Roteiros homiléticos

6º Domingo do Tempo Comum – 11 de fevereiro

Por Pe. Johan Konings, sj

I. Introdução geral

A liturgia de domingo passado mostrou que Jesus não se deixou “privatizar” pela população de Cafarnaum, mas seguiu sua vocação para ir a outras cidades também. Hoje o vemos saindo para a margem da sociedade, para os lugares desertos, onde viviam aqueles que na época eram chamados leprosos. Estes eram intocáveis, tabu! Jesus quebra esse tabu e, no fim, acaba ocupando o lugar do doente, nos “lugares desertos”.

Como nos evangelhos anteriores, vemos aqui uma indicação velada da personalidade de Jesus. Autoridade e compaixão, duas qualidades dificilmente compatíveis no ser humano, são as feições divinas que se deixam entrever no agir de Jesus. E revela-se sua superioridade em relação à Lei, segundo a qual Jesus não poderia tocar no doente de pele. Ele não depende da Lei para realizar o bem da pessoa. Por autoridade própria, reintegra o ser humano que a letra da Lei marginalizava.

Este tema convida a uma catequese sobre a reintegração dos que são marginalizados. Para que nós, como membros de Cristo, possamos realmente vencer a marginalização, será preciso agir com uma autoridade que esteja acima das convenções constrangedoras do sistema em que vivemos. Precisamos encarnar de modo operante essa compaixão reintegradora, neutralizando os mecanismos de marginalização e exclusão com a força divina da verdadeira solidariedade, baseada no amor.

A 2ª leitura continua o tema de domingo passado, sobre as carnes oferecidas aos ídolos. Paulo se apresenta a si mesmo como exemplo, pois o pregador deve ser a ilustração daquilo que prega. O apóstolo quer agradar a todos, não para lograr sucesso pessoal, mas para o bem de todos, a fim de que se deixem atrair por Cristo. Este texto é uma das mais lindas exortações que a Bíblia contém.

II. Comentários aos textos bíblicos
  1. I leitura (2Rs 5,9-14)

Para ilustrar o tema do evangelho de hoje, a liturgia propõe (como leitura opcional) a cura do general sírio Naamã pelo profeta Eliseu. A leitura nos mostra o horror que a doença causa nesse homem de destaque, a ponto de procurar um profeta em terra estrangeira, em Israel. O recorte litúrgico não inclui a descrição dos ricos presentes que o homem trouxe para o profeta, os quais realçam ainda mais o seu status. Menciona, sim, o orgulho de Naamã, que julga pouca coisa banhar-se no rio Jordão, um riacho, em comparação com os rios da capital de sua terra, Damasco. Mas, aconselhado pelos servos, o homem banha-se, assim mesmo, no rio Jordão e fica curado: “Sua carne tornou-se semelhante à de uma criancinha”.

Em Israel, a lepra causava exclusão da comunidade e suspeita de algum pecado. Em contraste com isso, o salmo responsorial (Sl 32[31],1-2.5.11) canta a alegria de ser perdoado e readmitido.

  1. Evangelho: Mc 1,40-45

O canto de aclamação ao evangelho fala de Deus que visita o seu povo (Lc 7,16). É isso que acontece quando Jesus vai aos lugares ermos, onde encontra um doente de pele bem diferente do da 1ª leitura, Naamã, que procurou Eliseu com pompa e vaidade. No evangelho, Jesus mesmo vai até o lugar onde o doente vive excluído, marginalizado. No exercício da “autoridade” divina sobre as forças do mal e, ao mesmo tempo, levado por uma compaixão humana que não deixa de ser divina, Jesus quebra o tabu da lepra, toca o doente e faz desaparecer a enfermidade. Na opinião do povo, a doença designada como lepra devia ser obra de algum espírito muito ruim. Jesus quebra esse tabu. O doente reconhece em Jesus misteriosa “autoridade”, seu poder sobre os espíritos maus. “Se quiseres, tens o poder de me purificar” (Mc 6,40). Jesus não pensa nas severas restrições da Lei, só sente compaixão, aquela qualidade divina que ele encarna. Apesar da proibição da Lei, toca no doente de pele, dizendo: “Eu quero, sê purificado”. E a cura sucede. Jesus dá um sinal do Reino. Se ele cura pelo “poder-autoridade” do Filho do homem, não é preciso primeiro consultar os guardiões da Lei. Basta que, depois de receber o benefício de Deus, o doente ofereça o sacrifício de agradecimento, conforme o rito costumeiro.

Como aos exorcizados, Jesus proíbe ao curado publicar o que sua “autoridade” operou. Manda-o oferecer o sacrifício prescrito, para oficializar sua reintegração na comunidade. Jesus lhe proíbe publicar o ocorrido, porque a publicidade desvia a percepção da verdadeira personalidade de Jesus (que não apenas cura, mas também assume o sofrimento humano). Mas o homem não é capaz de silenciar o fato. Quem conseguiria esconder tanta felicidade? Ele, até então marginalizado, encontrou a reintegração e aproveitou-a para contar o que lhe acontecera. Mais: Jesus foi ocupar o lugar do doente de pele, nos “lugares desertos” (1,45).

Este episódio faz pressentir a crescente e mortal oposição das autoridades religiosas: Jesus sabe o que é o bem do ser humano melhor do que a Lei segundo a interpretação dos escribas. Por autoridade própria, reintegra a pessoa que a letra da Lei marginalizava. Restaura a comunhão com o excomungado, passando para trás os que tinham o monopólio da reintegração. Aceitar este Jesus significa aceitar alguém que supera as mais altas autoridades religiosas. Nesse sentido, a cura da doença de pele funciona como um sinal: significa que, de fato, Jesus está acima das prescrições legais e pode prescindir delas. 

  1. II leitura: 1Cor 10,31-11,1

Ao fim da discussão sobre a carne consagrada aos ídolos (1Cor 8-10; cf. domingos anteriores), Paulo tira as conclusões práticas. Comprar carne desses banquetes no mercado, sem ninguém o saber, pode parecer sem importância (10,25). Se, porém, alguém o sabe e se escandaliza, então não se deve comer dessa carne, por amor ao fraco na fé (10,28-29), pois não seria possível comê-la agradecendo a Deus (10,30). Daí a atitude geral: fazer tudo de sorte que seja um agradecimento a Deus, o que acontece quando é para o bem dos outros. Por fim, Paulo atreve-se a apresentar-se como exemplo, sendo Cristo o exemplo dele (cf. 1Cor 11,1; Fl 3,17).

III. Pistas para reflexão

A exclusão virou princípio da organização socioeconômica: a lei do mercado, da competitividade. Quem não consegue competir deve desaparecer, quem não consegue consumir deve sumir. Escondemos favelas por trás de placas publicitárias. Que os feios, os deficientes, os idosos, os doentes de aids não poluam os nossos cartões-postais!

Em tempos idos, a exclusão muitas vezes provinha da impotência diante da enfermidade ou, também, da superstição. Em Israel, os chamados leprosos eram excluídos e marginalizados, como ilustra abundantemente a legislação de Lv 13-14. Enquanto não se tivesse constatado a cura, por complicado ritual, o doente de pele era considerado impuro, intocável. Jesus, porém, toca no homem doente e o cura. Sinal do reino de Deus. Jesus torna o mundo mais conforme ao sonho divino, pois Deus não deseja sofrimento nem discriminação. O Antigo Testamento pode não ter encontrado outra solução para esses doentes contagiosos que a marginalização, mas Jesus mostra que novo tempo começou.

Começou, mas não terminou. Reintegrar os marginalizados não foi uma fase passageira no projeto de Deus, como os presentinhos dos políticos nas vésperas das eleições. O plano messiânico continua por meio do povo messiânico. Devemos continuar inventando soluções para toda e qualquer marginalização, pois somos todos irmãos e irmãs.

Seremos impotentes para excluir a exclusão, como os antigos israelitas em relação à doença de pele? Que fazer com os criminosos perigosos, viciados no crime? O fato de ter de marginalizar alguém é reconhecimento da inadequação de nossa sociedade. Toda forma de marginalização é denúncia contra nossa sociedade e, ao mesmo tempo, um desafio. Muito mais ainda em se tratando de pessoas inocentes. A marginalização é sinal de que não está acontecendo o que Deus deseja. Aonde existe marginalização, o reino de Deus ainda não chegou, pelo menos não completamente. E aonde chega o reino de Deus, a marginalização já não deve existir. Por isso, Jesus reintegra os marginalizados, como é o caso do doente do evangelho de hoje, dos pecadores, publicanos, prostitutas… Essa reintegração está baseada no “poder-autoridade” que Jesus detém como enviado de Deus: “Se quiseres, tens o poder de me purificar” (Mc 1,40). Jesus passa por cima das prescrições levíticas, toca no doente de pele e “purifica-o” por sua palavra, em virtude da autoridade que lhe é conferida como “Filho do homem” (= “executivo” de Deus, cf. Mc 2,10.28).

Há quem pense que os mecanismos autorreguladores do mercado são o fim da história, a realização completa da racionalidade humana. E os que são (e sempre serão) excluídos por esse processo, onde ficam? Não será tal raciocínio o de um varejista que se imagina o criador do universo? A liturgia de hoje nos mostra outro caminho, o de Jesus: solidarizar-se com os marginalizados, os excluídos, tocar naqueles que a “lei” proíbe tocar, para reintegrá-los, obrigando a sociedade a se abrir e a criar estruturas mais acolhedoras, mais messiânicas.

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese
Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected]