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Publicado em julho – agosto de 2017 - ano 58 - número 316

Apontamentos sobre o pontificado do papa Francisco

Por Edelcio Ottaviani

Apontamentos sobre o pontificado do papa Francisco

Este artigo discorre brevemente sobre os signos, os gestos e a linguagem de Francisco e pontua eixos transversais ou linhas mestras do seu pensamento.

Introdução

Este artigo – uma adaptação de minha fala no III Simpósio Paulus de Teologia e Pastoral, realizado em 20 de outubro de 2016, no auditório da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação, FAPCOM –  procura apresentar sucintamente as linhas mestras do pensamento do papa Francisco. O ponto de partida são pequenos elementos, não menos significativos: signos, gestos e linguagem; em seguida apontam-se eixos transversais ou linhas mestras.

Valho-me de artigos, documentos e, principalmente, das valiosas análises e sínteses realizadas pelos eminentes conferencistas do Congresso Internacional de Teologia, promovido pela Pontificia Universidad Javeriana (PUJ), de Bogotá. Ocorrido entre os dias 18 e 21 de setembro de 2016, o congresso teve a honra de ser o primeiro, em âmbito internacional, a estudar as “interpelações do papa Francisco para a teologia de hoje”. Os apontamentos ali apresentados − de Austen Ivereigh (1966), da Universidade de Oxford; de Antonio Spadaro (1966), jesuíta, diretor da Civiltà Cattolica e professor da Universidade Gregoriana de Roma; de Alberto Parra Mora (1944), professor da PUJ e assessor do CELAM; de Maria Clara Bingemer (1949), professora da PUC-Rio e conhecida de todos nós por sua eloquên­cia e rica produção teológica; e dos expositores e comunicadores dos continentes americano e europeu − são extremamente valiosos, e minhas palavras certamente os reverberarão.

Práxis de vida, documentos (conciliares, pontifícios e magisteriais de referência), fundamentação teológica, perfil eclesiológico e posicionamento sociopolítico, eis as linhas mestras que pretendo apresentar e brevemente comentar.

  1. Signos, gestos e linguagem

O que sei desse descendente de imigrantes italianos radicados na Argentina é o que foi estampado na imprensa, desde o momento em que, naquela tarde de 13 de março de 2013, quarta-feira, a fumaça branca pairou sobre os telhados da praça de São Pedro, e o que pude colher nos livros e revistas especializados. Nesse dia, esprememo-nos diante da TV situada no laboratório de línguas da PUC-SP, para o qual acorremos ao ouvir alguém, no corredor contíguo à sala onde estávamos, gritar: Habemus papam!

Na verdade, era uma antecipação do que diria logo a seguir o cardeal protodiácono Jean-Louis Tauran (1943) ao anunciar com alegria o nome que o cardeal Bergoglio se atribuiu: Francisco. Os guarda-chuvas que protegiam pessoas de todas as partes do mundo de repente subiam e desciam num movimento que me lembrou a alegria do frevo irrompendo nas noites de carnaval em Olinda e Recife. Em Roma, os relógios marcavam doze minutos passados das oito, era outono, e não verão, mas a alegria era a mesma: Evangelii Gaudium (EG), as primeiras linhas dessa encíclica começaram a ser desenhadas ali. A emissora focava o balcão de onde surgiria para o mundo aquela figura meio nono (avô) e meio papa (pai). Por um momento, pareceu-me ver João XXIII (1881-1963), o papa bom. Professores, alunos e funcionários, ao meu lado, tentavam esquecer que ele era argentino e se alegravam por ser próximo de nós, de nossa realidade. Notei logo a presença de D. Cláudio Hummes (1934), cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, ao seu lado. O mesmo cardeal que, no momento em que os aplausos irromperam na Capela Sistina, após sua eleição, sussurrou-lhe ao ouvido: “Não se esqueça dos pobres”! Deles, certamente, ele não se esqueceria, pois havia muito faziam parte de sua vida. Meu coração batia como deviam bater os corações das dezenas de milhares acampados diante da janela na qual em breve surgiria o novo papa. Ali ele diria, espontânea e jocosamente, que “os seus colegas cardeais foram buscar um papa quase bem perto do fim do mundo”.

1.1. O nome Francisco

Muito se falou sobre o inusitado nome que o prelado argentino tomou para si: Francisco. Fala-se que Paulo VI (1897-1978) teria dito que dificilmente esse nome seria atribuí­do a um papa por causa da incongruência dos protocolos pontifícios e da riqueza cultural e arquitetônica que orbitam um sumo pontífice. Quebrando todos os paradigmas, Bergoglio assumiu essa contradição para operar por dentro a renovação da Igreja e, particularmente, da Cúria Romana. Tratava-se de reintroduzir, por meio da figura emblemática do poverello, a reconstrução da Igreja, tão abalada pelos escândalos de pedofilia e corrupção, como no passado ela fora estremecida pela simonia e pela fome de riquezas e poder temporal.

O movimento kenótico, que permitiu ao Filho de Deus assumir nossa condição humana para restaurá-la, deveria ser reintroduzido na Igreja, e nada melhor do que o espírito livre e despojado de Francisco de Assis (1182-1226) para inspirar a todos nessa tarefa. Como bom jesuíta, Francisco de Roma sabe que é Jesus, com seu modo de ser, aquele que deve ocupar o centro da Igreja e do mundo, não o papa. Jesus, a palavra feita carne, é o verdadeiro reformador das estruturas violentas e injustas que nos permeiam e das quais somos convocados a nos libertar. “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”, lembra-nos o apóstolo Paulo na carta aos Gálatas (5,1).

No máximo, o que um papa imbuído do espírito franciscano pode fazer é reformar a Cúria Romana, para que ela cumpra o seu papel de facilitadora, e não de complicadora, da mensagem salvífica de Cristo. O nome atribuído a si assinalava todo um programa necessário para que a Igreja, neste século saído da infância rumo à adolescência, pudesse lutar heroica e parresiasticamente contra um século vencido pela mundialização da injustiça social (cf. EG 259).

1.2. Os gestos de Francisco

Os primeiros gestos do papa Francisco anunciavam esse propósito. De fora do vídeo, mas inteiramente tragados para dentro daquele balcão salpicado de flashes e alvo das câmeras de televisão, acompanhávamos fascinados aquele homem de branco, tendo ao pescoço a mesma cruz peitoral que havia trazido de Buenos Aires e que o acompanhara durante todo o conclave. Eram paramentos simples de um papa que se quer simples. Ao tomar como referência o fundador da Ordem dos Franciscanos, deu indícios de que se deixara interpelar pela longa tradição dos profetas da caridade, que se preocuparam com a justiça social e se fizeram próximos dos fracos, dos excluídos e dos reprovados, e que, paralelamente, levavam uma vida despojada ou até mesmo ascética. Não contive as lágrimas ao ver aquele papa bom se reclinar perante o povo na praça.

1.3. As palavras de Francisco

As palavras singelas de acolhimento, ao se dirigir em primeiro lugar à comunidade de Roma, à qual se apresentava como bispo, demonstraram seu quê de primo inter pares, o primeiro entre iguais, por questão de reverência à unidade, e não por apelo à uniformidade. Ele pediu a todos que rezassem um pai-nosso, por intercessão de Nossa Senhora, na intenção de seu antecessor, estabelecendo elo com Bento XVI, como deve fazer um verdadeiro pontifex, ou seja, um construtor de pontes que levam ao encontro de algo ou de alguém. Convidou o povo a caminhar em comunhão com seu bispo, e o bispo em comunhão com seu povo, numa relação de fraternidade, amor e confiança mútuos, estabelecendo um caminho de mão dupla, em meio ao qual as diversas instâncias eclesiais são chamadas a se ajudar, e não a dominar e oprimir.

De Roma, convidou todos a estender ao mundo esse mesmo espírito de fraternidade, traduzido num sentimento de nos sabermos parte de uma casa comum e de uma grande pátria, como ele viria a repetir insistentemente na encíclica Laudato Si’ (LS 164). Quebrando todos os protocolos, antes de abençoar o povo, pediu que este rezasse por ele e o abençoasse. Inclinou-se e permaneceu em silêncio por alguns segundos, fazendo que esse mesmo silêncio abraçasse a todos, como abraçam os peregrinos que vêm à basílica os pilares que circundam a praça de São Pedro.

O papa levantou-se e, atento ao protocolo, concedeu a indulgência plenária não só aos presentes, mas a todos, homens e mulheres de boa vontade, que acompanhavam o evento pelos meios de comunicação. Misericordiae Vultus (MV), o rosto da misericórdia divina, deixou-se antever nos gestos simples e significativos daquele que, em breve, seria reconhecido pelo povo como “o papa dos pobres”.

Depois de retirar a estola, saudou simpaticamente o povo com um leve sorriso, mostrando que, de certa forma, Nietzsche tinha razão: os cristãos atrairiam mais discípulos e missionários para Jesus e o evangelho se fossem à fila de comunhão não de cara amarrada, mas irradiando alegria. Após o hino, quebrando mais uma vez o protocolo, pediu que recolocassem o microfone e falou novamente, agradecendo a todos que ali estavam por acolhê-lo com tanto carinho e reiterando seu pedido de que não se esquecessem de rezar por ele. Espontaneamente, como fariadepois disso em muitas de suas entrevistas, disse que no dia seguinte rezaria a Nossa Senhora, para que também velasse por todo o povo, e desejou a todos uma boa noite e um bom repouso, como um pai zeloso se dirige aos filhos antes de dormir.

  1. Práxis de vida

 Maria Clara Bingemer nos lembra que Bergoglio, antes de ter sido arcebispo de Buenos Aires e papa, foi jesuíta, e, como bom jesuíta, ele não tem outro propósito além de colocar Jesus no centro. Consequentemente, esse é seu modo de ver, sentir e pensar. Segundo ela, sete são os elementos intrinsecamente ligados a Francisco e a sua espiritualidade inaciana.

a) A centralidade da pessoa de Jesus. Os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola (1491-1556) visam ao fortalecimento da alma. Assim como treinamos o corpo para a prática de determinada atividade ou esporte, com a finalidade de atingirmos um fim, treinamos o espírito para nos aproximarmos das bem-aventuranças. Como dizem os padres gregos, é uma forma de “equipagem” de nosso ser (paraskeué) para lutar contra tudo o que nos separa dos valores passados e vividos por Jesus Cristo, fonte de vida e de beatitude.

Os exercícios espirituais nos convidam, numa primeira semana, a contemplar nossas fraquezas e nossos pecados. Da segunda semana até a quarta, a contemplar a vida de Cristo, nosso Senhor, até o domingo de Ramos (2a semana), passando pela contemplação de sua Paixão e morte (3a semana) até a Ressurreição e a Ascensão (4a semana). Ao contemplar a vida de Jesus, passamos a colocá-lo como referência maior em nossa vida e a fazer com que o que nele há passe, pouco a pouco, a ser integrado em nossa forma de ser, como instrumento de libertação de nossos pecados.

Portanto, Jesus é o centro a partir do qual podemos olhar para tudo o que nos circunda, a fim de discernir o que condiz ou não com os valores e ensinamentos desse centro. Tal discernimento deve ser capaz de propor uma forma de vida, para nós e para aqueles que acolhem os atos e as palavras de Jesus como fonte da vida, de alternativa à sociedade do consumo, do descarte e da degradação do meio ambiente em que vivemos (cf. LS 8-13). Assim, “ver, julgar e agir” encontram seu aperfeiçoamento no “contemplar, discernir e propor”, ou, no caso das situações em que a fragilidade humana impede a concretização ideal dos princípios evangélicos, “acompanhar, discernir e integrar, de forma gradual”, adotando o caminho da misericórdia e da integração, como foi a prática da Igreja desde o Concílio de Jerusalém (Amoris Laetitia, n.296).

b) O testemunho. Ele é, pois, a força de atração à perfeição evangélica. Nesse sentido, a teologia de Francisco, no dizer de Maria Clara Bingemer, é feita mais de testemunhos do que de textos.

c) Os pobres, por serem eles os loci (locais) da esperança evangélica: “bem-aventurados os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3).

d) A cultura do encontro. Compartilhar com compaixão as esperanças e os sofrimentos dos pobres, como contemplamos os sofrimentos e as esperanças de Cristo, conduz-nos à superação e à libertação de nossos pecados em âmbito individual e social.

e) Antropologia encarnada. Ver e contemplar as relações entre as pessoas e coisas; entre pessoas e pessoas; e, sobretudo, entre os seres humanos e tudo o que os cerca, para perceber que o nosso futuro e o futuro das próximas gerações passam por nós.

f) Os santos. Eles nos ajudam a nos aproximarmos de Jesus, uma vez que já fizeram esse caminho de aproximação e podem nos auxiliar, com suas experiências, a nos avizinharmos do mestre de Nazaré.

g) Metodologia espiritual. Tal aproximação é fruto de um processo constante de conversão.

Construir pontes

O conferencista Austen Ivereigh, além das raízes jesuíticas salientadas tanto por Maria Clara Bingemer quanto por Antonio Spadaro, aponta para raízes histórico-culturais de Francisco: a visão nacionalista-continental, que deseja quebrar o muro que separa Cuba dos EUA; a noção de pátria grande, expressa em seu discurso por ocasião do Bicentenário da República Argentina, em 8 de julho de 2016, exaltando o processo de libertação e independência das colônias latino-americanas iniciado por José de San Martin (1778-1850) e Simon Bolivar (1783-1830); a Doutrina Social da Igreja, que o levou na juventude a avizinhar-se do peronismo; e a teo­logia do povo, no respeito à cultura e ao protagonismo das camadas populares. Entre os expositores (painéis), Gilles Routier (1953), da Universidade de Laval, Canadá, ao tratar da linguagem performática de Francisco, dirá que: “il fait le Vatican II, il n’en parle pas!” (ele aplica o Vaticano II, não faz comentários sobre ele).

Certas frases de Francisco a respeito dos mais variados assuntos desconcertam. Elas parecem, no entanto, ser ditas para estremecer nossas “certezas”, certas ideias cristalizadas que não admitem revisão, como o lugar das mulheres e dos homossexuais na Igreja; parecem indicar um novo pensamento, quem sabe uma nova postura diante de determinados fatos ou pessoas. John Austin, teórico da linguagem, lembra-nos que uma sentença performativa (performative sentence) ou um enunciado performativo (performative utterance) deriva sem dúvida nenhuma de “executar” (perform), verbo habitualmente relacionado, em inglês, ao nome “ação”, o qual, por sua vez, “indica que a finalidade do enunciado é a execução de uma ação” (AUSTIN, 1962, p. 6). Quando Francisco fala intempestivamente uma frase de efeito, ele está indicando que é preciso ter uma atitude diferente daquela que comumente se tem.

  1. Documentos (conciliares, pontifícios e magisteriais de referência)

Ao tratar das “Experiências eclesiais a partir do Concílio Vaticano II”, que marcaram o ministério episcopal de Bergoglio, o professor e assessor do CELAM Alberto Parra Mora salienta o papel da memória e da profecia nos escritos, pronunciamentos e atitudes de Francisco. Alberto Parra vê no papa a introspecção e a encarnação de certas noções conciliares, como Igreja povo de Deus e aggiornamento (diálogo aberto e franco entre a Igreja e o mundo no qual ela está inserida), ainda presentes na memória do povo e contidas nas constituições Lumen Gentium e Gaudium et Spes; aponta para a transformação, operada durante o Concílio, da noção de uma Igreja piramidal para uma Igreja circular e o movimento pericorético, que perfaz a relação entre as pessoas da Santíssima Trindade, como paradigma do modelo circular. Gilles Routier, por sua vez, faz-nos notar a incidência de outra noção empregada por João XXIII no discurso de abertura do Concílio e diluída, explícita e implicitamente, em vários dos documentos conciliares: “sinais dos tempos”, aplicada 31 vezes na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia. Em Laudato Si’, ao refletir sobre o cuidado que todos devemos ter com a mãe Terra, nossa casa comum, Bergoglio se serve das argumentações de seus antecessores: Paulo VI, na Pacem in Terris (1971); João Paulo II (1920-2005), em Redemptor Hominis (1979) e Centesimus Annus (1991); Bento XVI (1927), no Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé (2007) e na Carta Apostólica Caritas in Veritate (2009). Lança mão também de documentos elaborados pelas Conferências Episcopais do Brasil, EUA, França, Filipinas e Congo, entre outros. No que se refere à Gaudium et Spes, saltam aos olhos as múltiplas citações do Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, ocorrida em Aparecida, em maio de 2007, do qual Bergoglio foi o presidente da Comissão de Redação.

  1. Fundamentação teológica

Sinivaldo Tavarez, ofm, da FAJE de Belo Horizonte, ao apresentar um painel sobre a Laudato Si’, do ponto de vista do método e sua relação com o conteúdo teológico, aponta para o fato de que Francisco trabalha o cuidado com a casa comum sob um paradigma epistemológico novo, ou seja: reconhecer, compreender, curar. Não se trata, portanto, de conhecer para dominar, mas conhecer para salvar (curar). Como vimos, a postura do papa Francisco é, em primeiro lugar, de contemplação (ver). Ter uma atitude contemplativa. O papa tem conhecimento da índole do mistério a que todos são chamados a contemplar. Nesse modo de ser, há um tom de esperança provocativa que se articula a textos extremamente críticos com belas poesias. Há páginas de reverência à totalidade mistérica. O papa tem consciência da complexidade que atravessa nossa realidade. Somos vítimas da fragmentação. O pensamento não dá conta do todo do mistério. Em vez de conjunção e de disjunção somente, o papa aposta numa direção de compreensão (cum-plexus). O método de disjunção e conjunção (vantagens e desvantagens) se aplica, por exemplo, na análise da tecnociência. Esta tem tanto o poder de enriquecer o ser humano quanto de empobrecê-lo, quando impõe sua maneira de ver o mundo, sob o crivo do calcular e do classificar (taxinomia), e desconsidera outras formas de saber e outros valores diferentes que não entram na lógica do ter, explorar, consumir e descartar. Francisco nos interpela a tomar os problemas não mais sob uma ótica simplista e expõe a necessidade de uma nova metodologia que nos faça, como se diz em francês, connaître/co-naître (conhecer/nascer junto). Ele nos propõe um conceito de pensar como curar, uma vez que penser, também em francês, pode tanto significar pensar quanto ter cuidados por alguém, ao se aproximar do panser (mettre une panse/colocar um curativo). Pensar juntos para curar o outro, com vistas ao cuidado com a nossa casa comum. O papa articula essas dimensões importantes em torno do olhar de Jesus, que tanto pensa quanto cura. Para tanto, basta contemplar a passagem que antecede a ressurreição de Lázaro, na qual Jesus diz: “Nosso amigo Lázaro dorme, mas eu vou despertá-lo” (Jo 11,11).

Na Laudato Si’, há uma distinção entre o clamor da terra e o clamor do pobre. Embora distintos, eles fazem parte de uma única e complexa crise social e ambiental (capítulos V e VI). É preciso, portanto, aplicar o método de disjunção e conjunção para depois integrar. Desafios complexos demandam práticas e saberes integrais. No âmbito da teologia sistemática, há uma aproximação das questões que dizem respeito à teologia prática, quando o papa, sobretudo, toca no tema da educação e da espiritualidade ecológicas. Sem conversão ecológica, diz, nossa conversão não será integral. Maria Clara Bingemer destaca as quatro características próprias à teologia de Francisco: encarnada, missionária, integradora e em movimento. Ele deseja uma teologia que se repensa ao pensar o mundo, segundo os critérios revelados por Jesus Cristo, como primícias do reino de Deus.

  1. Perfil eclesiológico

Alberto Parra já nos fez antever as implicações eclesiológicas da transformação de uma Igreja piramidal numa Igreja circular. Com Francisco, a circularidade trinitária é o paradigma por excelência para a concretização de um modus vivendi eclesial que esteja alinhado com as exigências de um mundo cada vez mais plural e globalizado. A circularidade trinitária é o desenho do plano de salvação: de uns em direção a todos e de todos em relação a cada um, sem esquecer que “o todo é superior à parte”. Assim diz Francisco: “É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefício a todos nós” (EG 234). O modelo aqui proposto já não é mais a esfera (círculo), mas o poliedro, pois este reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm sua originalidade. Com Francisco, é retomada a noção de Igreja Povo de Deus, tão presente no segundo capítulo da Lumen Gentium e tão mitigada, sobretudo após o Sínodo de 1985, segundo as análises de José Comblin. A fala e os atos de Francisco apontam cada vez mais para um desenho ministerial circular segundo o qual a Igreja passa a ser, em Cristo, um instrumento de inclusão dos povos no mistério da Santíssima Trindade.

Spadaro traduz a visão de uma Igreja integradora no mistério trinitário, pensada e desejada por Francisco, por meio das expressões por ele mesmo disseminadas: Igreja samaritana, pois Jesus quis que a sua Igreja estivesse aberta a todos; Igreja como hospital de campanha, pronta para salvar os feridos como que num campo de guerra; Igreja em saída, alicerçada numa pastoral de fronteiras. Para Francisco, segundo Alberto Parra, o Concílio reformulou mais a eclesiologia do que a Igreja. Para que se possa reformulá-la efetivamente, é preciso colocar Jesus no centro, não somente como objeto de estudo e expressão simbólica e litúrgica, mas principalmente como fonte inspiradora de uma nova postura na Igreja e no mundo.

Quanto a apresentar-se como bispo de Roma e citar, como nenhum outro de seus antecessores, os documentos das Conferências Episcopais e de outros líderes religiosos como o patriarca Bartolomeu (cf. Laudato Si’, n. 8-9), Francisco dá a entender que o princípio de colegialidade, recuperado pelo Concílio e colocado em segundo plano nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, volta a fazer parte da agenda pontifícia e ao modus operandi da Igreja.

  1. Posicionamento sociopolítico-econômico

Austen Ivereigh apresenta cinco linhas que, no seu entender, norteiam o pontificado de Francisco: a) evangelização e cultura; é notável sua devoção e, ao mesmo tempo, o respeito para com a virgem mãe de Deus presente na cultura religiosa de diferentes povos, pois preservar a herança religiosa do povo é preservar sua memória: Guadalupe (México), Aparecida (Brasil), Virgen de la Caridad (Cuba); b) a misericórdia, como ferramenta pastoral e missionária; c) a Cultura do Encontro, como base de um autêntico pluralismo, baseado na solidariedade, no diálogo e na inclusão; d) a renovação da política, no combate à corrupção, às práticas antidemocráticas e à exploração do povo pelo poder do capital (ver a homilia na praça Mayor de Cuba diante do dirigente Raúl Castro [1931]); e) colegialidade latino-americana e a Pátria Grande, com a elaboração de uma crítica à tendência centralista da União Europeia, apelando à noção de Pátria Grande, favorecendo a convivência fraterna e a solidariedade entre os povos. Segundo Ivereigh, é chegada a hora de a cultura e a teologia latino-americanas saírem de seu nicho e se expandirem além de suas fronteiras.

 

Conclusão

Ao evocar os primeiros gestos e as primeiras palavras de Francisco, no dia em que despontou para o mundo do balcão sobre a praça de São Pedro, e ao passar pelos eixos que têm sustentado o seu pontificado, espero ter trazido alguma contribuição não somente para as pessoas que participaram daquele rico simpósio, mas também para os leitores da Vida Pastoral (padres, religiosas, religiosos, ministras e ministros da Palavra e parte do povo de Deus), desejosos de conhecer as linhas mestras do pensamento do papa no intuito de colocá-las em prática.

Bibliografia

AUSTIN, J. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962.

IVEREIGH, A. Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical. Prefácio de Aura Miguel. Amadora (Portugal): 20&20, 2015.

PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

______. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Loyola, 2015.

______. Amoris Laetitia: sobre o amor na família. São Paulo: Paulus/Loyola, 2016.

SPADARO, A. Intervista a papa Francesco. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/francesco/it/speeches/2013/september/documents/papa-francesco_20130921_intervista-spadaro.html>. Acesso em: 5 dez. 2016.

 

Edelcio Ottaviani

Edelcio Ottaviani é presbítero, doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain (UCL) e mestre em Teologia pela PUC-SP. É professor do Departamento de Teologia Fundamental da PUC-SP e reitor do Centro Universitário Assunção, UNIFAI. Atua pastoralmente na paróquia São João Batista do Brás (Arquidiocese de São Paulo). E-mail: [email protected]