Roteiros homiléticos

30 de agosto – 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Celso Loraschi

A palavra de Deus: vida para todos

I. Introdução geral

A palavra de Deus tem o objetivo de promover a vida para todas as pessoas. É o tema central das leituras deste domingo Somos herdeiros de uma tradição de fé na qual Deus revelou seu plano de amor e salvação a toda a humanidade. O povo de Israel, desde a sua origem, faz a experiência desse amor de Deus, sente sua presença libertadora e procura acolher o seu projeto. Por meio das palavras colocadas na boca de Moisés (I leitura), Deus alerta para a importância da prática de normas e estatutos a fim de garantir as condições de vida e dignidade na terra prometida. Mais tarde, essas normas e estatutos foram interpretados segundo os interesses do sistema sacerdotal de pureza. Tornaram-se legalismo excludente, contra o qual Jesus se posiciona. Seu ensinamento e sua prática seguem por outro caminho: é do coração de cada um de nós que vem o discernimento para o bem ou para o mal (evangelho). A palavra de Deus é caminho, verdade e vida. A carta de Tiago insiste sobre a necessidade de ouvi-la com atenção e pô-la em prática, renunciando a toda “imundície e malícia” (II leitura). Quem segue com docilidade a palavra de Deus possui a vida em si mesmo, livra-se da corrupção do mundo e solidariza-se com as pessoas que passam por dificuldades.

II. Comentário dos textos bíblicos

  1. I leitura (Dt 4,1-2.6-8): Normas e estatutos que garantem a vida

O acontecimento do êxodo, com a organização do povo de Israel em tribos na terra prometida, sempre foi recordado pelas sucessivas gerações. Em cada época histórica, a memória do passado funciona como luz a iluminar o sentido do presente e projetar um futuro melhor. Esse é também o objetivo da I leitura da liturgia de hoje. O discurso colocado na boca de Moisés antes de entrar na terra prometida visa a aprofundar a importância das normas e estatutos que garantem a vida de liberdade e de paz para o povo.

Sabemos que o povo de Israel se formou no processo da caminhada de libertação da escravidão do Egito. Diversos grupos de marginalizados uniram-se ao redor do mesmo sonho. Fizeram a experiência de fé no Deus vivo e libertador. Identificaram-se como “povo de Deus”. Na terra de Canaã, organizaram-se em tribos e nela puderam viver orientados por leis estabelecidas com base nas descobertas feitas na convivência durante o êxodo e no processo de organização na nova terra. São normas e estatutos que orientam desde as relações familiares até as tribos como um todo. Abrangem princípios econômicos (= a terra é de Deus e seus frutos devem ser partilhados segundo a necessidade de cada família), princípios políticos (= descentralização do poder e corresponsabilidade nas decisões) e princípios ideológico-religiosos, com fidelidade ao projeto libertador de Deus, cujo centro é a defesa e a promoção da vida.

Sabemos também que o regime tribalista em Israel, que durou mais ou menos 200 anos (de 1250 a.C. a 1050 a.C.), foi sucedido pela monarquia. As normas e estatutos foram modificados segundo os interesses dos reis. Nesse sentido, o texto de Deuteronômio pode ser visto como uma denúncia contra essas modificações que fortalecem um sistema político opressor do povo. O ensinamento oficial não é o mesmo de Moisés, isto é, já não corresponde ao ideal de uma sociedade justa. Deuteronômio, então, resgata a autoridade do maior representante da Lei, Moisés, e atualiza a memória de suas palavras: “Nada acrescentareis ao que eu vos ordeno e nada tirareis também: observareis os mandamentos do Senhor vosso Deus tais como vo-los prescrevo”. Uma grande nação não se faz com poder centralizado, nem com forte exército, nem com uma economia que privilegia um pequeno grupo. Uma grande nação se faz pela promoção da justiça social, pela qual todas as pessoas têm condições de viver bem. As leis que defendem esse ideal devem ser respeitadas. 

  1. Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23): A lei inscrita no coração

Jesus sabe onde pisa. Conhece o sistema que rege a vida dos seus conterrâneos. Sabe quem são e como se comportam os agentes desse sistema. Desde o início de seu ministério público, deixou claro o seu posicionamento: veio para resgatar a vida roubada pelas imposições absurdas do poder político e religioso que imperava na Palestina. O evangelho deste domingo relata uma das controvérsias entre Jesus e o grupo dos ideólogos do sistema de pureza: fariseus e escribas.

Por meio dessa controvérsia, deduz-se como o ensinamento oficial exercia pressão permanente sobre o cotidiano da vida das pessoas comuns. A lei deveria ser um caminho para garantir o bem-estar de todas as pessoas e proporcionar uma convivência respeitosa. Para os escribas e fariseus, porém, tornou-se o meio de controle de todas as ações de cada pessoa. Como o texto de Marcos nos mostra, os casuísmos chegavam ao extremo de obrigar as observâncias nos mínimos detalhes, como lavar as mãos até o cotovelo antes de comer o pão “e muitos outros costumes...”. Ensinavam que essa era uma “tradição dos antigos” e, portanto, revestia-se de um caráter sagrado. Não podia ser violada.

A tradição dos antigos, porém, assim como era apresentada no tempo de Jesus, não correspondia ao sentido original da lei de Moisés. Originalmente, a lei em Israel visava à manutenção de uma sociedade baseada na justiça, na liberdade e na paz, como no tempo do tribalismo. A tradição dos antigos havia sido modificada pelos rabinos judeus a partir da organização do sistema sacerdotal de pureza. Ao redor do grande símbolo religioso que era o templo de Jerusalém, os rabinos fizeram sua própria interpretação da lei mosaica e acrescentaram grande quantidade de outras normas, impondo ao povo um peso insustentável. Não se podia viver normalmente sem infringir alguma dessas normas. Era uma maneira coercitiva de manter o povo na dependência dos interesses do grupo que controlava o sistema do Templo.

O texto mostra que qualquer infração era cobrada. Em todo lugar havia “espiões”. Podemos imaginar o que sentia uma pessoa do povo diante das exigências religiosas oficiais e de sua impossibilidade de cumpri-las. Leve-se em conta que esses ensinamentos eram incutidos desde a infância. Eram “mandamentos humanos” que não honravam a Deus.

A infração dos discípulos da exigência de lavar as mãos antes da refeição e a cobrança dos fariseus e escribas transformaram-se em ocasião propícia para Jesus oferecer outro ensinamento e indicar outro modo de viver o cotidiano. A pessoa, para honrar a Deus e prestar-lhe um culto digno, não precisa estar atrelada a um sistema de leis que oprime e exclui. Deve, sim, prestar atenção na lei inscrita por Deus em seu coração. É do interior de cada um de nós que saem as boas ou más intenções, as que nos tornam puros ou impuros. Deus mora em nós e, do mais profundo de cada pessoa, ele indica o caminho a seguir. Podemos rejeitar as suas indicações e manter-nos fechados em nosso egoísmo. A conduta de cada um de nós revela se seguimos a Deus ou as “intenções malignas: roubos, assassínios, prostituição, adultério, ambições desmedidas, arrogância...”.

  1. II leitura (Tg 1,17-18.21b-22.27): Docilidade à Palavra

A carta de Tiago revela um dos principais empenhos existentes nas comunidades cristãs primitivas: ouvir e praticar a Palavra. Jesus se tornou o caminho da salvação. O ensinamento e a prática de Jesus agora são a nova lei a ser seguida. Jesus é a Palavra da Verdade que liberta e salva. Não basta, porém, ser ouvintes que logo esquecem. É necessário ser praticantes.

Percebe-se que Tiago está atento ao comportamento que algumas pessoas da comunidade estão demonstrando: há sinais de “imundície” e de “malícia”. Isso significa que o jeito de viver que deveria caracterizar os seguidores de Jesus não está sendo levado a sério por alguns. “Imundície” é próprio de quem adota atitudes sujas: injustiça, exploração, mentira, falsidade, corrupção e tantas outras coisas próprias de pessoas egoístas. Também o termo “malícia” denota o comportamento da pessoa que se deixa conduzir pelo mal. No texto, encontra-se a advertência: “Deixem de lado qualquer imundície e sinal de malícia”.

Eis o que Tiago propõe aos cristãos do seu tempo e a nós hoje: “Recebam com docilidade a Palavra que lhes foi plantada no coração e que pode salvá-los”. Aqui percebemos íntima ligação com o evangelho de hoje: é de dentro do coração de cada um que provêm tanto as coisas boas como as más. É necessário prestar atenção no que Deus fala dentro de nós. A Palavra é Jesus e seu evangelho. Recebê-la com docilidade significa renunciar a toda espécie de imundície e de malícia e optar por fazer o bem uns aos outros, como Jesus nos ensinou.

III. Pistas para reflexão

- A palavra de Deus visa garantir a vida de todas as pessoas: O povo de Israel tinha consciência de que a sociedade deve ser organizada de acordo com o plano de Deus. A terra foi-lhe dada por Deus a fim de que nela todas as tribos pudessem conviver como uma só família. Por isso, estabeleceram “normas e estatutos” para viver na liberdade e promover a dignidade e a paz social. Terra prometida + mandamentos de Deus = vida sem exclusão. Pode-se refletir sobre os princípios irrenunciáveis para uma vida feliz tanto na família como na sociedade...

- A palavra de Deus no coração de cada pessoa: Jesus ensinou a prestar atenção no que Deus revela no coração de cada um de nós. Aí está inscrita a sua vontade. Tiago exorta: “Recebam com docilidade a Palavra que lhes foi plantada no coração e que pode salvá-los”. É preciso aprender a discernir o que é bom e ser fiel ao plano de Deus, evitando toda “imundície e malícia” da realidade atual... Pode-se refletir sobre a importância da Bíblia como palavra de Deus, fundamental para a formação de boa consciência em vista da sociedade justa e fraterna.

- No domingo que vem começará o mês dedicado à Bíblia. Trata-se de ótima oportunidade para que a Igreja tenha membros mais conscientes, mais bem formados na palavra de Deus e mais seguros da decisão de serem cristãos católicos.

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) e assessor do Cebi, SC.
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