Roteiros homiléticos

29º Domingo do Tempo Comum – 21 de outubro

Por Rita Maria Gomes, nj

I. Introdução geral

A liturgia deste domingo é um alerta para que não sigamos tão facilmente nossa tendência natural à glória e à honra, nosso desejo de sermos considerados mais importantes que os outros. A liturgia nos conduz, assim, ao caminho do Servo de YHWH e do Cristo, sumo sacerdote, que partilha da experiência de dor, padecimento e serviço e não busca a exaltação.

II. Comentários dos textos bíblicos
  1. I leitura: Is 53,10-11

A primeira leitura é parte também da liturgia da Palavra da Sexta-feira Santa. Consiste em pequeno fragmento do chamado Livro da Consolação (cf. Is 40-55), escrito nos últimos anos do exílio babilônico (550-539 a.C.), interpretado pelo povo, longe de sua terra, como período de separação entre YHWH e Israel. O Dêutero-Isaías foi escrito para que o povo permanecesse fiel e resistisse diante das dificuldades.

Os vv. 10-11 do capítulo 53 de Isaías apresentam o Servo de YHWH e anunciam seu destino. Com frequência, o quarto Cântico do Servo (cf. Is 52,13-53,12) foi utilizado pelos autores do Novo Testamento para compreender e explicar a fé em Jesus, que morreu para salvar o seu povo. O Servo, apresentado aqui, oferece sua vida em expiação e fará justos inúmeros homens, carregando a culpa na qual haviam caído. Ele terá uma descendência duradoura e cumprirá com êxito a vontade do Senhor.

O Servo é aquele que se entrega no lugar dos pecadores. É significativo aqui o tema da expiação da culpa e da reconciliação entre o Senhor e seu povo. O termo expiação, embora comporte um caráter jurídico e possa remeter às noções de transgressão, obrigação e responsabilidade sobre uma culpa, ou ainda de compensação desta, nesse contexto está intimamente ligado à noção de restituir a justiça, de tornar justo o que é injusto (v. 11). Para isso, o Servo, embora justo, dispõe sua vida em favor dos outros e assume a culpa dos pecadores, oferecendo-se como argumento de justificação, para que Deus perdoe e aceite, como justos, aqueles que haviam caído em pecado. Nesse sentido, a expiação aproxima-se do conceito de reconciliação e está diretamente relacionada a outros conceitos determinantes do Antigo Testamento: fundamenta-se na aliança entre Deus e o povo e no seu rompimento, o que requer a justificação e o perdão dos pecados.

O Servo cumprirá com êxito a vontade do Senhor, a qual, nesse caso, consiste em oferecer-se como instrumento de expiação dos pecados de inúmeros homens, submetendo-se a uma vida de sofrimento. Por isso será recompensado com uma descendência duradoura, participando, assim, da aliança de Deus com Abraão, a quem foi prometido um nome poderoso (cf. Gn 12,2), uma terra (cf. Gn 13,14-17) e uma descendência numerosa (cf. Gn 15,5). Sua fidelidade a YHWH, como a de Abraão (cf. Gn 22,1-19), perseverante em tempos de provações, assegura uma posteridade a Israel.

  1. Evangelho: Mc 10,35-45

Em Mc 8,29, os discípulos expressam seu reconhecimento de que Jesus é o Messias. A partir de então, ele passa a ensinar-lhes o caminho pelo qual devem segui-lo, mostrando que seu messianismo não corresponde às ideias messiânicas dos discípulos. Assim, o primeiro anúncio da paixão (cf. Mc 8,31-33) é consequência imediata da confissão de Pedro. No evangelho deste dia, continuamos a acompanhar Jesus no seu caminho para Jerusalém. Uma vez mais, deparamos com o completo desencontro entre a proposta sua e os ideais daqueles que o acompanhavam, os quais insistiam em suas ambições e projetos de grandeza e na orientação terrena de suas aspirações.

Após Jesus anunciar, pela terceira vez, a humilhação, o sofrimento e a morte que o aguardam (cf. Mc 10,32-34), Tiago e João aproximam-se dele para pedir os postos de honra, os primeiros lugares, no reino que será instaurado. Ambos parecem não participar da conversa. Não compreendem o ensinamento de Jesus. Tampouco os outros discípulos o fazem, o que se pode demonstrar pela sua irritação com a petição dos dois filhos de Zebedeu (v. 41).

Jesus esclarece que a participação do Reino é consequência do discipulado, da participação no seu destino. A sorte do discípulo não é diferente da do Mestre (cf. Mt 10,24). E, utilizando duas imagens bastante significativas, pergunta se eles estão mesmo dispostos a acompanhá-lo no destino que o aguarda, bebendo o mesmo cálice que ele e participando do mesmo batismo. O cálice que Jesus tomará é o do julgamento do pecado dos povos, em solidariedade com a humanidade pecadora, tiranizada pela injustiça e marcada pela violência. Como o Servo de YHWH, Jesus é solidário com os pecadores, que serão justificados pelo oferecimento de sua vida. Também a imagem do batismo evocará essa solidariedade, tal como o seu batismo por João Batista nas águas do Jordão, no gesto que inaugurou sua vida pública (cf. Mc 1,9-11). O cálice e o batismo são imagens que evocam a participação no sofrimento e a imersão na morte de Jesus.

O convite ao seguimento de Jesus não comporta garantias futuras, a não ser a de tomar parte na mesma sorte do Mestre. Assim, o discípulo é chamado a segui-lo e, a seu exemplo, confiar ao Pai o seu futuro. Jesus aproveita o pedido dos dois irmãos e o momento de irritação dos demais discípulos, que insistiam em disputar os primeiros lugares, para reiterar seu ensinamento acerca da lei suprema do Reino: o serviço. Na comunidade dos seguidores de Jesus, que se fez servo de todos, cada um deve se pôr como servo dos outros. Nessa comunidade não há lugar para a ambição do poder e desejo de domínio. Na comunidade do Reino, há uma inversão de valores: a autoridade não é caracterizada pelo ato de mandar e controlar, mas pela atitude e postura de serviço.

O título Filho do homem, utilizado frequentemente por Jesus para referir-se a si mesmo, alude, na tradição bíblica, àquele que recebeu de Deus o poder e o domínio (cf. Dn 7,13). Jesus, no entanto, é o Filho do homem que veio para servir (v. 45). Como o Servo de YHWH, cumpre a vontade do Senhor fielmente, oferecendo a própria vida em resgate de muitos (cf. Mc 14,24). Desse modo, assume o comportamento que pede aos seus discípulos.

  1. II leitura: Hb 4,14-16

Para o autor de Hebreus, Jesus é o sumo sacerdote por excelência. É o Filho de Deus, que atravessou os céus. Esse é o conteúdo da nossa fé (v. 14). Trata-se, porém, de sacerdócio diferente. Solidário a nós em tudo, foi provado no sofrimento e, por isso, é capaz de se compadecer de nossas fraquezas e de nos socorrer (cf. Hb 2,17-18). Com exceção do pecado, Jesus é o ser humano pleno, ajustado à vontade de Deus. Assim, seu sacerdócio é dissonante daquele que se conhecia no judaísmo, muitas vezes maculado pela corrupção e pelo domínio sobre o povo em decorrência desta posição, revelando-se incapaz de compaixão (cf. Mc 11,17-18).

Desse modo, tal como Jesus se fez solidário a nós, podemos nos aproximar e suplicar a graça do seu Espírito para que nos ajude a realizar nossa vocação e para aprender o caminho do serviço, indicado por ele, na pregação e nas escolhas, como regra de vida dos seus seguidores.

III. Pistas para reflexão

A partir do momento em que os discípulos reconheceram que Jesus era o Messias, toda pregação, ensinamento e atividade dele visavam explicar qual modelo de messianismo era o seu. Jesus passou a anunciar sua paixão, morte e ressurreição ao terceiro dia. O autor do Evangelho de Marcos apresenta três relatos de predição da paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34). Em cada um deles, o modo de apresentar o padecimento pelo qual Jesus deveria passar é diferente e vem acompanhado da incompreensão dos discípulos. No entanto, o evangelista quer deixar claro que sofrimento, morte de cruz e ressurreição são os elementos constituintes do messianismo de Jesus, o enviado último de Deus, e são também, em certa medida, extensivos aos seus seguidores.

O seguimento de Jesus exige coragem. Não se restringe ao cumprimento de suas palavras, mas comporta a adesão à sua vida. Jesus toma o nosso lugar num gesto de entrega. Assume o lugar dos condenados para que ninguém seja condenado. Como o Servo do cântico de Isaías, oferece a vida para justificar os pecadores (cf. Is 53,10). Sua entrega se manifesta de forma plena no alto da cruz, com a consumação de sua vida e a máxima expressão do seu amor e serviço a Deus e à humanidade. De modo que o Cristo elevado na cruz é modelo surpreendente de vida plena, de alguém fiel ao Pai até a consumação de suas forças, de alguém que confiou absolutamente no Pai e livremente abraçou sua vontade (cf. Mc 14,36).

A Igreja continua o agir de Jesus e pode contar com a graça do seu Espírito para que seja a ele configurada, a fim de ser, para o mundo, sacramento de Cristo e servidora do Reino de Deus. Assim, não há lugar para rivalidades, ambições e disputas pelos postos e títulos de honra. Como o seu Senhor e Mestre, sua missão é servir e entregar a própria vida (cf. Mc 10,45).

Rita Maria Gomes, nj

Ir. Rita Maria Gomes, nj, é natural do Ceará, onde fez seus estudos em Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde leciona Sagrada Escritura. É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]