Roteiros homiléticos

9º Domingo do Tempo Comum – 3 de junho

Por Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj*

I. Introdução geral 

Em Jesus se torna visível a face do Deus criador e libertador, ápice da fé de Israel e da experiência religiosa daquele povo. Essa experiência tão profunda era celebrada e revivida a cada sábado. Mas, com o passar do tempo, o descanso sabático ficou marcado pelo ritualismo e legalismo. Então Jesus veio restaurar o sentido do sábado como celebração da vida em plenitude, da libertação e da liberdade. Veio reconectar o ser humano com Deus e proporcionar experiências de libertação. Recolocar essas experiências no centro da fé vivida de modo pessoal e comunitário. É com base na experiência com o Deus libertador manifestado em Cristo ressuscitado que o apóstolo Paulo consegue suportar todo sofrimento em sua vida de luta pelo anúncio do evangelho.

II. Comentário dos textos bíblicos 
  1. Evangelho (Mc 2,23-3,6): O Senhor do sábado 

 No sábado, o povo de Israel recordava que Deus havia posto um fim à escravidão do Egito. Era tempo de celebrar a libertação. O povo de Israel havia recebido a liberdade para a renovação social e ecológica, pois todos descansavam (ricos e pobres, escravos e livres, ser humano e natureza). Mas, principalmente, liberdade para o culto.

Para Jesus, a libertação e liberdade celebradas no descanso sabático são sinais da ressurreição e do mundo futuro; por isso, ele restaura a saúde e a dignidade das pessoas em dia de sábado.

Na mesma época, uma hermenêutica legalista do sábado o havia convertido em sinal de opressão e exclusão. O dia da liberdade se convertera em dia de observâncias rituais separadas da vida cotidiana.

Os gestos de Jesus resgatam o propósito do sábado como dia de libertação. Neste sentido, a cura da mão atrofiada é muito significativa, porque a mão representa a ação, a práxis. Podemos agir no sábado, podemos e devemos praticar boas obras, ações libertadoras e inclusivas, no dia do Senhor. Foi em dia de sábado que Jesus realizou as maiores ações de misericórdia.

As comunidades cristãs transferiram o dia do Senhor para o primeiro dia da semana porque foi neste dia que Jesus se manifestou como ressuscitado. A ressurreição de Jesus realiza o propósito do sábado. Nela nos tornamos livres do pecado e da morte.

Infelizmente, muitos cristãos têm atitudes piores que as do legalismo antigo. Reduzem o dia do Senhor a prescrições rituais, a preceitos e exibição de vestes litúrgicas esplendorosas, a queimas de incensos e show-missas, a pompas litúrgicas que ofendem e agravam o sagrado coração de Jesus. Pois o que agrada a Jesus, senão alimentar o faminto, cuidar do enfermo, acolher o pecador, incluir o excluído?

  1. I leitura (Dt 5,12-15): “Recorda-te que foste escravo no Egito”

O ser humano é um ser inserido no tempo, mas tem a capacidade de perceber a eternidade, o âmbito próprio de Deus. Se o ser humano percebe a eternidade, isso ocorre porque o Criador deseja partilhar a vida divina com sua criatura.

Na leitura, vemos que o sábado é o elo entre eternidade e tempo, porque, voltando-se totalmente para Deus no louvor sabático, o israelita dava um sentido de eternidade a toda ação temporal. No sábado se santificava tudo que estava dentro do tempo. No sábado a humanidade aproximava a criação inteira do seu Criador. O ser humano, consciência da criação, representava todas as obras de Deus e, em nome delas, louvava o Criador.

O texto do decálogo, base da primeira leitura, desconhece aquelas atitudes legalistas da época de Jesus; ao contrário, nele o sábado está intimamente vinculado com a liberdade: “Recorda-te que foste escravo no Egito e que o Senhor teu Deus te tirou de lá” (Dt 5,15). Se o israelita pode parar de trabalhar um dia a cada seis dias, isso significa que ele é livre, pois somente quem já foi escravo é que sabe o valor da liberdade. E quem experimentou ser libertado deve, por sua vez, libertar os outros também, por isso nem mesmo os animais deveriam ser obrigados a trabalhar continuamente, sem nunca parar. O sábado era entendido como um dom para toda a criação. Celebrá-lo, recordando a libertação da escravidão, significava louvar o Deus criador e libertador e unir-se a ele na luta contra toda opressão, a começar por si mesmo, na sua própria casa, com seus servos e os animais que faziam o trabalho.

O sábado não era um descanso no sentido de tirar um dia de folga do trabalho. Era muito mais que isso, era uma liberdade para o culto e para um novo modo de relações sociais e ecológicas. No sábado o servo descansava igual ao patrão, o animal igual ao ser humano. E este entrava no repouso de Deus, na intimidade com o Criador-libertador, ambos como sujeitos livres, numa relação de amor, a qual somente é possível entre iguais, entre sujeitos livres. Por isso Deus o libertou, para que pudessem relacionar-se face a face, livremente, dando e recebendo amor.

O sábado restaura as relações do ser humano com Deus, restaura as relações de trabalho com o mundo social e com a natureza. Em nossos tempos, uma sociedade surgida dos ideais de liberdade propostos pelo cristianismo, a qual, porém, critica o descanso semanal para o trabalhador e, ainda assim, se proclama iluminada e desenvolvida, sem vínculos religiosos opressores, é uma sociedade hipócrita, opressora e retrógrada. Um cristão que não respeita os direitos dos seus funcionários não é verdadeiro seguidor de Jesus, o Filho do Deus criador e libertador. Um governo que não defende os direitos dos trabalhadores é um governo corrupto, ingrato com as gerações que constroem a nação. Uma liga de dirigentes de países que não luta por leis que defendam a natureza retroage à barbárie pré-civilizatória.

  1. II leitura (2Cor 4,6-11): “Temos esse tesouro em vasos de barro”

 Na segunda leitura, Paulo utiliza quatro antíteses gregas tiradas da terminologia própria das lutas dos gladiadores. Traduzidas para os idiomas modernos, essas palavras perdem muito sua força.

O que se traduz por “afligidos, mas não angustiados” significa ser pressionados contra a parede ou contra o solo, mas não sufocados (não ter o espírito restringido). Pensemos numa luta livre, e entenderemos melhor a ideia que o apóstolo nos quer transmitir.

Onde está escrito “perplexo, mas não desesperançado”, a imagem subjacente é que o lutador ficou acuado e não sabe que decisão tomar para não ser morto pelo adversário, mas sabe que há uma saída, que nem tudo está perdido, ainda está vivo e saberá encontrar uma solução.

Onde lemos “perseguidos, mas não desamparados”, a ideia é que um dos lutadores está perdendo a luta e começou a correr, fugindo do oponente. É a perseguição a alguém que está em fuga para salvar a própria vida. O que foi traduzido por “não desamparados” denota a compreensão de que o lutador em fuga não desistiu da própria sobrevivência e que a corrida em fuga, na verdade, é uma forma de lutar pela própria vida, que tal lutador valoriza e que o oponente quer destruir. Essa metáfora é muito forte para dizer o modo como o apóstolo se sentia no exercício do seguimento de Jesus.

Por fim, “derrubados, mas não aniquilados”, quer dizer que o lutador é declarado como vencido, ou seja, recebeu a sentença de morte, mas mesmo assim não se sente rebaixado em sua dignidade, pois lutou contra um forte adversário. E isso valeu a pena.

Sem as luzes de Deus vindas por intermédio do Cristo, o ser humano frágil jamais conseguiria suportar semelhante pressão, uma vida como a acima, descrita com termos tão fortes. Por isso o apóstolo reconhece a própria fragilidade, que é uma situação existencial humana da qual todos são partícipes, e ele não é uma exceção. Somos vasos de barro, somos frágeis. Mas as luzes de Deus em nós nos tornam capazes de participar da cruz de Cristo para sermos realmente livres como ressuscitados. Livres de toda dor, de todo sofrimento, do pecado e da morte. “Pois para a liberdade Cristo nos libertou” (Gl 5,1).

III. Pistas para reflexão 

O sábado celebra a experiência de Israel com o Deus criador e libertador. O legalismo e o ritualismo posterior sufocaram essa experiência profunda de fé. Jesus veio restaurar a genuína experiência do sábado, mas não demorou muito tempo para a comunidade de seus seguidores começar a cair constantemente no mesmo erro que ele denunciou: o apego a aspectos periféricos e ritualísticos. Esse fantasma que constantemente assombra a Igreja está de volta, apesar do testemunho do papa Francisco. É um fantasma antigo, exorcizado pelos profetas. A palavra de Deus, por intermédio de Amós, já dizia: “Odeio, desprezo as vossas festas, e as vossas assembleias solenes [...] o estrépito dos teus cânticos” (Am 5,21.23). As missas extravagantes, a preocupação com vestes litúrgicas pomposas e luxuosas, os ministros de músicas fazendo show musical dentro da celebração eucarística, nada disso agrada a Deus e tudo isso está incluído na crítica que Jesus fez aos fariseus.

Já dizia o profeta Miqueias: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e o que é que o Senhor requer de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a benevolência, e andes humildemente com o teu Deus?” (Mq 6,8).

O que agrada a Jesus, senão alimentar o faminto, cuidar do enfermo, acolher o pecador, incluir o excluído? Quem tem zelo por Deus, que se consome de amor por Cristo, sabe que isto, cuidar do ser humano mais frágil, é o que agrada ao Senhor. É totalmente impróprio um cristianismo preocupado com vestes litúrgicas, incensos, luxos em templos, enquanto o ser humano sofre ou está sob vários tipos de escravidão, enquanto há uma multidão de usuários de drogas nas cracolândias das grandes cidades, onde há tantos que moram nas ruas ou sofrem o peso da violência.

Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj*

*Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora
do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]