Roteiros homiléticos

2º Domingo da Quaresma – 25 de fevereiro

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

I. Introdução geral

A obediência é uma das maiores virtudes do discípulo de Jesus. No entanto, geralmente queremos seguir Jesus de longe. Usufruindo, é verdade, de sua presença, mas a uma distância considerável e confortável para não ouvir a sua voz de Mestre. Escutar e, ato contínuo, praticar tudo quanto o Mestre falou é sinal de compromisso e de maturidade. Ouvir a voz de Deus é primordial e, por que não dizer, o primeiro aprendizado para também aprendermos a ouvir uns aos outros.

II. Comentários aos textos bíblicos
  1. I leitura: Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18

A primeira leitura nos põe diante de Abraão e seu importante desafio. Todavia, ainda que o desafio se apresente de maneira exigente e no limite da força de qualquer pessoa, a única reação de Abraão diante de Deus é: “Eis-me aqui”. Ele caminha pela fé. O mais importante para ele é o ato de obedecer. Não se fazem discípulos sem obediência. Por isso, cada passo de Abraão significa a construção de um itinerário de fé. Cada passo é símbolo de um novo tijolo colocado nesta grande edificação que é a vida. Abraão caminha como se visse o invisível e, por isso, seus passos constroem nova história.

Abraão compreende que a vida precisa ser protegida a qualquer custo. Deus é, necessariamente, o Deus da vida, e não da morte. O sacrifício de Isaac, seu filho, corresponderia à anulação de projeto de vida de Deus. A vocação de Abraão é ser um construtor de vida, não um artífice da morte. Sacrifícios humanos, tanto ontem como hoje, são inadmissíveis, e, consequentemente, o texto parece reagir ao culto dos reis ao deus Moloc ou a outras divindades que podem ter incluído sacrifícios humanos não só em Israel e Judá, mas também em seus arredores.

  1. Evangelho: Mc 9,2-10

Na transfiguração relatada no Evangelho de Marcos, a passagem-chave é a exortação dirigida aos três discípulos: Pedro, Tiago e João. Uma expressão/exortação que do passado reverbera com força, atravessando tempo e espaço e nos alcançando com igual intensidade: “Escutai-o”. Na Quaresma se faz necessário abrir os ouvidos para escutar com verdadeira atenção. Não se fazem discípulos que fecham os ouvidos às palavras de seu mestre. Todo discípulo é, primeiramente, de fato e de verdade, um ouvinte.

Todavia, é necessário também ouvir os outros. Não vivemos isolados em ilhas. Somos seres relacionais e, do ponto de vista cristão, vivemos em comunidades. Tudo leva a considerar o outro como alguém que possibilita o diálogo: falamos e ouvimos a fim de construir verdadeira humanidade. Às vezes fica a impressão de que temos grande facilidade de ouvir os meios de comunicação, discursos os mais diversos, até mesmo alguma música. Porém, não temos a mesma facilidade para escutar alguém. Uma multidão de sons pode povoar nosso interior, desde que não sobre espaço para os sons de irmãos e de irmãs. Transformamo-nos em consumidores de ruídos e, negando os sons da fraternidade, esvaziamo-nos de nós mesmos. Escutar Jesus dentro de nossos próprios contextos é o maior dos nossos desafios. Acolher a palavra de Jesus requer tempo e qualidade de tempo. Caso contrário, corremos o risco de confundir os ruídos do cotidiano com a voz do nosso Mestre.

Jesus sobe a montanha para viver uma experiência inusitada. Lá ele, diante dos olhos estarrecidos dos três discípulos, se transfigura. Suas vestes são mudadas e passam a se parecer com aquelas dos mártires (cf. Ap 3,15.18). No entanto, para além da transfiguração, aparecem também Elias e Moisés. A presença deles vem confirmar o caminho de Jesus na direção do conflito final. A presença deles indica que a sua missão não é marcada pela neutralidade. De forma contrária a essa percepção, a vida de Jesus transcorre num caminho marcado pelo conflito e, no conflito, assume uma posição de solidariedade a favor das vítimas que o conduzirá inevitavelmente à morte.

Todavia, a missão de Jesus não era a mesma de Pedro. Quantas e quantas vezes nossas visões e interesses se distanciam do projeto de Jesus? Pedro, diante de uma experiência fantástica, pensa que o alto da montanha é o melhor lugar para permanecer. Sente o desejo de fazer tendas, estabelecer-se ali mesmo e vivenciar a vida cristã como se fosse um eterno retiro, longe do barulho das pessoas, das cidades e vilas. Um ambiente ideal para viver de contemplação. Pedro, porém, ouvia tão somente a própria voz. Tinha um projeto pessoal que se distanciava muitissimamente do projeto de Jesus. Quando ouvimos a própria voz, deixamos de ouvir a voz de Deus. Nesse sentido, os ruídos que nos atrapalham não são somente externos, mas também internos.

Descer a montanha será, para os discípulos, muito mais difícil do que subi-la. Eles se acostumariam facilmente com a zona de conforto proporcionada pela experiência religiosa e da experiência ficariam reféns. Transformariam a vida de Cristo numa experiência intimista e desconectada da realidade conflituosa. Mas se fazia necessário descer a montanha. É justamente em meio ao povo que se vive e se faz missão. Jesus bem sabia que a boa notícia não poderia ficar escondida. Descer a montanha traz o sentido de fazer o caminho para dentro da realidade. Toda a mensagem de Jesus nasce da realidade política, social, econômica e religiosa. Ele jamais nega a realidade, pois vive para transformá-la. Nesse caso, o cotidiano é o espaço privilegiado da atuação de Jesus. Ele pode até mesmo, por breves momentos, subir montanhas. Mas suas raízes e missão se encontram no meio do povo.

Pedro, como porta-voz de seus companheiros, é apresentado como carente de inteligência. Ele traz no coração o desejo de reter permanentemente a revelação da glória celeste. Pode-se dizer que esse desejo, na perspectiva humana, é compreensível, mas se contrapõe ao chamado dos discípulos ao seguimento de Jesus pelo caminho da cruz. Eles experimentam uma antecipação da bem-aventurança celestial e por isso dizem: “É bom estarmos aqui”. Pedro pensava segundo a perspectiva do triunfo. Imaginava um Cristo vitorioso para vitoriosos. A lógica da vitória impedia Pedro de se ver adequadamente e, por isso, sua proposta parecia querer desviar Jesus de seu trajeto de solidariedade com as vítimas da história. Jesus, por sua vez, constrói seu itinerário pessoal e teológico com base na solidariedade com os pequeninos, mesmo que para isso seja necessário ser vítima do império romano, como tantos outros do seu povo já haviam sido.

  1. II leitura: Rm 8,31b-34

Quem poderia impedir a chegada do projeto de Deus? Não existe nada que possa impedir Deus de manifestar seu amor para com a humanidade. Cristo, morto e ressuscitado, é o grande artífice do projeto divino. Por meio dele, e somente por ele, a comunidade pode se aproximar do amor de Deus.

Em Romanos, a vitória pertence a Deus. A pessoa justificada por ele possui a certeza da vitória. Em Cristo, somos mais do que vencedores. A base fundamental de toda a vida reside naquilo que aconteceu em Jesus. Por causa dele, e somente por causa dele, é que podemos caminhar em direção ao amanhã.

III. Pistas para reflexão

– De consumidores de ruídos, precisamos nos transformar em facilitadores de diálogos. O ruído provoca atritos e acaba por construir muros entre as pessoas. E o diálogo é um exímio instrumento para criar pontes entre as pessoas. Somente por meio do diálogo, ou seja, da arte de falar e reconhecer esse mesmo direito ao nosso interlocutor, é que podemos conhecer novos mundos que estão além de nós mesmos.

– A vida cristã acontece na história, em meio aos conflitos nela gerados, e não no alto das montanhas. Jesus deixou bem claro que o local preferencial para o exercício da vida cristã é justamente entre as pessoas. A vida cristã não pode ser vista, nem muito menos ser compreendida, como fator de alienação. A história é o palco onde vivemos intensamente a vida de Cristo a fim de transformá-la.

Luiz Alexandre Solano Rossi

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]