Roteiros homiléticos

26 de maio – CORPUS CHRISTI

O CORPO DE CRISTO: VIDA PARA O MUNDO

I. INTRODUÇÃO GERAL

A festa de Corpus Christi tem origem no século XIII. Santa Juliana de Mont Cornillon, da Bélgica, incentivou a solenidade em honra ao santíssimo sacramento e, em 1264, o papa Urbano IV publicou a bula Transiturus, na qual louva o amor de Jesus manifestado na eucaristia e ordena que seja celebrada a solenidade de Corpus Christi na quinta-feira seguinte ao domingo dedicado à Santíssima Trindade. A partir do século XIV, as procissões foram sendo incorporadas à celebração desta festa. O Concílio de Trento reconhece que, pela piedade popular, foi sendo introduzido na Igreja de Deus o costume de celebrar anualmente, em dia festivo, o excelso sacramento e declara que, com honra e reverência, seja levado em procissão pelas ruas e lugares públicos. Com essa manifestação pública de fé, os cristãos e cristãs testemunham a sua gratidão pelo dom da eucaristia, pelo qual se torna presente a vitória sobre a morte e a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo.

A eucaristia é o memorial da última ceia de Jesus, em que ele ofereceu seu Corpo e Sangue aos discípulos, anunciando a sua morte como dom total de sua vida em resgate da vida de todos (II leitura). Os elementos eucarísticos, pão e vinho, são referências antigas, usadas já pelo sacerdote Melquisedec como oferta a Deus pelos benefícios concedidos a Abraão (I leitura). Pão e vinho – Corpo e Sangue: Jesus entregou a vida em favor da humanidade não apenas na hora de sua morte, mas em todo o seu ministério. Ele ensina a partilhar os bens e empenhar a própria vida a fim de que todas as pessoas tenham suas necessidades dignamente satisfeitas. Para isso, conta também com seus discípulos (evangelho).

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. II leitura (1Cor 11,23-26): Em memória de Jesus

O relato que Paulo faz a respeito da Ceia de Jesus é o mais antigo, tendo sido redigido ao redor do ano 56, anteriormente aos evangelhos. Ele diz que recebeu “do Senhor” o que está transmitindo à comunidade. Certamente, refere-se à tradição dos apóstolos. A narrativa está inserida num contexto de divisão da comunidade cristã de Corinto, manifestada até mesmo na celebração da Ceia. Provavelmente, nas comunidades primitivas, a Ceia do Senhor era feita em uma cerimônia de ação de graças (= eucaristia) pela redenção do gênero humano trazida por Jesus. O momento principal era precedido por uma refeição comum, também chamada de “ágape”, como expressão de companheirismo entre os membros da comunidade. A comida, provavelmente, era trazida de casa e partilhada com todos. No caso de Corinto, Paulo critica com veemência a atitude dos que chegam mais cedo, comem e bebem à vontade, sem esperar as pessoas pobres que chegam depois. Essa conduta está em total desacordo com o sentido sagrado e solene da eucaristia.

Ao comer do mesmo pão e do mesmo cálice, do Corpo e do Sangue de Jesus, os participantes expressam a unidade com o Salvador e com a comunidade. Paulo enfatiza, então, a íntima relação entre a eucaristia e o amor fraterno. Por isso, a celebração não é mero simbolismo, mas expressão de comunhão com a pessoa e a proposta de Jesus, com o seu mesmo amor oblativo. Por isso, é anúncio de sua morte, é a nova aliança em seu sangue.

2. Evangelho (Lc 9,11b-17): Ação de graças na partilha

Jesus retira-se com os seus discípulos, recém chegados da missão que lhes havia confiado. A multidão segue a Jesus para onde ele vai. Ele lhes anuncia o reino de Deus e realiza sinais de cura e de libertação. O local em que se encontra é deserto, despovoado. Teologicamente o deserto revela o espaço de decisões, de caminhada e de encontro com Deus. Lembra o êxodo como caminho de libertação da escravidão do Egito; lembra também o profeta Elias, que, fugindo da perseguição do rei Acab, atravessa o deserto e se encontra com Deus numa gruta no monte Carmelo; lembra o próprio Jesus, que supera as tentações no deserto com jejum e oração.

Certamente, esse cenário da multidão com Jesus num lugar deserto revela uma situação de crise. Ela é reforçada pela referência à hora avançada do dia: a noite vinha chegando. É a mesma hora em que os discípulos de Emaús, após um longo caminho, pedem que Jesus (o forasteiro, companheiro de caminhada) permaneça com eles (Lc 24,29).

No relato de Lucas, percebe-se nitidamente a intenção de explicitar duas posturas diferentes diante da situação de crise. Uma é a dos Doze, que se aproximam de Jesus e lhe pedem que despeça a multidão, a fim de esta poder comprar alimentos e providenciar pousada. Comportam-se como um grupo de elite e procuram livrar-se do “incômodo” que as pessoas necessitadas representam. Mergulhados ainda numa ideologia de poder, apontam uma saída baseada no individualismo e numa ótica mercantilista.

A postura de Jesus, porém, revela-se em desacordo com o exclusivismo dos Doze. Eles ainda não haviam assimilado o testemunho do ministério de Jesus, que sempre é de acolhida, de anúncio do Reino, com sinais em favor da vida digna sem exclusão. Por isso, Jesus os impele a enfrentar a situação: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Ensina-lhes o método antigo de organização em pequenos grupos e de partilha do que as pessoas tinham. É a memória e a aplicação atualizada dos princípios econômicos e políticos do povo de Israel, segundo os relatos de Ex 16 e 18. Lembra também a ação do profeta Eliseu, que, mesmo diante da dúvida resistente de seu servo, pede que sejam servidos para cem pessoas os 20 pães que possuía. Todas ficaram saciadas e ainda sobrou, conforme a palavra do Senhor (2Rs 4,42-44).

Lucas faz questão de precisar a quantidade de alimento que havia no meio do povo: cinco pães e dois peixes (perfazem o número sete, de plenitude); representam os bens que a benevolência divina concede aos seus filhos e filhas. Quando administrados com justiça, segundo a necessidade de cada pessoa, satisfazem plenamente e ainda sobra em abundância (12 cestos).

A bênção de Jesus sobre os alimentos revela o costume entre os judeus. O Talmude chega a dizer que “aquele que desfruta de algo sem dar graças é como se tivesse roubado a Deus”. As palavras usadas por Jesus nessa bênção, juntamente com o gesto de partilha, faziam parte da Ceia do Senhor, celebrada pelas comunidades primitivas. Lucas lembra que foi exatamente na hora da bênção e da partilha dos pães que os olhos dos discípulos de Emaús se abriram e reconheceram a Jesus ressuscitado (Lc 24,30-31).

3. I leitura (Gn 14,18-20): Pão e vinho, oferta de gratidão

Este breve texto de Gênesis é inserido após o relato da vitória de Abraão e sua família sobre um grupo de guerrilheiros que havia sequestrado seu sobrinho Lot juntamente com seus bens. Melquisedec é apresentado como rei de Salém (muitos a identificam com Jerusalém) e sacerdote de Deus altíssimo. O pão e o vinho trazidos por Melquisedec, junto com a bênção sobre Abraão, indicam um tipo de cerimônia religiosa de ação de graças entre os judeus. Pode-se constatar aí a preocupação de Melquisedec, rei e sacerdote, em suprir as necessidades corporais e espirituais do ser humano.

Com base neste texto de Gênesis, a carta aos Hebreus apresenta Melquisedec como uma figura profética de Jesus Cristo, sacerdote eterno, livre e autônomo, sem possuir nenhuma ligação dinástica. Aplica a Jesus o significado etimológico do nome de Melquisedec: “Rei de justiça” e “Rei de Salém”, o que quer dizer “Rei da paz” (Hb 7,1-3.15-17).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

A festa de Corpus Christi oferece a oportunidade de refletir sobre o sentido da eucaristia na vida dos cristãos e cristãs. Celebrar a memória de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, é atualizar seus gestos de amor oblativo em favor da vida de todas as pessoas. De modo particular, não podemos esquecer a dimensão social da eucaristia. “São João Crisóstomo exortava: ‘Querem em verdade honrar o corpo de Cristo? Não consintam que esteja nu. Não o honrem no templo com mantos de seda enquanto fora o deixam passar frio e nudez’” (DAp 354).

A celebração adquire seu verdadeiro sentido quando é expressão de relacionamentos justos e fraternos, vividos no cotidiano da vida familiar, comunitária e social. Não é, portanto, por meio de manifestações triunfalistas que expressamos a fé e o louvor a Deus. Para evitar essa tendência e todo tipo de alienação, Paulo adverte: “Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha”.

O pão e o vinho oferecidos por Melquisedec – “Rei da justiça” e “Sacerdote da paz” – em louvor às bênçãos de Deus sobre Abraão apontam para a identidade e a missão de Jesus. Ele é, por excelência, a bênção do Pai em favor do povo. Toda a sua vida é, na verdade, um ato eucarístico em louvor a Deus concretizado no amor ao próximo. Sua prática indica o caminho da paz como fruto da justiça. O seu gesto de bênção sobre os alimentos com a partilha entre todos nos alerta para o desdobramento da eucaristia na vida cotidiana de cada um de nós. “A eucaristia é o centro vital do universo, capaz de saciar a fome de vida e felicidade: ‘Aquele que se alimenta de mim viverá por mim’ (Jo 6,57)” (DAp 354).

“Nossa existência cotidiana se converte em missa prolongada (...)” (DAp 354). Todas as pessoas, todas as coisas, todos os momentos e todos os espaços são sagrados porque dons de Deus. Não se podem admitir situações excludentes, o acúmulo dos bens, a exploração egoísta do tempo, nem conformar-se com isso. Jesus mostrou o caminho para uma nova sociedade, organizada a partir da base e com a administração justa dos bens. Ele conta com a colaboração dos seus seguidores e seguidoras para continuar a sua obra.

– A celebração da festa de Corpus Christi pode constituir um bom momento de valorizar a corresponsabilidade de todos no cuidado e respeito por todas as formas de vida. Em coerência com o que celebramos na eucaristia, não podemos prescindir do empenho em favor da superação de toda espécie de violência e exploração, tanto do ser humano como da natureza...