Roteiros homiléticos

3º Domingo da Quaresma – 4 de março

I. Introdução geral

A Quaresma é um tempo oportuno para revisitarmos a nossa condição batismal, o que implica guardar o precioso tesouro da fé, que brota da obediência à Palavra de Deus. Sem verdadeira escuta das Escrituras, não é possível a fé. Mas o Deus que nos fala na Bíblia fala igualmente na criação, na história do povo, nos acontecimentos da vida e, de modo especial, nas celebrações. Na liturgia, a Igreja comunica a Palavra do Senhor pela proclamação das Escrituras e pelos sinais e ritos que dela extraem o seu significado (cf. SC 24). Contudo, quando os ritos e símbolos perdem seu vínculo com a Palavra, e assim também a vida cristã, a liturgia e demais expressões religiosas podem se degenerar em idolatria.

II. Comentário dos textos bíblicos

Na sequência do itinerário quaresmal, a comunidade que adentrou com Jesus o deserto para vencer o adversário (domingo das tentações) subiu ao monte para reconhecer sua identidade filial e o apreço amoroso que o Pai lhe devota (domingo da transfiguração). Seguindo os passos do Filho de Deus rumo à Páscoa, somos convidados a aprofundar a relação com o Deus da aliança, buscando purificar nossa experiência religiosa, que encontra no evangelho deste domingo um parâmetro: Jesus é a expressão maior de obediência e de fidelidade a Deus, maior mesmo que o próprio Templo.

  1. I leitura: Ex 20,1-17 – As dez Palavras

Os dez mandamentos são chamados de “dez palavras” (decálogo), isto é, as palavras que, de modo proeminente, Deus entrega ao povo para que sejam observadas. Na versão do Êxodo (primeira leitura), o decálogo é introduzido por duas oportunas recordações: quem fala ao seu povo é o Deus libertador que o tirou da escravidão do Egito e não tolera a idolatria, mas recompensa e protege os que guardam a sua lei; ele é o Deus que, depois de ter criado tudo o que existe, santificou o sábado como dia memorável do seu repouso. Mas é também o dia do repouso, da dignidade e da liberdade humanas. Dessa forma, a lei de Deus, enquanto instituição anterior a qualquer outra, existe para plenificar a vida do povo e para que já não se reproduzam os esquemas de opressão do Egito.

A enumeração dos dez mandamentos decorre dessas afirmativas importantes. Não se trata de um deus estranho, mas daquele que já é conhecido, na sua potência do seu ato criador e na força de seu braço libertador. Os mandamentos são frutos da salvação do povo e da sua fé no Deus que o criou. Não são exigências preceituais sem história e sem uma relação que as preceda e sustente. Estão fundamentados numa experiência e num credo e podem, por isso, ser observados como resposta àquele que é o proponente da aliança.

Em relação ao evangelho, a primeira leitura tem uma função didática de nos apresentar o horizonte do agir de Cristo e do povo. A recordação da libertação e do sentido do sábado, como advertências para que não se reeditem os males sofridos, servirá para entender o acontecimento da purificação do Templo. Além disso, alguns elementos podem ser tomados em paralelo para apontar também um sentido tipológico dos textos. O Deus que libertou o povo da escravidão do Egito manifesta-se na pessoa de seu Filho, libertando-o de suas ações idolátricas. Na primeira leitura, evoca-se a Páscoa dos judeus; no evangelho, a nova Páscoa da ressurreição, por meio da imagem do novo Templo que se erguerá em três dias. Antes, a obra da criação é concluída com o repouso depois do sexto dia. Depois, ao terceiro dia, após o repouso de sua morte, sucede a recriação da humanidade na ressurreição de Jesus.

  1. Evangelho: Jo 2,13-25 – Um ato de violência ou de solidariedade?

Uma moldura abre e apresenta o evangelho: a festa da Páscoa dos judeus comparece no início e quase ao final do relato (v. 13.23). Entre esses dois versículos estão os elementos característicos e decisivos do evangelho: a expulsão dos cambistas com o chicote em punho, o diálogo com os judeus e a glosa explicativa do evangelista a respeito da resposta de Jesus aos judeus. Na área externa do Templo existia um grande átrio que circundava o santuário, chamado de soreg. Ali podiam entrar os pagãos e também ali se estabelecera o comércio de animais para o sacrifício e os cambistas. Na Páscoa, essa atividade era muito intensificada. Esse mercado tinha a função de impedir que o dinheiro pagão entrasse no Templo, mas provavelmente não sem ágio... Era também um esquema que impunha aos peregrinos comprar ali animais que serviriam de oferenda para os sacrifícios. Longe de ser um serviço aos romeiros do Templo, a prática convertera-se em um sistema de exploração, beneficiando não somente os cambistas e vendedores, mas também a casta sacerdotal. Ou seja, a estrutura religiosa do Templo estava de tal modo contaminada pela ganância e pelo pecado que comprometia a sua real função de culto a Deus. Diante dessa situação, Jesus reage vigorosamente, à semelhança dos profetas que sempre denunciaram os desvios das funções do Templo como lugar de oração e de fidelidade. Já segundo um pensamento rabínico, o Messias viria com um flagelo na mão para instaurar um novo tempo.

Na fala de Jesus observa-se um sentido autoritativo: a expressão “casa de meu Pai” evoca sua relação singular com Deus. Mais que um ato violento, a expulsão dos vendilhões do Templo é gesto autorrevelador, pois reuniu muitos elementos constitutivos da identidade de Jesus: profeta, Messias e Filho de Deus. Convém lembrar que Jesus reage à violência anteriormente praticada contra os pobres e humildes por meio da exploração religiosa.

Já a objeção dos judeus tem por trás uma atitude de rejeição que denota falta de fé e contrasta com a dos discípulos. Os judeus lhe exigem uma comprovação, por meio de um sinal, que justifique sua atitude. Já os discípulos recordam as Escrituras, recorrendo ao Salmo 69, muito conhecido e apreciado na Antiguidade cristã como um salmo messiânico. A objeção, contudo, viabiliza a resposta de Jesus, que não responde à questão apresentada. Falando do seu corpo, como elucida a glosa do evangelista (v. 21), Jesus utiliza uma palavra em grego que se diferencia do edifício Templo, naós, isto é, santuário, o lugar onde o Santo habita. O verbo destruir (o Templo) aludiu à sua morte, e o verbo erguer à sua ressurreição. Este é o único sinal que Jesus lhes apresenta, em perspectiva futura: seu corpo ressuscitado, erguido ao terceiro dia, é a morada de Deus, pois em Jesus se realiza a fidelidade que já não se encontrava no Santuário de Jerusalém.

  1. II leitura: 1Cor 1,22-25– Os judeus pedem sinais

Entre os cristãos de Corinto, reinava outro tipo de violência e de idolatria: uma grande divisão entre pobres e ricos e, ainda, entre os partidos que lá se formaram – os de Paulo, os de Pedro e os de Apolo, bem como entre os de origem judaica e os de origem grega. Paulo era considerado pelos coríntios como um pregador de menor capacidade em relação a Apolo e a Pedro. Contudo, em sua pregação, o apóstolo muda o foco. Sem defender-se mediante a sabedoria e a eloquência, afirma a cruz de Cristo, único sinal apresentado como cerne da pregação da Igreja. A cruz responde, sim, à demanda dos que foram chamados, dos que guardaram a fé, isto é, dos que acolhem a Palavra de Deus, sendo considerada pelos judeus como escândalo e como insensatez pelos gregos. Loucura e fraqueza para os seres humanos, ela é expressão da sabedoria e da força divina. Esse é o cerne da Palavra que gera a fé cristã e requer a adesão dos chamados, contrariando a lógica dos que exigem sinais e explicações, tal como a dos judeus escandalizados com Jesus no evangelho. A cruz de Cristo é sinal que se afirma como maior do que as nossas recusas e infidelidades, pois nela está presente o amor fiel de Deus, que chegou a ponto de nos dar o seu Filho único para que tenhamos a vida.

III. Dicas para reflexão

O evangelho deste domingo termina afirmando que Jesus conhecia o ser humano por dentro. A Quaresma, como tempo de revisitar nossa adesão a Jesus, dada por meio do batismo, supõe deixar de lado qualquer sinal de religiosidade que nos distancie daquele que purificou o Templo de Jerusalém. A cruz e ressurreição de Jesus são ápice e expressão de sua fidelidade a Deus. Auxiliados por esse Deus que perscruta os corações, somos chamados a rever nossas infidelidades e nossa real adesão à vontade do Pai.

O Templo, como santuário onde Deus habita, é o corpo morto e ressuscitado de Jesus. O batismo nos insere nesse mesmo corpo de Cristo, fazendo-nos passar continuamente da morte para a ressurreição. Isto é, em Cristo somos também santuário onde habita Deus. A destruição do Templo implica também fazer morrer em nós um tipo de religiosidade idolátrica para fazer surgir nova edificação em Cristo, na qual se dá uma adoração verdadeira.

A Campanha da Fraternidade aborda neste ano o tema da violência. A superação da violência pela via da fraternidade é requisito indispensável da vivência da fé cristã. O ato de Jesus no Templo deve ser considerado como indignação contra outro tipo de violência que se pratica ao destituir e explorar os pobres com argumentos religiosos, mas distantes de Deus. O novo caminho instaurado por Jesus supõe o enfrentamento da violência com a Palavra da cruz, que vence com base naquilo que é aparentemente loucura e fraqueza.

Neste domingo convém recordar que o compromisso batismal comporta sensibilidade para com os irmãos e irmãs mais pobres. Nossas liturgias e demais instituições religiosas devem se pôr a serviço do soerguimento de tantos que têm a dignidade violentada pelos sistemas econômico, social e religioso. A defesa e a solidariedade com os pobres e a preocupação com a vida podem até ser lidas como atos de violência, mas são justa indignação em favor dos que são sistematicamente violentados pela exclusão.