nas “mãos de Deus”, nos “desígnios da Providência”, dispensam o homem-crente de procurar as causas do mal, das injustiças, do sofrimento, fazendo-o aceitar que tudo faz parte dos caminhos, das vias, dos planos da Providência.

A atitude do fiel colocado em face do sofrimento, da injustiça da sociedade, supõe a ideia que o mundo é governado por um desígnio providencial. Talvez seja impossível para o homem suportar viver num mundo caótico, desordenado e imprevisível que deixaria na incerteza a existência de um programa de justiça, onde mérito, recompensa e punição não estejam previstos, garantidos e administrados por Deus.

Esta ideia de exigência de uma ordem dentro da desordem, da injustiça dentro de um plano de justiça, coexiste com a convicção de que o mundo, tal como ele é, é justo. Esta ideia-crença em um mundo justo, se traduz por uma espécie de certeza não criticada que, no final das contas e tudo bem pesado, as pessoas obtêm aquilo que elas merecem.

Mas a crença num mundo justo não é essencialmente a crença que se pode tornar o mundo justo. E quando esta crença se projeta para além da história, para encontrar um lugar onde a justiça é feita inexoravelmente, ela se fortifica. Num mundo inteiramente governado pela Providência, cada um tem aquilo que merece e não tem aquilo que não merece. Parece mesmo bem claro que as pessoas, às quais acontece alguma desgraça, a tenham merecido. Há, porém, circunstâncias em que, ao menos aparentemente, elas não tenham merecido, mas acontecem do mesmo modo. Então, para além das aparências, procurar-se-á nos atributos ou nos comportamentos das pessoas as “causas” ocultas destas desgraças, ou então, se transformará o infortúnio num falso infortúnio, porque o verdadeiro infortúnio é o pecado, e toda desgraça se transformará em felicidade.



[1] De Providentia. Texto estabelecido e traduzido por R. Waltz. Col. “Universités de France” Société d’Edition “Les Bellees Letres”, Paris, 1927, I, 1.

[2] Sb 3,5-6; Eclo 2,5.

[3] A Cidade de Deus, I. 29.

[4] Sobre o conceito de aretê como ideal moral para os gregos, cf. A. J. Festugière, L’IdéaI religieux des Grecs et l’Evangile, Paris, 1932, pp. 17-20.

[5] Sófocles, Philoctète, 1418-1422; cf. também o exemplo de Ulysses na Odisseia de Homero.

[6] Sb 3,1-19.

[7] Sb 5,15-16.

[8] Sb 16,24.

[9] 2Mc 7,9.13-14.

[10] A esterilidade era compreendida como um grande infortúnio pelos Hebreus, e um opróbrio (cf. Gn 30,23; Is 4,1; Lc 1,25). Todavia, o Autor declara que a piedade e a virtude na privação dos filhos valem mais do que a impiedade com uma posteridade numerosa. Sb 3,14 diz que os eunucos propriamente ditos não eram reputados para fazer parte da comunidade de Israel (cf. Dt 23,1). Eram descartados do serviço do Templo (cf. Lv 21,20). Mas, se suas vidas são santas, eles terão um lugar glorioso no Templo de Deus (cf. Is 56,3-5).

[11] In Act. Apost. 16,3; Pg. 60,131 A.

[12] Lettres à Olympias, 13, 3a. At 5,41.

[13] Sur Ia Providence 22,12; cf. Lettres à Olympias 13,1a.

[14] Lettres à Olympias 14,1b; cf. 8,10d.

[15] Ibidem 14,1a.b.c.; Sur la Providence 8,9.

[16] Santo Agostinho, Enchird. c. 11: “Deus omnipotens nullo modo sineret malum esse in operibus suis, nisi usque adeo esset omnipotens et bonus, ut bene faceret etiam de malo. Ex omnibus consistit universitatis admirabilis pulchritudo, in qua itiam illud quod malum dicitur, bene ordinatum et loco suo positum, eminentius commendat bona, ut magis placeant et laudabiliora sint, dum comparantur malis”.

[17] De Gen. ad Litt. XI, c. 12.

Roque Frangiotti