Roteiros homiléticos

22º Domingo do Tempo Comum – 2 de setembro

Por Rita Maria Gomes, nj

I. Introdução geral

Na liturgia deste dia, o Senhor nos convida a manter uma relação de intimidade com ele, à qual somos chamados desde a criação. Essa relação tornou-se frágil a partir do desvio do ser humano no jardim do Éden, e por isso o convite divino é recorrente. Tudo nesta liturgia está voltado para essa relação, seja para reforçá-la, seja para quebrá-la: desde a doação da Lei em Dt 4,1-2.6-8 até a polêmica do evangelho (cf. Mc 7,1-8.14-15.21-23) e, posteriormente, a prática de vida da Igreja (cf. Tg 1,17-18.21b-22.27). No evangelho, após a controvérsia com os fariseus e os mestres da Lei, Jesus chama para perto de si a multidão a fim de dirigir-lhe uma palavra, um ensinamento. Toda a história da salvação é constante chamado de Deus à escuta de sua Palavra. É de Deus a iniciativa de entrar em diálogo com o ser humano e de caminhar com ele. A este cabe a escuta, que, longe de ser um ato passivo, exige atenção, exame, discernimento, obediência, mas, antes, é convite a uma relação e por isso implica compromisso, engajamento. Cada leitura desta liturgia revela um aspecto da relação do ser humano com seu criador, mas em todas elas o fundamento dessa relação é a escuta obediente a Deus.

II. Comentários dos textos bíblicos
  1. I leitura: Dt 4,1-2.6-8

O Deuteronômio é constituído por uma série de discursos de Moisés, antes de sua morte, enquanto os israelitas estavam no limiar da terra prometida. Esses discursos consistem em um plano de ação, uma instrução que deveria conduzir a vida do povo após a entrada na terra. Tal entrada configura um matiz imprescindível, porque é ponto de chegada, é concretização da promessa que orientou toda a caminhada de Israel.

Assim, após breve evocação histórica da caminhada feita até então, Israel é exortado a observar a Lei do Senhor. Esse olhar retrospectivo sobre a salvação realizada por Deus em favor de seu povo, tirando-o do Egito, da terra da escravidão, abençoando-o, acompanhando-o pelo deserto, estando com ele (cf. Dt 2,7), é o fundamento das palavras que serão ditas, as quais Israel deve escutar e guardar. Também a entrega da Lei é ato salvífico, pois de sua observância depende a vida e a posse da terra (Dt 4,1).

As leis, decretos e mandamentos são dom de Deus para seu povo. Palavra a ser acolhida, guardada e praticada, pois nela a comunidade israelita se reconhece e por ela são reconhecidas, perante os outros povos, sua sabedoria e inteligência. Israel é o povo eleito, escolhido por Deus por sua benevolência e amor misericordioso (cf. Dt 6,7-8). Assim, a eleição de Israel é, ao mesmo tempo, dom e tarefa, acompanhada da missão de manifestar e tornar conhecido seu Deus entre os povos.

  1. Evangelho: Mc 7,1-8.14-15.21-23

O evangelho é marcado pela discussão entre Jesus e os fariseus e mestres da Lei acerca do que é puro e impuro. Aqui, o atrito está relacionado às práticas alimentares, tal como em Mc 2,15-17, quando questionam a atitude de Jesus de comer com os pecadores. No entanto, é a prática dos discípulos, que não se comportam segundo as tradições dos antigos e comem o pão com as mãos impuras (v. 5), o objeto do questionamento e, consequentemente, a atuação de Jesus como mestre.

Em contrapartida, Jesus mostra que a vontade de Deus supera as tradições humanas, repudia a hipocrisia de sua piedade legalista e apresenta a verdadeira fonte da pureza e da impureza, o coração humano, que para o mundo semita era lugar da razão e da consciência. Jesus evoca a profecia de Isaías para dirigir-se aos seus interlocutores: “me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13).

Os fariseus e os mestres da Lei acusam os discípulos de Jesus de não seguir a tradição dos antigos. Jesus, de sua parte, acusa-os de ter abandonado o mandamento de Deus. Desse modo, o culto e a doutrina deles são práticas externas e vazias. A noção de pureza e impureza, antes ligada ao culto, é compreendida e apresentada por Jesus com base em um matiz ético e espiritual, sendo puro o que corresponde e se ajusta à vontade de Deus e impuro, as coisas más, o que está em desacordo com ela.

  1. II leitura: Tg 1,17-18.21b-22.27

O ser humano é fruto da vontade deliberada de Deus, como tão bem expressa o significativo “façamos” de Gn 1,26. É criado à imagem de Deus e chamado a relacionar-se com ele. Pela Palavra, o ser humano foi criado e, pela acolhida da Palavra, é salvo, realiza sua vocação e identidade mais profunda.

À Palavra de Deus o cristão deve responder com a escuta ativa. A proposta dessa Palavra diz respeito à pessoa integralmente, exige total comprometimento. A religião pura e sem mancha combina a escuta da Palavra e sua efetivação nas boas obras. A pureza exigida pelo culto é a do amor e da prática da justiça, sobretudo para com os mais necessitados.

III. Pistas para reflexão

A Igreja no Brasil, desde 1971, dedica o mês de setembro à Palavra de Deus. É oportuno questionarmo-nos sobre o modo pelo qual nos relacionamos com essa Palavra. A recorrência, na liturgia, do uso dos imperativos dos verbos ouvir (cf. Dt 4,1), guardar, pôr em prática (cf. Dt 1,6), receber a Palavra (cf. Tg 1,21b), praticar (cf. Tg 1,22) e, por último, escutar e compreender (cf. Mc 7,14) pode nos ajudar nessa tarefa.

O convite à escuta permeia toda a Bíblia. Abre a confissão de fé do povo de Israel: “Ouve, ó Israel...” (Dt 6,4). No entanto, nas Sagradas Escrituras, esse imperativo ultrapassa o sentido de escutar, dar ouvidos, prestar atenção, pois exige compromisso e engajamento. Evoca a ação do próprio Deus, que ouviu o grito do seu povo e desceu a fim de libertá-lo (cf. Ex 3,7-8). É a escuta autêntica da Palavra a base para a experiência, para a relação com Deus e para o conhecimento de seu projeto para a humanidade. A escuta autêntica tem como consequência imediata a fé, uma resposta à autocomunicação de Deus, que toma a iniciativa de pôr-se em diálogo com o ser humano e revelar-se a si mesmo e o mistério de sua vontade (cf. DV I, 2).

Devemos, pois, considerar que a Palavra que acolhemos tem consequências históricas, desperta o amor e o engajamento em favor dos outros; a dedicação a uma causa, ainda que pareça não dizer respeito a quem nela se empenha; a força para encarar o sofrimento e os males do mundo como desafio; a criatividade para identificar o que pode ser feito para modificar a situação; a alegria e a esperança apesar do sofrimento. A fé possibilita que alguém livremente aja de modo mais humano, realizando assim o propósito do Pai, que nos gerou para sermos como que as primícias de suas criaturas (cf. Tg 1,18).

Após ponderar, na discussão com os fariseus e mestres da Lei que o questionavam, sobre o abandono do mandamento de Deus por parte deles, Jesus dirige-se à multidão, declarando que o que torna impura a pessoa é o que sai de seu coração. As práticas cultuais, as doutrinas e a religiosidade vazia dos acusadores de Jesus e de sua comunidade estavam relacionadas a seu coração distante de Deus (cf. Mc 7,6). Cabe a cada um de nós e todos juntos perguntarmo-nos se temos permitido que a Palavra de Deus aja em nosso coração, de modo que essa experiência nos transforme, nos entusiasme, a ponto de que nosso existir, como autênticos discípulos de Jesus, seja revelador da esperança que nos move. Cabe examinarmos honestamente a nossa vida de fé e pensar se o Deus em quem cremos é o Deus de Jesus Cristo, que está verdadeiramente empenhado na salvação do ser humano.

Rita Maria Gomes, nj

Ir. Rita Maria Gomes, nj, é natural do Ceará, onde fez seus estudos em Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde leciona Sagrada Escritura. É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]