Roteiros homiléticos

3 de fevereiro – 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

O PROFETA NÃO É AGRADÁVEL

I. INTRODUÇÃO GERAL O profeta não repete o que todos deveriam estar cansados de ouvir. O profeta vê o que outros não veem, testemunha o que Deus vê e como Deus vê a realidade. Não fala em seu nome, e sim em nome de Deus – por isso é profeta. Mas o Mercado não admite contestação, não admite que se fuja do pensamento único. Não quer testemunho de outra verdade que não seja a sua. O profeta, além disso, está sempre em sua terra, qualquer lugar é sua pátria, porque a verdade de Deus não tem pátria. O profeta não é bem recebido em sua pátria e em lugar nenhum, porque qualquer lugar é pátria sua. II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Jr 1,4-5.17-19) O jovem Jeremias sente o chamado de Deus e as dificuldades da missão de profeta, mas também o apoio e a segurança que lhe vêm do mesmo Deus. O texto selecionado para a leitura de hoje não inclui a manifestação de insegurança de quem se sentia jovem demais, a confirmação, o alcance de sua missão e dois símbolos da tarefa do profeta e do momento histórico em que vai agir. Ele deverá enfrentar sem medo as autoridades e anunciar o pensamento de Deus diante da iminente invasão do império babilônico (vv. 6-16). O texto de hoje, nos primeiros versículos (4-5), lembra que desde sempre Javé queria Jeremias profeta; antes que nascesse, já o consagrou e o fez seu profeta. Ninguém é profeta por acaso; o profeta é querido por Deus antes mesmo de sua existência. Ele é consagrado, separado para a função, a qual é mais importante que a do sacerdote e a do rei. Tem autoridade para denunciar, em nome de Deus, tanto a má administração e as intrigas políticas como a falsidade do culto. E essa função não se restringe ao seu povo: será profeta para as nações. O profeta tem voz universal. Na segunda parte do texto de hoje, Deus dá força ao profeta, que não deve deixar de dizer nada do que ele lhe diz, nada do que percebe ser o pensamento dele. Não deve ter medo, sempre o pior conselheiro. Se a cidade de Jerusalém poderá ser invadida, suas muralhas demolidas e suas colunas derrubadas, o profeta será mais resistente, será muralha de bronze e coluna de ferro. Não fica sem perseguição, mas Deus estará com ele para defendê-lo. 2. II leitura (1Cor 12,31-13,13) Depois de comentar o valor, o significado e as dificuldades dos dons carismáticos, Paulo fala agora do caminho sem defeitos e superior a todos. Os capítulos 12, 13 e 14 da primeira carta aos Coríntios estão interligados pelo que tecnicamente se chama paralelismo quiástico ou cruzado, correspondendo-se assim: (12) A- Os dons carismáticos; (13) B- O caminho superior e (14) A’- Os dons carismáticos. Seria como um sanduíche de pão com carne ou recheio: as duas fatias de pão seriam os capítulos 12 e 14, em que Paulo fala dos carismas; a carne ou recheio seria o capítulo l3, em que Paulo fala do caminho superior a tudo o mais. É o texto da 2ª leitura de hoje. O caminho superior a tudo é o que se chama caridade ou amor. Nenhuma das duas palavras, contudo, satisfaz plenamente. A língua grega tem a palavra filía, que significa a simples amizade, a palavra eros, que significa o amor de ordem sexual, e a palavra agape, que era pouco utilizada. Foi esta que Paulo escolheu para indicar o amor cristão, que não se identifica com a simples amizade nem traz a marca egoísta do desejo sexual. O amor cristão é, acima de tudo, solidariedade, superação do sistema do império de dependência e clientelismo. Nós nos amamos, somos solidários, somos iguais, somos irmãos, e não dependentes uns dos outros. Podemos notar como o texto de hoje faz alusões diretas ou indiretas aos dons tão valorizados no movimento carismático de Corinto. Assim, sem o amor, falar em línguas seria como um bronze que vibra ou címbalos (instrumentos semelhantes aos pratos de uma banda de música) barulhentos. Lembra o dito popular: “Lata vazia é que faz barulho”. Até quando Paulo fala das características do amor cristão, a solidariedade, podemos perceber alusões indiretas aos perigos que ele via no movimento em Corinto: o amor não é isso, não é aquilo etc. Mesmo entre as três virtudes principais, chamadas de teologais, a caridade ou amor tem a primazia. A fé termina quando nossos olhos se abrem para Deus definitivamente (lembrar que o espelho daquele tempo não era como o de hoje, mas apenas uma peça de bronze bem polido). A esperança termina quando alcançamos o esperado, maior do que aquilo que esperávamos. Só o amor permanece e chega à plenitude na eternidade. 3. Evangelho (Lc 4,21-30) Jesus, na sua terra, fala com clareza do seu programa e da falta de fé dos conterrâneos. Querem matá-lo, mas, passando pelo meio deles, ele segue em frente. Na leitura que fez na sinagoga, Jesus interrompeu o texto de Isaías antes da frase: “o dia da desforra do nosso Deus”. Essa frase se desenvolve no texto de Isaías, afirmando que as nações que tinham escravizado Israel viriam a ser suas escravas. Jesus omitiu tudo isso, e os ouvintes, familiarizados com os textos bíblicos, certamente perceberam. A salvação que ele hoje realiza é universal, não é nacional nem particularista. A reação dos conterrâneos começa com admiração pelas palavras agradáveis que saíam da boca de Jesus. Acharam linda a fala de Jesus comentando o ano do agrado de Deus anunciado por Isaías. Logo em seguida vem o espanto: “Esse aí não é o filho de José?”. Lucas, que começou seu evangelho falando do nascimento virginal de Jesus e, depois, disse que ele “era considerado filho de José”, aqui não faz questão desse porém. Os conterrâneos continuam enganados quanto à verdadeira identidade de Jesus. Jesus se antecipa e, antes que o questionem, retoma a fala, comparando Nazaré e Cafarnaum. Há aí uma incoerência: Lucas ainda não narrou a atuação de Jesus em Cafarnaum; como vai compará-la com o que acontece em Nazaré? Marcos e Mateus, por seu turno, situam a visita de Jesus a Nazaré depois de ele ter centralizado sua atividade em Cafarnaum. A incoerência não importa; Lucas quis situar a visita de Jesus a Nazaré no início da sua atividade missionária para fazer dessa visita um manifesto do programa de Jesus. Cafarnaum era considerada uma cidade impura porque ali viviam muitos gentios; continuava, no entanto, sendo cidade israelita. Mas Jesus ainda vai além: fala de milagres feitos pelos famosos profetas Elias e Eliseu em favor de não israelitas. Ele também veio para os não israelitas. Do espanto, os conterrâneos de Jesus passam à indignação. Entendem o significado universal da missão que Jesus se atribui e pretendem precipitá-lo do alto da colina, uma alternativa para o apedrejamento. “Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu seu caminho.” III. PISTAS PARA REFLEXÃO – A fé costuma ser muito bem-aceita enquanto não toca na vida cômoda e nos interesses pessoais ou de grupo. Já dizia alguém: “O povo gosta de rezar porque rezar não lembra os pecados, e reunião lembra!”. – No trecho do evangelho de hoje, os que querem matar Jesus não têm sucesso, pois, “passando pelo meio deles, Jesus seguiu seu caminho”. Os que se consideravam donos de Jesus, bons conhecedores dele, quando o veem se mostrando aberto a todos, já não o aceitam e querem dar-lhe um fim. Corremos o risco de nos considerar donos de Jesus e de sua mensagem. Somos capazes de dizer tudo o que se pode ou não se pode fazer em nome da fé em Jesus e na sua Igreja. – A preocupação muitas vezes é apenas manter e conservar as estruturas. Mas o profeta é livre desses condicionamentos: está ligado apenas a Deus, que o sustenta, e ao que Deus quer que ele diga. – O profeta é um eterno suspeito, um eterno perseguido. Quem prefere se dar muito bem com as estruturas, sentir-se confortável e tranquilo diante de tudo o que manda neste mundo jamais será capaz de assumir a missão profética. – Os profetas estão em extinção; sua voz é calada e todas as portas se fecham para eles. Se Deus os chama, há os homens que os impedem de se manifestar ou de ser ouvidos. O peso das estruturas e dos interesses é tão grande, que ninguém mais se arvora em profeta ou, então, sua voz não encontra eco, porque o eco também está proibido. Quem não se arrisca a ser precipitado morro abaixo jamais será profeta. – Na eucaristia, celebramos o gesto profético supremo da coerência até a morte e morte de cruz, única capaz de abrir caminho para a mesa comum.

Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

* Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico. Autor dos livros A Bíblia e suas contradições: Como resolvê-las e A missa: Da última ceia até hoje, ambos publicados pela Paulus. E-mail: [email protected].