Roteiros homiléticos

1º de maio – 6º DOMINGO DA PÁSCOA

Por Celso Loraschi

A HUMANIDADE NOVA, MORADA DE DEUS

I. INTRODUÇÃO GERAL

Quem ama Jesus ouve sua Palavra. Meditada e praticada em comunidade, a Palavra produz muitos e bons frutos. O Espírito Santo, dom de Deus, recorda aos discípulos tudo o que o Mestre ensinou. Uma comunidade que ama é, por excelência, o espaço sagrado, pois nela habita a Trindade. Onde mora Deus, há a verdadeira paz (Evangelho). O Espírito Santo também inspira e fortalece os discípulos de Jesus para continuarem sua missão. Como anunciadores da verdade do Evangelho, encontram oposições por parte dos que seguem as propostas do mundo. A paz de Deus é diferente da paz que o mundo dá. A paz de Deus não é ausência de conflitos. No dinamismo do Espírito Santo, os seguidores de Jesus precisam encontrar-se, dialogar, discernir e decidir pelo melhor caminho (I leitura). As comunidades cristãs são convidadas a acolher a “nova Jerusalém”, a cidade da paz, que desce do céu, fruto da graça divina e da fidelidade dos que ouvem sua Palavra. É a nova humanidade, cujos alicerces se encontram no testemunho dos apóstolos, os quais viram, acolheram e transmitiram a Palavra da vida: Jesus Cristo morto e ressuscitado (II leitura). Iluminados e encorajados pelo mesmo Espírito Santo, continuamos a testemunhar a fé em Jesus, reunindo-nos para rezar, para comungar a “Palavra-eucaristia”, para dialogar, discernir e viver o amor, conscientes de que a Trindade fez sua morada no meio de nós.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

 1. Evangelho (Jo 14,23-29): Ser humano, morada de Deus

A redação do Evangelho de João se dá ao redor do ano 100. Constitui uma reflexão pós-pascal das comunidades joaninas. O texto deste domingo faz parte do discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos. Percebe-se íntima relação entre Jesus e Moisés. Assim como Moisés fora enviado para guiar o seu povo rumo à terra prometida, Jesus foi enviado por Deus para dar a vida à humanidade. Assim como Deus se manifestou no Êxodo por meio de dez sinais, Jesus realiza sete sinais libertadores. Assim como Deus revelou, por meio de Moisés, os Mandamentos como estatutos para o povo de Israel, Jesus revela o Mandamento do Amor, estatuto do novo povo de Deus, conforme o texto do domingo passado.

Há, porém, uma novidade radical, sintetizada no texto da liturgia de hoje. É fruto da experiência de fé, ao longo da caminhada das comunidades joaninas, que iluminou a compreensão da pessoa e da proposta de Jesus: ele e o Pai vivem intimamente unidos. O que Jesus diz e faz é a própria expressão de Deus Pai. Jesus e o Pai são UM. A intimidade amorosa entre ambos estende-se às pessoas que praticam o amor. Nelas Deus faz sua morada. O mesmo foi dito do Espírito Santo (v. 17). Então, a pessoa que crê torna-se morada da Trindade. Cumpre-se a antiga promessa da habitação de Javé no meio de seu povo: “Estabelecerei a minha habitação no meio de vós e não vos rejeitarei jamais. Estarei no meio de vós, serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (Lv 26,11s). Em João, porém, é ainda mais profundo: a habitação divina não se dá apenas “no meio”, mas “dentro”. É uma experiência única e maravilhosa.

A comunidade cristã, portanto, é a expressão viva de Deus-Amor. As pessoas participantes ouvem a sua Palavra, que é o próprio Jesus feito carne, presente no meio delas. O Espírito Santo, dom do amor de Deus, recorda todos os ensinamentos de Jesus. Como ouvintes e praticantes da Palavra, unidas na fé e no amor, as comunidades cristãs transformam-se num espaço da paz e da alegria de Deus. O termo “paz”, na Bíblia, expressa a síntese dos bens necessários para uma vida plena, tanto temporais como espirituais.

2. I leitura (At 15,1-2.22-29): Conflitos fazem parte da caminhada

Após a primeira viagem missionária, Paulo e Barnabé permaneceram algum tempo na comunidade cristã de Antioquia da Síria. Ela se tornou importante centro irradiador da proposta cristã. A experiência que trouxeram da viagem foi partilhada e meditada na comunidade. O principal ponto polêmico levantado por Lucas, neste texto, é a questão da circuncisão. Trata-se de polêmica suscitada por judeu-cristãos que manifestam ainda muita dificuldade de desvencilhar-se da lei judaica como constitutiva da salvação. Alguns deles se deslocam de Jerusalém para Antioquia a fim de pregar a obrigatoriedade da circuncisão como manifestação de fidelidade à Lei de Moisés. A seu ver, somente assim se poderia obter a salvação.

Paulo e Barnabé, missionários junto às nações, não concordam com essa obrigatoriedade, pois a verdadeira fonte de salvação é Jesus Cristo. Com tal convicção dirigem-se à Igreja-mãe, Jerusalém. O conflito é evidente. Para discernir qual o caminho a ser seguido, é convocada uma assembleia. Realizou-se, então, o que é normalmente conhecido por “Concílio de Jerusalém”. Estamos no ano 49.

O relato de Lucas tem a preocupação de mostrar a disposição dos participantes desse “concílio” para salvar a unidade da Igreja. Percebe-se isso, especialmente, pela acolhida mútua e carinhosa entre os representantes da Igreja de Antioquia e os de Jerusalém. A unidade vem junto com a preocupação de inclusão de toda a gente, pois a salvação que Jesus trouxe é para todos os povos. O decreto final determina a abstenção de algumas atitudes que feriam profundamente a fé judaica: das “carnes sacrificadas aos ídolos”, pois isso significaria participar dos cultos pagãos, o que seria um sacrilégio; do “sangue e das carnes sufocadas”, pois o sangue expressa a própria vida, que só a Deus pertence (por isso, ao ser sacrificado, o sangue do animal deveria ser totalmente derramado – cf. Lv 1,5); das “uniões ilegítimas” (cf. Lv 18). Transparece claramente, nas decisões da assembleia, uma estratégia pastoral com o objetivo mais alto: proporcionar a acolhida do Evangelho da salvação por todas as culturas.

3. II leitura (Ap 21,10-14.22-23): A nova humanidade

Os dois últimos capítulos do Apocalipse apontam para a nova criação, em que já não há lugar para a maldade. O texto da liturgia deste domingo relata essa visão utópica que se dá num alto monte. Na tradição judaica, a montanha carrega um significado simbólico de muita importância. Basta lembrar a concessão dos Mandamentos a Moisés e a morte salvadora de Jesus. Também a Jerusalém histórica se situa no monte Sião.

O alto monte contrasta com o deserto para onde o visionário João havia sido levado anteriormente (cf. 17,3). Enquanto o deserto é, simbolicamente, a morada da meretriz, a montanha é o lar da Noiva de Cristo, a nova Jerusalém constituída pelo povo justo. A meretriz representa a “Babilônia”, nome simbólico de Roma, promotora da morte e da destruição. A nova Jerusalém é a cidade perfeita que desce do céu trazendo a própria glória de Deus. A muralha, grossa e alta, tendo os anjos como guardas, está totalmente protegida e segura.

O número doze é articulado no texto como expressão da nova realidade da qual participa o novo povo de Deus. É o número da perfeição teocrática que lembra as doze tribos de Israel, os doze apóstolos e, por extensão, o povo fiel a Jesus Cristo. Esse número cruza-se com o número três, referindo-se quatro vezes às portas abertas para os quatro cantos do mundo. É, portanto, a realidade-síntese de um mundo novo.

A cidade perfeita é dom de Deus. Nela já não há templo, pois toda ela é habitação divina. Essa perspectiva teológica do Apocalipse aponta para a realização plena do desígnio de Deus inaugurada com a vinda de Jesus, o Messias. Ele é o Cordeiro: a lâmpada que ilumina a cidade. A situação da humanidade transformou-se. Seu relacionamento com Deus se dá de forma íntima, perfeita e definitiva. A aliança é plenamente acolhida e vivida com fidelidade.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

A utopia do “novo céu e da nova terra” exerceu um papel de resistência, de coragem e de perseverança nas comunidades cristãs do Apocalipse. As violentas perseguições pelas quais passaram as pessoas discípulas de Jesus, por causa do testemunho de fé em Jesus Cristo, desafiaram a sua fidelidade. Muitas foram mortas. O seu martírio, porém, é o sinal por excelência que ilumina e confirma o caminho do seguimento de Jesus.

O testemunho dos primeiros cristãos nos interpela profundamente. A fidelidade aos valores evangélicos permanece como caminho para um mundo novo. É neste mundo onde vivemos que Deus deseja estabelecer sua morada. Tudo, então, torna-se sagrado. Quando nossas palavras e nossas ações respeitarem a presença de Deus em cada ser humano, na natureza e em toda a sociedade, o mundo será outro.

No Evangelho, Jesus anuncia e garante a presença de Deus Trindade nas pessoas que o amam e ouvem a sua Palavra. Dessa verdade decorre nosso compromisso de contemplar cada pessoa como morada de Deus e, portanto, respeitá-la em sua dignidade. Daí decorre também nosso compromisso de proteger e promover a vida em todas as suas dimensões.

Por isso, iluminados pelas atitudes dos primeiros discípulos e missionários, reunimo-nos em comunidade para celebrar, realizar encontros e assembleias para discernir e decidir o que fazer, tendo em vista a vida digna sem exclusão.

 Valorizar os diversos momentos de reuniões, encontros, celebrações, estudos e assembleias que se realizam na paróquia (e em outros espaços), bem como refletir sobre a importância da participação neles como Igreja viva que somos.

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC).
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