Roteiros homiléticos

1º de novembro – TODOS OS SANTOS E SANTAS

Por Maria de Lourdes Corrêa Lima

A Igreja santa, na terra e no céu

 Introdução geral

As três leituras da solenidade de Todos os Santos nos apresentam um fato: Deus, o Santo, quer fazer de nós imagens suas. A santidade não é uma realidade só para alguns, mas para todos. Não é um tema simplesmente da vida privada, mas, envolvendo nosso ser mais pessoal, faz parte de nosso testemunho diante do mundo. Ela também não é algo a ser vivido só na outra vida, mas começa agora o que depois se plenificará.

 Comentário dos textos bíblicos

  1. Evangelho (Mt 5,1-12a)

As bem-aventuranças são palavras que ensinam os discípulos, anunciando-lhes promessas e mostrando-lhes o caminho do seguimento de Jesus. Indicam a subversão dos critérios do mundo: os que são considerados como nada são ditos felizes. Trata-se de uma felicidade de outra dimensão, onde o cristão se alegra não obstante os sofrimentos (v. 12: “alegrai-vos!”). As bem-aventuranças são, assim, imagem da nova ordem, do mundo novo, do Reino que Jesus inaugura e que já se inicia agora; são também retrato do próprio Jesus: ele é o primeiro a ser pobre em espírito, manso, misericordioso... E, com isso, elas são orientação para os discípulos.

Os santos viveram essa assimilação à pessoa de Jesus. São hoje bem-aventurados no céu, mas já começaram, pela vivência cotidiana dos valores das bem-aventuranças, a sê-lo nesta terra. A vida segundo o evangelho não é uma vida tristonha, revoltada, mas já nos faz, aqui e agora, saborear a bem-aventurança celeste. Quem está com Jesus já participa, na sua vida concreta, da bem-aventurança prometida.

Não se trata, porém, de simples divisão: um é santo, e o outro, pecador. Embora não se possa negar fundamentalmente essa diferença, a santidade da Igreja é realidade que se verifica no interior de cada um. Cada um pode ter em si algo da santidade e algo do pecado. A Igreja é santa naquilo que, no coração de cada fiel, é orientado pelo amor que provém de Deus, leva a Deus e à dedicação sem limites aos irmãos.

Bem-aventurados são, primeiramente, os “pobres em espírito”. Não se trata nem de pobreza unicamente material nem de pobreza puramente espiritual. Trata-se de saber renunciar às riquezas materiais, usando-as para o bem comum, com a liberdade interior que provém dos imperativos do evangelho. Isso é impulso para que a justiça social aconteça na sociedade. A Igreja, os cristãos, vivendo essa pobreza evangélica, tornam-se sinais do mundo novo.

Essa atitude se expressa também na mansidão, que, não se impondo com prepotência, mas sendo vivida em espírito de serviço, terá sua recompensa na outra terra. E naqueles que, aflitos, resistem ao mal sem fazer o mal e agem, com esperança em Deus, em favor do restabelecimento da ordem querida por ele. Não se desesperam porque esperam a consolação que não vem da justiça humana, mas de Deus. A eles estão ligados os que têm fome e sede de justiça, aqueles que sofrem sem verem seus direitos respeitados, mas têm já a certeza daquela justiça que nunca falhará.

Os misericordiosos são bem-aventurados porque deixam transbordar da riqueza de seu coração algo que os faz, talvez sem se dar conta, imagem da infinita misericórdia de Deus, a eles reservada. Os puros são aqueles que podem estar diante de Deus sem máscaras, pois nada têm a esconder. Mesmo se encantando com os valores deste mundo, sabem que só vale aquilo que traz o reflexo de Deus; e, assim, elevam tudo para Deus. Os que promovem a paz são os que vivem a reconciliação, que começa com Deus e, daí, deve se expandir aos relacionamentos e estruturas humanas.

Por fim, bem-aventurados são os perseguidos por causa da justiça, que mantêm as medidas justas e não se dobram perante medidas injustas. São, assim, sinal de contradição e se tornam um desafio e mesmo uma acusação. Por isso lhes advém a mesma sorte de Jesus: o desprezo e até o ódio.

Na versão do Evangelho de Lucas, Jesus pronuncia as bem-aventuranças “erguendo os olhos para seus discípulos” e dizendo: “Bem-aventurados vós, os pobres... Vós, que agora tendes fome... Vós que agora chorais... Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem...” (Lc 6,20-23). É como se Jesus já visse neles realizado algo da beleza das bem-aventuranças. As bem-aventuranças não são uma teoria, mas se realizam já neste mundo. Assim, não se deve ler as bem-aventuranças sem olhar para tantos que já agora são puros, santos, honestos... A Igreja é santa nos céus, mas o é também naqueles que, já aqui, se deixam guiar pela vivência radical do evangelho. Todos esses que procuram viver o evangelho celebram, com os santos canonizados, a festa de Todos os Santos. E podem alegrar-se e exultar porque, pela graça, terão grande recompensa em Deus (cf. Mt 5,12).

  1. I leitura (Ap 7,2-4.9-14)

Na primeira cena da leitura de hoje, do livro do Apocalipse, vemos os fiéis em meio a grandes provações. Sem livrá-los das dificuldades, Deus, intervém em seu favor. Eles são marcados com “o selo do Deus vivo”, identificados como “servos de Deus” (v. 3). A marca que recebem é o batismo, que, na comunidade cristã primitiva, muitas vezes aparece na imagem do “selo” (cf. 2Cor 1,21-22). Ele faz do cristão propriedade de Deus e, por isso, é sinal que protege do juízo escatológico. Dessa forma, já agora pertencem a Deus e depois chegarão à glória de Deus, estarão de pé diante de seu trono (v. 9).

Em seguida, o texto apresenta a visão dos eleitos no céu, aqueles marcados com o selo (v. 9-14). Eles são incontáveis (cf. Gn 15,5: a promessa a Abraão), num número de grandeza incomparável (12 x 12 x 1.000, v. 4), e provêm de todas as partes do mundo. São admitidos onde antes estavam só os anciãos e os quatro seres vivos: à presença de Deus (cf. Ap 5,6-8). Portam vestes brancas, a vida nova na qual entraram pelo batismo e que se plenifica na glória celeste. E têm nas mãos palmas, símbolo da vitória (v. 9). Foram purificados pelo batismo, no qual se torna realidade a força salvadora da cruz, e, passando pela provação, a venceram (v. 13-14).

Por isso participam da liturgia celeste. O hino que cantam proclama Deus e o Cordeiro como autores da sua salvação (v. 10). O batismo, a força de vencer as provações, tudo eles receberam da graça de Deus. A eles se juntam os anjos, os anciãos e os quatro seres vivos, que cantam a glória e a majestade de Deus (v. 11-12).

Dessa forma, em duas cenas, uma terrestre (v. 2-4) e outra celeste (v. 9-14), o Apocalipse abre a realidade da ação salvadora de Deus, que já nesta história santifica os seres humanos e os guia para a meta última, a glória, na qual participarão da liturgia que não terá fim.

  1. II leitura (1Jo 3,1-3)

A vida do cristão transcorre entre dois momentos: o agora e o que virá. O primeiro momento (v. 2) já é marcado pela realidade transcendente: somos realmente filhos de Deus. No Antigo Testamento, o povo de Israel aparece, embora raramente, como filho de Deus, mas num sentido simbólico, para indicar a estreita relação de pertença a Deus (cf. Os 11,1) e a realidade de ser obra das mãos de Deus, que é o Criador e aquele que formou o povo eleito (cf. Is 64,7; 63,16). No Novo Testamento, não se trata de um símbolo, mas de uma realidade. O único Filho de Deus, Deus como Deus, fez-se humano. E por sua obra redentora (cruz-ressurreição) deu-nos real participação na sua vida de Filho. Isso começa em nós pelo batismo. Essa realidade encontra-se, contudo, marcada pelos limites da história (geral e pessoal).

O segundo momento é a vinda futura do Filho de Deus. Então aquilo que já somos (filhos) será levado à plenitude. Quando encontramos alguém que amamos e que nos ama, nosso semblante se ilumina. Sorrimos, falamos... com confiança diante de um amigo. Quando encontrarmos a Deus, sua divina face iluminará a nossa face. Nosso “semblante” será iluminado. Resplandecerá em nós seu amor, sua divina Pessoa... Nossa semelhança com ele chegará ao ápice.

Essa esperança deve guiar nossa vida, dando-nos força e motivos para permanecermos fiéis, trazendo às categorias, valores e estruturas de nossas sociedades, que tantas vezes rejeitam o evangelho, a interpelação que vem de Deus. Assim, o cristão não só se santifica, mas santifica a história.

DICAS PARA REFLEXÃO

- O Concílio Vaticano II, no documento Lumen Gentium, fala da vocação de todos à santidade. Estamos convictos de que temos o chamado para ser santos? De que nosso testemunho perante a própria Igreja e perante a sociedade passa pela resposta a essa vocação?

- Em que consiste a santidade da Igreja, dos cristãos? Como ser cristão coerente num mundo em que há tantas estruturas e valores que contrariam o evangelho?

- Nossa santidade é mais obra nossa ou de Deus?

Maria de Lourdes Corrêa Lima

Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Doutora em Teologia (Bíblica) pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). É membro da Ordem das Virgens da Arquidiocese do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]