Roteiros homiléticos

24 de fevereiro – 2º DOMINGO DA QUARESMA

Por Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

UM ÊXODO DIFERENTE

I. INTRODUÇÃO GERAL No segundo domingo da Quaresma também se encontra, todos os anos, o episódio da transfiguração, cada vez à luz de um dos evangelhos sinóticos. Ainda no início, é bom olhar um pouco melhor para o caminho e para a chegada. Para quem se prepara para o batismo ou para renovar os compromissos do seu batismo e vivê-lo melhor, será bom também ver o que se pode aprender do episódio. Este ano a versão é a de Lucas, que nem fala de transfiguração, mas apenas do rosto de Jesus transformado pela oração e da brancura e brilho de suas roupas. Fala da morte de Jesus como um êxodo, uma saída semelhante à dos hebreus da escravidão do Egito. Jerusalém é o ponto central para Lucas, tanto no evangelho quanto no livro dos Atos dos Apóstolos. Se a rede de comunidades cristãs fundada por Paulo era acusada de negar sua origem judaica, Lucas contesta, colocando Jerusalém sempre no centro. O êxodo ou a saída de Jesus que se dá em Jerusalém pode ter, então, vários significados. Jerusalém e tudo o que ela significa ter-se-ão transformado em outro Egito, nova “casa da escravidão”? A saída de Jesus da cidade explica-se pela necessidade de ele ser crucificado fora dela – o que era normal e exigido pela Lei, pois a crucifixão torna impuro o lugar – ou também significa uma saída que ele abriu para a humanidade? A morte de cruz é um êxodo, uma saída, porque escapa totalmente a uma leitura e interpretação de Dt 21,23 (quem morre pendurado é maldito por Deus)? II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Gn 15,5-12.17-18) Abrão está velho e sem filhos. Deus dá-lhe a esperança de tornar-se pai de enorme multidão. O fogo que passa entre as metades de animais sacrificados simboliza que Deus está firmando um compromisso com Abrão. Abrão é modelo do patriarca ou pai grandioso, lembrado por inúmeras gerações. Ele, porém, não é pai grandioso (o significado do seu nome) por causa de seu vigor físico – já estava velho e debilitado quando Javé lhe prometeu grande descendência. Deus é que fez dele o pai da multidão (significado do nome Abraão). Para tanto, bastou-lhe acreditar na promessa de Deus. Sua fé fê-lo merecer, fez com que o cumprimento da promessa lhe fosse de justiça. Javé prometeu-lhe também que seria proprietário da terra onde estava. Para garantir isso a Abraão, fez com ele uma aliança. As alianças ou contratos antigos eram firmados com um rito de sangue. O mais comum era as partes contratantes passarem entre metades de animais sacrificados, pronunciando imprecações ou “rogando pragas”, como se dissessem: “Aconteça-me o mesmo que a estes animais se eu não cumprir o que foi contratado!”. A promessa de Deus adquire, então, o caráter de uma aliança. Ao cair da tarde, no claro-escuro, fumaça e tocha passam por entre as metades dos animais sacrificados. Fumaça e tocha, o obscuro e a luz, simbolizam o Deus Javé. Ele é, ao mesmo tempo, o totalmente outro, que se encontra na obscuridade da fumaça, e o luzeiro, tocha que clareia e mostra o caminho. Javé se compromete com Abrão, pai grandioso, que se tornará Abraão, pai da multidão, a dar-lhe um chão, a propriedade de uma terra. 2. II leitura (Fl 3,17-4,1) Paulo alerta a comunidade contra os que querem exigir que os cristãos não judeus também se circuncidem e se submetam às normas da antiga religião. Reduziam, além disso, a religião a controle de alimentos. Será que Deus está no estômago? Nós pomos fé em Jesus morto e ressuscitado. A salvação para nós passa pela cruz. Paulo foi fariseu e fiel observante de todas aquelas normas. Perseguiu os cristãos por julgar absurda a afirmação de que um crucificado era a salvação que Deus havia mandado ao mundo, pois um crucificado é, segundo Dt 21,23, maldito por Deus. Quando entendeu, entretanto, que Jesus era mesmo o Messias, o Cristo, deixou de lado tudo o que para si era o único caminho de salvação, a observância de todas aquelas leis, e passou a seguir Jesus crucificado. Por isso, pede que os filipenses o imitem, sigam o exemplo seu e de outros e não se deixem iludir. Os que querem se apoiar somente na observância da Lei são inimigos da cruz de Cristo, tiram-lhe toda a importância. Isso faz Paulo chorar. O destino destes é a destruição, enquanto cabe aos cristãos aguardarmos a transformação da nossa humilde pessoa à imagem do Cristo ressuscitado e glorioso. Com a importância tão grande que dão às prescrições alimentares, parecem dizer que seu Deus está no estômago. Sua glória é a circuncisão, que se encontra naquilo que o homem busca esconder, porque sente vergonha. Em tudo são contraditórios. 3. Evangelho (Lc 9,28-36) Jesus já falou e voltará a falar da sua paixão. É nesse meio que Lucas situa a transfiguração. A morte humilhante de Jesus não é o fim, é a saída. Tudo está na Bíblia, a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias). Os discípulos não escutam. Marcos e Mateus situam o episódio no sexto dia, e Lucas, no oitavo. Não o fazem porque tiveram informações diferentes, mas porque olham de maneira diversa o significado do episódio. O sexto dia lembra o dia da criação do homem: é certamente no contexto da criação de nova humanidade que Marcos quer entender a transfiguração. O “mais ou menos” oitavo dia de Lucas mostra que ele conhecia o texto de Marcos, mas queria lembrar o oitavo dia, o começo da nova criação do universo. Depois do descanso do sétimo, é novamente o primeiro dia, o dia da ressurreição de Jesus com seu significado cósmico e até ecológico. Jesus leva à montanha Pedro, Tiago e João. Pedro é aquele que, logo após afirmar ser Jesus o Messias, não admitiu que pudesse ser um Messias sofredor, humilhado pelos poderosos. Tiago e João em Mc 10,35-38 (em Mt é a mãe deles, e Lucas só fala de uma discussão sobre quem seria o maior) pediram a Jesus os primeiros lugares na sua glória ou poder e provocaram a discussão sobre qual o maior entre os doze. Os três precisam de boa lição e por isso são levados à montanha, sozinhos, à parte (Mc e Mt), ao encontro com Deus (Lc). Só Marcos e Mateus usam o verbo transfigurar, metamorfosear. Lucas diz apenas que o rosto de Jesus mudou de aparência enquanto ele orava. Só Lucas explicita o teor da conversa de Jesus com Moisés e o profeta Elias, representantes das Escrituras do Primeiro Testamento, então divididas em Lei de Moisés e Profetas. Conversavam sobre a paixão de Jesus que deveria ocorrer em Jerusalém. O Primeiro Testamento fala de um Messias sofredor. O ponto mais alto disso se encontra nos quatro poemas do livro de Isaías chamados de Cânticos do Servo de Javé (Is 42,1-7; 49,1-8; 52,13-53,12). O projeto de Deus é esse mesmo, mas aos três discípulos ele interessa pouco. Lucas diz que, enquanto Jesus conversava com Moisés e Elias, eles caem no sono. Lucas fala da morte humilhante de Jesus em Jerusalém – para onde em seguida vão começar a subir (os três discípulos não querem entender isso) – como o êxodo de Jesus. Ele foi morto fora da cidade. Jerusalém era o centro da terra onde correm leite e mel. A terra da liberdade agora se tornou outro Egito, “a fornalha da escravidão”, e não aceita Jesus. Jesus sai de lá como Moisés saiu do Egito, liderando um povo que buscava a terra da fartura e da liberdade. Assumir a cruz é difícil, é complicado, é humilhação e morte, mas é a saída, é o novo êxodo. A voz de Deus é fundamental. “O meu filho, o eleito” corresponde exatamente ao começo do primeiro poema do Servo de Javé, que na tradução dos Setenta está “o meu menino, o escolhido”. A cruz será a realização plena daquilo que dizem esses poemas. Os principais discípulos não estão querendo ouvir isso da boca de Jesus, mas Deus diz: “Escutai-o!”. A nuvem, a sombra e também o medo de ver Deus lembram a presença divina na manifestação do Sinai. Quem eles agora devem ouvir é Jesus, a voz da nova aliança, que eles não eram capazes nem tinham o desejo de ouvir quando anunciava a própria morte. Pedro parece querer pôr Jesus em pé de igualdade com os representantes do Primeiro Testamento. Nada de novo, Jesus é apenas mais um, igual a Moisés e a Elias. Propõe fazer uma tenda para cada um (pensava numa festa das Tendas?), a fim de que os três se estabeleçam e fiquem ali. Por outro lado, fala por falar, sem saber o que diz ou o que dizer. Depois de a voz de Deus se fazer ouvir, Jesus se encontra só: ele sozinho resume toda a Escritura. Ele está a sós com eles, mas, com eles, parece que continua sozinho para enfrentar os inimigos em Jerusalém. III. PISTAS PARA REFLEXÃO Jesus estará ainda hoje enfrentando sozinho o caminho da cruz? A cruz terá deixado mesmo de ser um escândalo, algo absurdo e incompreensível? Não é preferível falar da glória, do poder, do prestígio? Falar de cruz hoje dá sono; cruz, sacrifício em favor do outro, são coisas fora de moda! – A ressurreição não se explica sem a cruz. A ressurreição vem justificar a cruz, dar a aprovação de Deus a esse caminho tão estranho. A chegada dá razão ao caminho, a ressurreição dá razão à cruz. – Pedro, Tiago e João terão entendido tão mal a caminhada de Jesus? Sem dúvida, os evangelistas estavam pensando sobretudo nos dirigentes e fiéis de suas comunidades: eram eles certamente que não estavam entendendo bem o caminho de Jesus e começavam a se envolver mais com disputas de poder e prestígio. Como diz o pessoal da roça, o evangelista “está batendo na carroça para o burro entender”. Esses que têm dificuldade de entender não seremos nós hoje? – Haverá outra saída para a humanidade, para seus problemas sociais, políticos, ecológicos, que não seja a cruz, a coragem de se sacrificar pelo outro, por todos, pelo todo? Outro dia, uma criança disse: “Para a gente viver em comunidade, é preciso passar pela cruz!”.

Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

* Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico. Autor dos livros A Bíblia e suas contradições: Como resolvê-las e A missa: Da última ceia até hoje, ambos publicados pela Paulus. E-mail: [email protected].