Roteiros homiléticos

13 de abril – Quinta-feira Santa (Ceia do Senhor)

Por Celso Loraschi

I. INTRODUÇÃO GERAL

O povo de Israel faz memória dos atos libertadores de Deus ao longo de sua história. A Páscoa israelita é celebração da memória do grande acontecimento do êxodo. Deus suscita o movimento dos escravizados e os põe em caminhada rumo a uma terra sem males. A graça divina está ligada com a disposição humana. Cada família, unida à comunidade, celebra a libertação num espírito de caminhada e compromisso (I leitura). As comunidades cristãs reúnem-se frequentemente para celebrar a memória de Jesus morto e ressuscitado por meio da ceia sagrada. Esta deve refletir o relacionamento comunitário baseado na solidariedade, na justiça e na fraternidade. A eucaristia é a grande graça que proporciona comunhão com o Senhor e com o próximo (II leitura). Jesus, o Mestre e o Senhor, deixou o exemplo de serviço humilde como caminho de uma sociedade fraterna. Os discípulos devem praticar o que Jesus ensinou, lavando os pés uns dos outros (evangelho). Nós, como seus seguidores, não podemos quebrar a corrente do amor que nos une uns aos outros. Como fez Jesus, somos convidados a entregar humildemente a nossa vida, promovendo as condições de vida digna para todos.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

  1. I leitura (Ex 12,1-8.11-14): Celebrar a Páscoa no espírito de caminhada

O relato da celebração da Páscoa israelita está inserido no contexto do movimento de libertação da escravidão no Egito. É a atualização de um ritual antigo, realizado entre os pastores, para reconciliar-se com a divindade, afastar os maus espíritos e, assim, assegurar o bem-estar das famílias com seus rebanhos. A experiência da libertação dos escravos no Egito torna-se a marca registrada de sua própria identidade. O povo de Israel nasceu com o êxodo. Diversos grupos de diferentes origens unem-se ao redor de um projeto de liberdade e autonomia. Pouco a pouco, vai se firmando a consciência de pertença ao “povo de Deus”. De fato, somente sob a intervenção divina foi possível a caminhada de libertação. Essa certeza atravessa as gerações, conforme constatamos nos diversos escritos do Primeiro Testamento.

A celebração da Páscoa foi sendo adotada por Israel como memória exemplar do acontecimento fundador do êxodo. Ela atualiza a presença de Deus na história do povo. É uma presença atenta e atuante na defesa da vida das pessoas oprimidas. Celebrar a memória do êxodo, portanto, significa reavivar a consciência de ser um povo abençoado. Significa reanimar o povo para a fidelidade à aliança com Deus, que é companheiro na caminhada. É comprometer-se, no presente, com o processo de libertação. A Páscoa, portanto, é memória subversiva.

Unindo elementos antigos e novos, a narrativa da Páscoa enfatiza a necessidade da celebração por ordem divina, num dia preciso, no “primeiro mês do ano”. Corresponde ao início da primavera, tempo em que desabrocha a vida nova. O cordeiro é essencial nessa celebração: é a oferta de cada família e de toda a comunidade, em reconhecimento à bondade divina. Para isso, é escolhido e preparado um cordeiro, sem defeito, para imolá-lo. A integridade física do animal é o que de melhor o povo pode ofertar a Deus como sinal de gratidão por tudo o que ele oferece.

O sangue para marcar a porta da casa tem o sentido de garantia de vida para as pessoas que nela habitam. É um povo eleito sob a proteção de Deus. Não será atingido pela última praga, ou seja, a morte dos primogênitos (a narrativa da Páscoa está situada entre a penúltima e a última praga). Assim, o povo terá um futuro garantido sob as bênçãos divinas.

A refeição é feita num clima de urgência – rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão –, atualizando assim a movimentação do povo escravizado em vista de sua libertação. Com ervas amargas, para lembrar a vida difícil do povo enquanto escravo no Egito; com pães ázimos, pois a pressa não permite que o fermento possa levedar a massa. O pão puro é símbolo de fidelidade ao projeto de libertação, que inclui a caminhada pelo deserto, animados pelo sonho da terra prometida. Como se vê, o ritual da Páscoa é memória ligada ao compromisso de caminhar na conquista de um mundo de liberdade, paz e dignidade.

  1. II leitura (1Cor 11,23-26): A instituição da eucaristia

O texto da liturgia de hoje corresponde ao relato mais antigo da última ceia de Jesus. São Paulo revela ser a transmissão do que ele mesmo recebeu do Senhor: trata-se da tradição dos apóstolos, a qual, por serem eles testemunhas oculares de Jesus histórico, é respeitada com veneração.

A ceia celebrada pelas comunidades cristãs primitivas não seguia fórmulas fixas e uniformes. De modo comum, era realizada em forma de refeição, ocasião em que se fazia – comemorando a sua entrega – a memória de Jesus, cujo corpo é representado pelo pão e pelo vinho. É celebração da nova aliança, inaugurada por Jesus, da qual os cristãos se tornam participantes.

No texto da liturgia de hoje, percebemos os elementos essenciais da eucaristia. Jesus a instituiu como memória de sua morte. É sacrifício (= ação sagrada), dom total de Jesus, em consciência e liberdade, pela vida do mundo. É sustento para os que dela participam, comprometidos na vivência do amor, até que Jesus venha.

É bom não esquecer o contexto imediato em que o texto está inserido (11,17-24). Paulo pronuncia-se em forma de reprimenda. A Igreja de Corinto reunia-se, com o propósito de participar da ceia, sem o principal requisito para a celebração: a solidariedade com os pobres. A divisão existente na comunidade revelava uma conduta egoísta e discriminatória. A participação do mesmo pão e do mesmo cálice é comunhão com o Corpo do Senhor, a qual não pode estar dissociada da comunhão com os irmãos, ainda mais com o agravante de serem pessoas necessitadas.

  1. Evangelho (Jo 13,1-15): Jesus, modelo de servidor

O Evangelho de João não relata a última ceia de Jesus, como fazem Paulo e os evangelhos sinóticos. Supõe que as comunidades já a conheçam. O que ele faz é introduzir um gesto original de Jesus após a ceia: o lava-pés. Atenta para o fato de Jesus estar ciente da chegada da “hora”, o momento decisivo de sua missão. É o seu êxodo definitivo. Pela cruz, deverá deixar este mundo e ir para o Pai. Os discípulos, porém, continuarão nele. Jesus os ama até o fim e contará com eles para que sua obra tenha prosseguimento.

O gesto do lava-pés é, por excelência, o modelo de comportamento que os seguidores de Jesus deverão seguir. O Mestre e Senhor se faz servo dos seus discípulos, também daquele que já consentira em traí-lo. O seu amor é incondicional, como revelara em toda a sua missão. Por isso, rompera com todas as instituições que discriminam e matam. Chegou sua “hora”, e ele a acolhe com plena consciência e responsabilidade. Entrega sua vida não arrastado pelas circunstâncias, mas na liberdade, demonstrando o seu amor até o extremo, coerente com sua opção de fidelidade ao plano de salvação de Deus.

O lava-pés simboliza o amor como doação plena. Dá-se em forma de serviço. Cai por terra todo espírito de poder. Caem por terra a vingança e toda espécie de violência. Jesus inverte os valores dominantes na sociedade. Constitui uma nova comunidade humana, cuja nota característica é o serviço mútuo. Pedro, o líder do grupo, num primeiro momento não consegue entender. É representante dos que ainda procuram um Messias triunfalista, distante das realidades conflituosas deste mundo. O seguimento de Jesus, porém, dá-se pelo caminho da “cozinha” e do “avental”. Tudo o que simboliza o lava-pés, cuja síntese é o amor-serviço, leva à participação da mesma vida de Jesus. Pedro entenderá o verdadeiro significado após a morte do Mestre. Por causa de sua opção pelo seguimento de Jesus, será também perseguido e partilhará do mesmo destino dele.

A comunidade cristã não pode caminhar na desigualdade. Não é uma comunidade de chefes e súditos, e sim de servidores. A pergunta de Jesus após o lava-pés transforma-se em permanente desafio para todos nós: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer? (…) Vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz”.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– Celebrar a Páscoa é pôr-se em caminhada. O povo de Israel reconhece a presença libertadora de Deus à medida que se organiza para libertar-se da opressão. Cada família é chamada a entrar no grande mutirão pela liberdade e pela vida. Cada pessoa é chamada a participar do êxodo, caminho para uma terra de paz e justiça. A fraternidade depende do empenho de cada um de nós. O povo de Deus tinha pressa para libertar-se. Hoje também é urgente a necessidade de nos unirmos, tendo em vista vida digna para todos, com trabalho, justiça social, sem exploração ou formas atuais de escravização. O Tríduo Pascal é tempo propício de reconhecer a presença salvadora de Deus em nosso meio e de renovar, por meio de gestos concretos, a nossa fidelidade ao seu plano de vida digna a todos os povos, habitantes desta casa comum chamada Terra.

– Celebramos hoje a instituição da eucaristia. É o próprio Jesus que se doa inteiramente para a vida do mundo. Participar da eucaristia é acolher, com gratidão, a grande graça de Jesus, que nos alimenta com seu próprio Corpo e Sangue. É comprometer-se a viver na comunhão com Deus e com o próximo. É responsabilizar-se pela administração justa dos bens. Participarmos juntos da mesma mesa sagrada é nos reconhecermos como irmãos. São Paulo lembra aos cristãos de Corinto e a nós hoje que eucaristia e solidariedade estão vinculadas. O amor efetivo às pessoas que sofrem é o requisito fundamental para que a eucaristia se torne sacramento de salvação.

– Jesus é o modelo do verdadeiro amor. Ele, antes de sua morte, institui a nova comunidade humana, representada pelos discípulos. Pelo gesto do lava-pés, revela-lhe o caminho que garante as relações de igualdade e justiça: o serviço mútuo. O Filho de Deus se faz servidor. Somos chamados a viver como seus discípulos missionários. Jesus nos chama deste modo: “Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão… Vocês devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz”. Como isso se concretiza no cotidiano da vida de cada um de nós?

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).
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