Roteiros homiléticos

1º de janeiro – SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

No início era a bênção!

I. Introdução geral

No início de um novo ano muitas vezes somos relembrados de que devemos adequar ou, até mesmo, readequar nossas expectativas; o ideal, dizem, é que tenhamos nossos corações e mentes tomados pela plenitude da esperança. Não há como discordar dessas palavras. No entanto, faz-se necessário refletir que não existimos sozinhos. Nossas esperanças e expectativas não devem ser pensadas e construídas sem a presença do outro que nos acompanha na história de nossas vidas. Todo ano-novo também deveria ser um novo ano para a comunidade da qual fazemos parte. Quando nos pensamos de forma plural, estamos dizendo aos outros que também eles fazem parte das nossas esperanças e expectativas e que o novo ano que se apresenta não poderá ser construído sem ou até mesmo contra eles. Pensar nos outros é sair de nós mesmos e romper as estruturas que criamos ao nosso redor e que nos impedem de conhecer novas pessoas e com elas interagir. Quando caminhamos em direção aos outros, não somente conhecemos novas pessoas, mas, principalmente, passamos a conhecer melhor a nós mesmos.

II.Comentários aos textos bíblicos 1. I leitura: Nm 6,22-27

Todo ano-novo deveria ser iniciado sob os auspícios de uma bênção. Mas devemos sempre pensar a bênção sob dois aspectos que estão extremamente ligados entre si, ou seja, devemos pensar a bênção de forma individual e comunitária. Somos indivíduos e, por isso, trazemos dentro de nós anseios profundos. Porém, somos também comunitários – vivemos em comunidades – e, assim, a bênção deve ser partilhada dentro do grupo. Nela não há espaço para projetos individualistas.

A beleza da primeira leitura reside no fato de que a bênção é partilhada – “vocês abençoarão” – de maneira gratuita. Quem abençoa, nesse sentido, não se aproxima das outras pessoas fazendo cálculos do que poderia ganhar. O abençoador não transforma a bênção em mercadoria. Infelizmente vivemos imersos numa cultura capitalista que estimula o consumo e, por conta disso, costumamos colocar etiquetas em tudo, até mesmo no sagrado. Muitos, hoje, compreendem Deus como se fosse um grande shopping center que oferece produtos a preços vantajosos!

Aquele que abençoa tem o privilégio de ser um instrumento que o aproxima das outras pessoas, ajudando a tecer a bênção com três fios de ouro: a bênção do abrigo e da proteção, a bênção da misericórdia de Deus e a bênção da paz. Nessa perspectiva, Deus nos chama a olhar primeiramente para as pessoas que nos rodeiam e, dessa forma, trazer uma pergunta no coração, que se faz constante: como poderia eu ser bênção de Deus na vida dos meus irmãos e irmãs?

2. II leitura: Gl 4,4-7

Todos aqueles que creem em Cristo vivem uma novidade de vida. As coisas velhas ficaram para trás e tudo se fez completamente novo. Em Jesus se insere a certeza da construção de um novo programa de vida, ou seja, de um novo modo de viver. Por causa de Jesus, somos chamados a viver outro estilo de vida. Nele também se apresenta o Espírito do Filho que clama em nós com a linguagem carinhosa da criança: “Abba, Pai”. Trata-se de uma relação especial com Deus. Somente aqueles que se relacionam com Deus podem chamá-lo de Pai. E por causa dessa nova relação é que podemos estabelecer novas formas de relacionamento.

Em Jesus todas as relações são renovadas: de escravos para filhos; de subjugados pela lei para vida em liberdade; de desprovidos de qualquer valor para herdeiros. As coisas velhas já se passaram e tudo vai se fazendo novo. Uma nova realidade se instala na vida dos fiéis que se refletirá na própria maneira de ser e de viver. O que Jesus fez por nós jamais outra pessoa poderia fazer. Nele e por causa dele somos transformados e alcançamos a plenitude do ser humano. É importante e salutar recordar que a posição que alcançamos em Jesus não é para nos tornar Super-Homens e Mulheres Maravilhas, e sim para que a vida de Cristo reflita novas formas de relacionamento social por meio das quais nos relacionamos com os outros da mesma forma que Cristo se relacionou conosco. Cristo não nos liberta para que sejamos supercristãos, e sim para que nos humanizemos a cada dia. Na verdade, não existe essa categoria de supercristãos. O que de fato existe é aquele/a que, ao aderir a Jesus Cristo, se torna servo/a a fim de viver o discipulado e ser missionário/a do Reino.

3. Evangelho: Lc 2,16-21

A profundidade da espiritualidade de Maria é impressionante. Ela não somente possui imensa preocupação consigo própria, mas também com o menino Jesus. Por isso, leva-o a Jerusalém para apresentá-lo a Deus. Ela é a primeira e a maior de todas as catequistas. Mas, para ela, a catequese tem início na própria casa. De nada adianta a preocupação com tudo aquilo que é externo quando deixamos de lado aquilo que está próximo e não lhe damos a devida atenção. Há uma igreja doméstica na casa de Maria e, com a consciência de que tudo começa na própria casa, ela pode caminhar em direção à casa de Deus. Aqui se encontra a chave da questão: o ponto de partida é que se faz vital. Maria somente podia olhar para o templo depois que lançasse seu olhar para a sua própria casa. De que adiantaria ter um altar na casa de Deus e não edificar um altar na própria casa? Maria não é displicente. Ela é sabedora de que o relacionamento com Deus tem início muito antes de chegar ao templo. Quantas e quantas vezes desejamos catequizar os outros e nos esquecemos de nossas próprias casas.

No entanto, Maria também conhece o caminho que leva ao templo. Ela não resume sua vida espiritual aos espaços de sua casa. Reconhece tal importância, é claro. Mas tem consciência de que é preciso algo mais. Por isso, sai de sua casa e caminha em direção a Jerusalém. Ela não se esquece do templo. Provavelmente muitos cristãos hoje se esquecem de Jerusalém e percorrem outros caminhos. E ao se esquecerem do caminho que leva à Igreja, também deixam de construir parte importante de sua espiritualidade e de seu compromisso com o discipulado de Jesus, No entanto, para Maria, não havia outro caminho além daquele que levava para a casa de Deus. A experiência de Maria é contundente: devemos pegar o caminho que leva à casa de Deus e aí nos apresentar a Deus e apresentar a ele todos os que nos acompanham.

Possivelmente, hoje, Maria ficaria com o coração entristecido ao nos ver trilhando por tantos caminhos que não nos aproximam da casa de Deus e até, quem sabe, nos afastam. Para ela não devia haver, naquele momento, nada mais emocionante e maravilhoso do que trilhar o caminho que levava de sua casa ao templo de Jerusalém. E, mais do que isso, um caminho que ela trilhava acompanhada. Maria não tinha um projeto pessoal. Era um projeto familiar e integrador. A unidade da família sagrada também acontecia pelo caminho, ou seja, quando juntos buscavam a Deus.

Pelo caminho ia toda a sagrada família. Unidos faziam o mesmo trajeto, comungavam do mesmo ideal e da mesma espiritualidade. Para ela, não era possível iniciar a vida sem Deus nem continuar a vida negando a Deus. Por isso, juntos percorriam o caminho que levava ao encontro do Deus da vida. Há unidade na diversidade. Maria, José e Jesus. Tão diferentes e tão iguais. Tão diferentes e buscadores do mesmo alicerce que fundamentava aquilo que eram: uma família.

O comportamento de Maria é exemplar. Não mede esforços para indicar a seu filho que o único caminho verdadeiro é aquele que nos conduz ao coração do Pai. Nada mais belo do que ver uma mãe ensinando a seu filho o caminho que leva à fonte de toda sabedoria, vida e salvação. Maria é a guia e a catequista de seu filho. Nela, ele encontra não somente a mãe, mas também a educadora que o conduz para o interior do próprio Deus. É interessante observar que Maria é guia que de fato cumpre o papel de guia, isto é, ela vai junto! Não é muito difícil encontrar pais que desejam fortemente que seus filhos frequentem a Igreja, desde que percorram o caminho sozinhos. Nesse caso os pais não agem como guias, e sim como antiguias e, por que não dizer, antipais.

III. Pistas para reflexão

- A cultura contemporânea muitas vezes e insistentemente nos leva a viver uma espiritualidade desvinculada da comunidade. Nessa espiritualidade reina o individualismo e a busca incessante do sucesso pessoal, mesmo que tal sucesso signifique prejuízo para outras pessoas. De que vale o sucesso construído sobre o fracasso de outros? Seria possível viver o evangelho sem a comunidade? Como ser cristão e negar tantos irmãos e irmãs que formam o Corpo de Cristo?

- Vivemos tempos diferentes. Em muitos momentos até mesmo parece que o evangelho foi falsificado e/ou transformado em qualquer outra coisa que não o evangelho gratuito de Jesus. Numa sociedade em que o valor econômico determina o preço de todas as coisas, até mesmo a bênção de Deus passa a ser vendida como se fosse produto que pode ser adquirido nas prateleiras de um supermercado. Seria, por acaso, possível colocar uma etiqueta com preço nos atos graciosos de Deus?

Luiz Alexandre Solano Rossi

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no Programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUC-PR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó e Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: [email protected]