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DOSSIÊ: 60 ANOS DA LUMEN GENTIUM

19/04/2024

Neste ano de 2024 a Constituição Dogmática Lumen Gentium (Luz dos Povos) completa 60 anos de sua aprovação. Trata-se de um dos mais importantes textos do Concílio Vaticano II. O documento trata da identidade e constituição da Igreja como corpo místico de Cristo. Para iluminar nossa reflexão sobre esse valioso tema, publicaremos um dossiê elaborado pela revista Vida Pastoral italiana.

DA MYSTICI CORPORIS À LUMEN GENTIUM

por Walter Insero, professor da Universidade Gregoriana

Tradução de Darlei Zanon, assessor editorial da PAULUS

(Publicado originalmente em abril de 2024 na Vita Pastorale, Itália)

Eis o artigo:

A encíclica Mystici Corporis, de Pio XII (1943), procurou restabelecer o equilíbrio entre as dimensões institucional e espiritual na compreensão da Igreja, desenvolvendo a perspectiva cristocêntrica e apresentando-a à luz do Verbo encarnado como lugar onde se concretiza o mistério da redenção. Nela se realiza uma união muito sólida entre Cristo e os cristãos, que não conduz à formação de uma pessoa física, mas uma pessoa mística, na qual Cristo é o fundador, cabeça e protetor do corpo.

Para reagir ao misticismo desenfreado, a encíclica defendeu a coincidência do aspecto invisível com o visível, deixando espaço para certo exclusivismo católico. Ela, na verdade, interpretou o conceito paulino do corpo de Cristo numa perspectiva sociológica, fazendo-o coincidir com a Igreja Católica. Desse modo, apenas os seus membros eram membros do corpo místico; os demais cristãos, ainda que possuíssem fé e caridade, poderiam no máximo ser considerados ordenados ao corpo místico.

Nos anos que se seguiram à Mystici Corporis, sentiu-se a inadequação de uma visão que identificava corpo de Cristo e Igreja Romana, alimentando um triunfalismo eclesiológico. A formalização e difusão da eclesiologia do corpo místico pelo magistério pontifício representou, paradoxalmente, o início do seu declínio. Esta visão teológica corria o risco de encalhar nas águas rasas em que se encontrava a Igreja, cada vez mais entrincheirada na defesa do passado e da sua tradição em oposição a um mundo que perseguia o mito do progresso. Era necessário “derrubar as muralhas”, segundo a significativa expressão de H.U. von Balthasar de 1952. Nesse período, ganhou cada vez mais apoio a Nouvelle théologie, vasta corrente de pensamento que entre seus centros propulsores mais importantes estavam a escola dos jesuítas de Lyon-Fourvière (H. de Lubac, Jean Daniélou e H. Bouillard) e a dos dominicanos de Le Saulchoir (M.D. Chenu e Y.M. Congar).

No seu famoso texto Meditação sobre a Igreja, de Lubac declarou que “a Igreja é mistério”, sintetizando assim todo o percurso da eclesiologia do século anterior. A redescoberta dos Padres da Igreja levou-o a fazer do “mistério da Igreja” a pedra angular de sua abordagem eclesiológica, intuição que “atravessa e une toda a eclesiologia que vai do Vaticano I ao Vaticano II” (Tangorra). Os teólogos franceses de Lubac e Congar devem ser reconhecidos pelo sucesso e difusão dessa categoria que indica o plano salvífico de Deus que se manifesta na história, encontrando no evento Cristo o seu cumprimento e no eschaton a sua meta.

Nesta perspectiva, inserir a Igreja no “mistério” significa ligá-la à Trindade e, ao mesmo tempo, à história. No horizonte da compreensão mistérica da Igreja, surgiram duas visões eclesiológicas em diálogo ou em atitude crítica face à teologia do corpo místico, nomeadamente a do “povo de Deus” e a da “Igreja sacramento”. No campo eclesiológico, a noção de povo de Deus apareceu pela primeira vez em 1937, numa obra do Abade Vonier que, diante das tendências espiritualistas, procurou reafirmar a dimensão histórica e social da Igreja, inaugurando uma proposta alternativa face à manualística da época. Para Vonier, a Igreja é um povo a caminho na história, chamada a acolher e cuidar de todos, portadora de uma importante responsabilidade perante a sociedade civil. M.D. Koster, em 1940, definiu a noção de corpo místico como “metáfora pré-teológica”; e contrastou-a com a categoria de “povo de Deus”, baseada na Escritura, mais adequada para restaurar a perspectiva histórica e comunitária da Igreja.

A eclesiologia do povo de Deus

Naqueles anos, a eclesiologia do povo de Deus se desenvolveu graças à contribuição de teólogos e exegetas como Dahl e Cerfaux. Não podemos esquecer a contribuição dos estudos patrísticos, como evidencia a pesquisa do jovem Joseph Ratzinger com sua tese de doutorado sobre Povo e Casa de Deus em Santo Agostinho (1954). Sendo a Igreja o povo de Deus a caminho do eschaton, ela não pode ser identificada com o reino de Deus. Como povo de Deus, a Igreja avança na história, não se coloca diante do mundo, mas dentro dele, como o fermento na massa. Se a Igreja é considerada povo de Deus, sua provisoriedade e incompletude exigem sempre uma ação de autodiscernimento e de reforma.

Naqueles mesmos anos, desenvolveu-se a reflexão sobre a sacramentalidade da Igreja, que mostrou toda sua fecundidade, pois a noção de sacramento recorda a estrutura do encontro entre o ser humano e Deus, entre o visível e o invisível. Partindo da analogia com o Verbo encarnado, também a Igreja, na sua estrutura visível, histórica e humana, é sinal e instrumento do invisível, do eterno e do divino. O. Semmelroth, em 1953, foi o primeiro a publicar uma proposta sistemática intitulada “Igreja como sacramento primordial” (Ursakrament) e depois como “sacramento da salvação”. Os trabalhos do teólogo holandês E. Schillebeeckx e do teólogo alemão K. Rahner seguiram o mesmo caminho.

Durante o mesmo período, graças ao entusiasmo dos movimentos laicais, desenvolveu-se também uma importante teologia dos leigos baseada na comum vocação batismal de cada fiel. A obra de referência que marcou esse passo foi Para uma teologia do laicato (1953), de Y. Congar, seguida pelo estudo de G. Philips, Os leigos na Igreja (1956), ambos teólogos especialistas do Concílio que desempenharam papel fundamental na redação da Lumen Gentium.

Nas décadas que prepararam o Vaticano II, desenvolveu-se também a reflexão sobre a unidade da Igreja, graças ao texto de Congar intitulado Cristãos divididos, de 1937, no qual o teólogo dominicano delineou os princípios do “ecumenismo católico”. Além da unidade, redescobria-se a “Igreja como comunhão”, com os contributos de Von Hertling (1943), Le Guillou (1960) e J. Hamer (1962), publicados nas vésperas do Concílio.

Esses autores encontraram na noção de comunhão o elemento unificador da eclesiologia capaz de coordenar harmonicamente a perspectiva invisível e visível, vertical e horizontal, hierárquica e comunitária da Igreja. Os vinte anos que separam a Mystici Corporis da Lumen Gentium contribuíram para delinear o novo perfil da eclesiologia. A teologia do corpo místico redescobriu a natureza transcendente da Igreja, sem evitar, contudo, o risco do misticismo. O desenvolvimento da teologia do povo de Deus e da Igreja sacramental restabeleceu o equilíbrio entre a dimensão visível e invisível, histórica e eterna, fazendo da Lumen Gentium a carta magna da eclesiologia do Vaticano II.