Roteiros homiléticos

31 de janeiro – 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

Não existem fronteiras quando se fala de libertação

I. Introdução geral

Somos chamados por Deus para uma missão histórica. É justamente na história que devemos construir o projeto que exige sempre inserção e protagonismo. Jamais podemos esquecer que Deus age no mundo por meio de seus filhos e filhas. Todas as vezes que nos negamos a agir, sonegamos a ação libertadora de Deus na história de muitos. Da mesma forma que Deus assumiu a história do ser humano como sua, devemos assumir a história de todos os pequeninos que vivem na periferia, a fim de que eles também possam viver em abundância de vida.

II. Comentários aos textos bíblicos

1. I leitura: Jr 1,4-5.17-19

 Na primeira leitura, encontramos Jeremias relatando sua vocação. Ele recebe uma palavra. Não se trata de uma palavra qualquer. É a palavra de Javé, portanto, algo dinâmico e poderoso. Uma palavra que não volta, enquanto não cumpre o seu objetivo. Uma palavra que acontece, que irrompe na vida do profeta e da qual ele não tem como desviar-se. Também devemos perceber que essa palavra é recebida dentro da história. Aponta para o caráter histórico e dinâmico da ação de Javé. A palavra de Deus acontece na história – no dia a dia de homens e mulheres. Essa percepção de Jeremias é fundamental para entender sua vida, ministério e vocação: uma percepção de que Javé lhe fala desde dentro da história. Ele não é chamado para se alienar da história, mas sim para viver profunda e intensamente o papel que Deus lhe concedeu que vivesse.

Deus fala ao profeta: “eu conheci você”. Trata-se de um conhecimento que se efetua no contato prático, na experiência do cotidiano, no relacionamento intenso. O texto não está dizendo que Javé apenas tomou conhecimento dele, que sabia de sua existência. Absolutamente, não! O texto bíblico está nos assegurando que, desde tempos remotos, Javé estava em relacionamento intenso com o profeta, dedicando-lhe cuidado, preocupação e providência.

E Deus acrescenta: “Eu o consagrei”. Jeremias é separado do ambienteprofanoparaviver uma relaçãoespecialcomDeus. Privilégio, diríamos! Mas, se olharmos bem, veremos queeste “ser consagrado” não indica uma qualidade, e sim uma função. Jeremias foi consagrado paraviver uma função, exercer uma tarefa. Enganam-se os que pensam que a consagração fez de Jeremias uma pessoa superprotegida e intocável. Puro engano. A leitura do texto bíblico nos leva a perceberumhomemque viveu contradições, que passou porvergonha, que apanhou e foi torturado; umprofetaque chorou nas mãos de Javé e dos homens. Contudo, não desistiu nem de um nem de outro! Do começo ao fim do livro podemos perceberesseduplo vaivém da vida consagrada de Jeremias. Suadedicação a Javé é inquestionável e suaopçãopelopovopobre e sofrido é de um colorido excepcional.

2. II leitura: 1Cor 12,31-13,13

A segunda leitura do apóstolo Paulo nos remete ao conhecido hino do amor, que deve ser lido, interpretado e vivido como proposta comunitária para orientar o povo de Deus. O caminho do amor ou ágape deve ser compreendido como entrega generosa e livre. E o ponto alto do ágape divino pode ser sem dúvida reconhecido quando Deus enviou seu Filho unigênito (Jo 3,16). Pode-se dizer que o amor de Deus se tornou visível no “ato de entrega”. Deus como que sai de si mesmo para amar os seres humanos, que, por serem imagem e semelhança dele, são capazes de amar. Nesse sentido, jamais o amor na Igreja poderia ser pensado e vivido de forma parcelada. Na Igreja, o amor deve ser tudo em todos.

Existem muitos caminhos pelos quais podemos andar. Porém, o apóstolo Paulo nos ensina que há um caminho bem melhor. Infeliz é quem dá passos em caminhos que não levam a lugar algum. O caminho proposto por Paulo – o amor – é aquele que nos leva a atingir o alvo da vida proposto por Deus. Não é por menos que Paulo, nos vv. 4-7, desfila 15 qualidades do amor. Sete indicam as coisas que o amor é e faz, e oito o que o amor não é e não faz. O amor se manifesta como grande lago onde uma pedra produz ondas sucessivas. Somente o amor pode dar unidade interior, tanto ao cristão como à comunidade.

Não é suficiente ter fé e esperança. Mesmo que ambas sejam elementos essenciais para construir a vida humana, o amor é que se apresenta como realidade que completa o ser humano e o leva a viver numa nova realidade. A ausência do amor deixa espaços – ao egoísmo, a rixas, a ciúmes – que precisam ser urgentemente preenchidos. É o amor que nos move em direção aos outros e permite que derrubemos os muros que causam separação. Quem não ama ao outro também é incapaz de amar a si mesmo; quem não ama o próximo a quem vê, certamente não desenvolverá nenhum sentimento amoroso para com Deus. Amar, nesse sentido, não é mera opção que fazemos. Trata-se de imperativo que recebemos.

3. Evangelho: Lc 4,21-30

A missão de Jesus se torna clara quando ele, na sinagoga de Nazaré, lê o profeta. Porém, não é somente questão de leitura de um texto sagrado. É necessário perceber a ousadia de Jesus ao afirmar, após a leitura, que se cumpria nele cada uma dessas palavras. Em seu modo de ser, pensar e viver, Jesus assume a tradição profética e, por isso, se apresenta como o maior de todos eles. Um profeta que traz a boa notícia para os pobres, porque foi ungido pelo Espírito de Deus. A presença do Espírito de Deus em Jesus é fonte de libertação para os pobres e, ao mesmo tempo, ratifica a missão de Jesus junto àqueles que vivem na periferia da vida. Mas não se trata de uma libertação para poucos. Jesus utiliza o exemplo de outros profetas, Elias e Eliseu, com o propósito de mostrar que a mensagem de libertação não se restringe a um único povo. Os dois profetas operam os milagres da ressurreição e da cura do leproso em benefício de estrangeiros. O próprio Jesus ressuscitará o filho da viúva de Naim (Lc 7,11) e libertará da lepra um samaritano (Lc 17,12). O ensinamento é muito claro: o que nele vale não é pertencer a um povo que decide, é a graça de Deus e a expectativa das pessoas.

Não é possível e imaginável privatizar a salvação e libertação de Jesus Cristo. Se muitos desejam colocar Jesus dentro de uma redoma a fim de manipulá-lo, é sempre de bom tom lembrar que Jesus desfez e desfaz todas as barreiras e fronteiras que queiram impedir seu projeto de libertação em favor de todos.

O projeto de Deus é global e tem início na comunidade dos oprimidos. Não existem fronteiras quando se fala em libertação. Jamais será possível trancar a boa-nova do evangelho entre quatro paredes. O hoje de Jesus anuncia a chegada do ano da graça. Em Jesus, o tempo se renova com a renovação das relações entre as pessoas. Não mais a escravidão e a opressão. E quando é que Jesus manifesta sua presença libertadora? Sempre no hoje de cada um de nós e de nossas comunidades. Em Jesus, o hoje se apresenta como algo contínuo que atualiza sua presença libertadora. O tempo da salvação é anunciado e introduzido por Jesus. Sempre é hoje para Jesus!

III. Pistas para reflexão

- É possível perceber que o projeto de Javé se impõe sobre Jeremias de modo taxativo e determinante. Estaria o texto dizendo-nos que o profeta está em absoluta dependência de Javé e teria consciência de ser mero instrumento em suas mãos e planos? No entanto, Jeremias reage forte e imediatamente: “Ah, Senhor Javé, eu não sei falar, porque sou jovem”. Não se trata apenas de simples desculpa. Não é exagero de Jeremias. Na verdade, seu argumento é convincente. Ele está dizendo que ainda não é um adulto; não é uma pessoa que tenha atingido a maturidade; não tem a vivência e a experiência dos mais idosos, como também não tem experiência para falar. Jeremias está querendo dizer, com todas as letras, que não deseja ser profeta. Contudo, Deus já o escolheu. Agarrou um instrumento aparentemente imprestável para o exercício da função e o preparou para o exercício obediente da missão. Estamos preparados para a surpreendente vocação que provém de Deus? Que desculpas podemos dar diante de Deus?

- Quem não ama o outro não é capaz de amar a si mesmo e muito menos a Deus. Como amaremos a Deus, que não vemos, se não amamos o outro, a quem vemos? Talvez seja necessário reconhecer que nenhum relacionamento para o alto seja possível se antes não existir um relacionamento com os outros. Somente o encontro com o próximo nos leva ao encontro com Deus. Nesse sentido, devemos, com muito maior cuidado, reconhecer Deus na face de todas as pessoas com as quais convivemos.

Luiz Alexandre Solano Rossi

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no Programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUC-PR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó e Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: [email protected]