Roteiros homiléticos

6 de novembro – Todos os Santos

Por Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

Os santos preparam o Reino

I. Introdução geral

A solenidade de Todos os Santos é tão importante, que tem precedência sobre o domingo do Tempo Comum. Ela celebra todos os santos, não só os canonizados. A canonização de um santo é algo custoso em todos os sentidos, e muitíssimos de nossos pobres perseguidos, que contribuíram fortemente para o advento do reinado de Deus no mundo, não deixaram recursos suficientes para serem canonizados. De Dom Oscar Romero, ainda não canonizado em razão de protelações no processo, até as humildes, analfabetas e desconhecidas Donas Sebastianas, todos os santos são comemorados hoje.

Eles mereceram ser assinalados para que escapassem da segunda morte, a morte definitiva. Os trabalhos de sua vida, quando não sua morte em favor das vítimas deste nosso mundo, uniram-nos ao sangue do Cordeiro e deram-lhes a faixa de campeões e o troféu da vitória. Viveram como fiéis filhos de Deus. Essa grandeza de serem filhos de Deus, a qual procuraram preservar contra tudo e contra todos, agora se abriu, como o botão de uma rosa, na glória de Deus. Entre eles, pobres e perseguidos que enxugaram as lágrimas dos que choravam, mataram a fome dos famintos da verdadeira justiça, tornaram senhores os que não eram ninguém neste mundo. Fizeram a sua parte, construíram a verdadeira paz.

II. Comentários aos textos bíblicos

  1. I leitura: Ap 7,2-4.9-14

O livro do Apocalipse foi escrito para dar esperança a comunidades cristãs da Ásia Menor, comunidades pobres e vítimas de perseguição. Eram perseguidas por não adorarem o império.

Nas cidades da Ásia Menor, onde surgiu o primeiro templo dedicado à deusa Roma, ali é que estava “o trono de satanás”, o lugar onde se cultuava a imagem do divino imperador, o “deus acessível”. Quem participava desse culto recebia uma marca que lhe abria todas as portas. Quem não participava, além de excluído, poderia ser até mesmo condenado à morte. Os cristãos não participavam e por isso eram marginalizados e perseguidos.

Chamava-se João o missionário itinerante que animava essas comunidades, incentivando-as a não ceder ao culto ao império. Por isso, ele foi preso na ilha de Patmos e de lá enviou o escrito, numa linguagem que os pobres e perseguidos poderiam entender e as autoridades do império não. Deu-lhes ânimo e aumentou-lhes a autoestima.

No trecho da primeira leitura de hoje, ele fala de uma visão do céu. Multidões, milhares de cada clã (12), de cada uma das doze tribos (12 x 12 = 144) do povo hebreu que não cederam ao culto imperial, receberam outra marca que não os deixou ser vítimas do castigo que virá para os opressores. Além deles, estão presentes também as multidões incontáveis dos santos de todas as outras tribos e nações.

Todos eram vencedores, vestiam mantos brancos, a cor dos vencedores nas competições esportivas – poderíamos dizer hoje: traziam a faixa de campeões –, e tinham o troféu, a palma, nas mãos. Não cultuavam mais Roma e o imperador; passaram a cultuar a Deus e ao Cordeiro. De onde vieram eles? Vieram da grande tribulação, a pobreza unida à exclusão social e à perseguição. Sua morte, seu sangue, unidos ao sangue e à morte do Cordeiro, deram-lhes o manto branco da vitória. A resistência até a morte deu-lhes a vida sem fim.

  1. II leitura: 1Jo 3,1-3

Os que nós chamamos de santos e hoje celebramos são os nossos irmãos que estão na glória. Como diz a segunda leitura de hoje, a graça de ser filhos de Deus, o botão que estava dentro deles, já se abriu em flor. Essa graça, esse dom de amor do Pai em nosso favor, faz-nos diferentes, como o mundo distante do Pai não é capaz de entender.

Falta-nos hoje apenas aquilo que não falta aos santos que celebramos: ver Jesus Cristo. Só nos falta ver segundo o conceito joanino de experimentar, conviver, ter comunhão plena com o Filho, Jesus. Isso nos tornará totalmente semelhantes a ele. E é essa convicção que nos faz manter-nos distantes do mal, tal como ele fez e como todos os santos fizeram.

  1. Evangelho: Mt 5,1-12a

Um detalhe, geralmente não observado na maioria das traduções, faz grande diferença na interpretação do Evangelho de hoje. Trata-se da primeira frase. Em geral, dizem as traduções: “Vendo as multidões”. O tempo do verbo grego utilizado (aoristo), porém, pede que se traduza: “Tendo visto as multidões, Jesus subiu à montanha”. Foi porque viu aquelas multidões que Jesus subiu à montanha e passou a dar a instrução aos discípulos, como Moisés, da montanha, deu ao povo a Lei ou Instrução de Deus. À vista das multidões, ele faz o Sermão da Montanha.

Que multidões eram essas? Eram as multidões de sofredores da Judeia e da Galileia, como também de fora, que, no final do capítulo 4 de Mateus, vinham buscar em Jesus uma solução para os seus problemas. Podemos dizer que são toda a humanidade sofredora. Por causa dela, para benefício dela, Jesus se senta como mestre, rodeado pelos discípulos, sobre uma montanha que lembra o monte Sinai. Ele instrui os discípulos não para que estejam voltados para o próprio umbigo, mas para que cuidem das multidões sofredoras que acorrem de toda parte.

Isso ajuda a entender a instrução. Note-se que, das oito bem-aventuranças básicas, a primeira e a última se referem ao tempo presente: “deles é o Reino dos céus”.

É preciso ter bem claro que “Reino dos céus” não é o céu, a glória eterna. “Reino dos céus”, frequente no Evangelho de Mateus, é o mesmo que reino ou reinado de Deus. Ele começa aqui na terra, onde o que se liga ou desliga é confirmado no céu; assemelha-se ao campo de terreno bom e terreno ruim, à rede que pega peixes bons e maus, à lavoura na qual o joio se mistura ao trigo. Só o respeito judaico pelo Nome o faz ser substituído pela palavra “céus”. A eles – aos pobres e aos perseguidos – pertence, portanto, o reinado de Deus, que tem início aqui na terra.

Os primeiros são os “pobres por espírito”, isto é, por força interior, por convicção, e os últimos são os “perseguidos por causa da justiça”, perseguidos por buscarem a justiça do reinado de Deus, tema caro a Mateus. Assim, os pobres e os perseguidos, de certo modo, identificam-se. E quem diz que aquele que aceita a pobreza, que não faz caso do dinheiro, não incomoda a sociedade e não sofre por isso? Mas destes é o reinado de Deus; eles é que estabelecem o reinado que não é dos césares nem do dinheiro. São os santos que hoje celebramos.

Nas bem-aventuranças seguintes estão as consequências disso. Os que agora estão chorando mais adiante vão parar de chorar, serão consolados. Os que têm fome e sede de ver acontecer a verdadeira justiça hão de matar essa fome. Os carentes, em geral traduzidos por “mansos”, os que não são ninguém, que não têm vez nem voz, serão senhores, serão os donos da terra.

Na sequência, outras três bem-aventuranças: os que colaboram, ou seja, os que têm misericórdia, os que têm intenções retas (“coração puro”) e os que promovem a paz ou a felicidade plena também terão sua recompensa. São a quinta, a sexta e a sétima bem-aventurança.

Voltando-se depois para os discípulos – nós e os santos hoje festejados –, Jesus nos diz que somos felizes quando perseguidos por causa dele. É pena que o Lecionário tenha cortado o final do v. 12, que dá o motivo da bem-aventurança da perseguição: “porque foi assim que sempre trataram os verdadeiros profetas”. Quem não é perseguido, quem não incomoda os senhores deste mundo, sejam pessoas, sejam instituições, não é profeta, não é santo.

III. Pistas para reflexão

São oito as bem-aventuranças. Oito está além da plenitude, que é o sete. Oito é Jesus Cristo, só ele vai além da plenitude. Ele é o primeiro pobre por opção e o primeiro mártir, o primeiro perseguido. Só ele põe os fundamentos do reinado de Deus. Só ele tira os pecados do mundo. Na cruz, o príncipe deste mundo, o que manda neste mundo, é posto para fora.

Nossos irmãos, os santos, “lavaram seus mantos no sangue do Cordeiro”, alcançaram a vitória, assemelhando-se à pobreza e à perseguição de Jesus.

Quando, na eucaristia, celebramos a morte do Cordeiro pascal, com ele celebramos o martírio, os trabalhos e a pobreza dos santos de ontem e de hoje. O pão e o vinho partilhados, que celebram o horizonte da comunhão perfeita e plena, sem lágrimas, sem fome e sem exclusão, significam também a pobreza de quem se parte em pedaços e a coerência que torna capaz a resistência à mais cruel perseguição.

Feliz não é o rico, o que tem tudo, mas não tem a si mesmo, pois pertence ao seu dinheiro.

Feliz não é o elogiado por todos, o aprovado por todos os poderosos do mundo, aquele que por ninguém é perseguido, porque nada tem para dizer, em nada colabora, nada acrescenta, só sabe negar-se a si mesmo e à própria consciência para agradar aos que podem. Parece agradar a todos, só não agrada a si mesmo.

Felizes são o pobre e o perseguido, e, com eles, muitos outros também serão felizes. Isso é ser santo.

Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico. Autor dos livros A Bíblia e suas contradições: como resolvê-las e A missa: da última ceia até hoje, ambos publicados pela Paulus.