Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362
17 de abril – CEIA DO SENHOR
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz”
Esta celebração faz memória dos últimos atos da vida de Jesus, transcorridos no amor e pelo amor (Jo 13,1). Toda a vida de Jesus e seus últimos atos são de sua própria entrega memorável, que é entendido por nós, sua Igreja, como sacramento, sinal da graça visível de Deus, desde o reclinar de Jesus à mesa da refeição pascal até a cruz, altar pleno de seu amor, pois é ele o cordeiro que tira o pecado do mundo (Jo 1,29), chegando ao ápice de sua vida na ressurreição, a resposta definitiva de Deus, o Pai. Jesus, em sua entrega memorável, institui a Eucaristia, primeiro lavando os pés de seus discípulos, depois nos ensinando a fazer o mesmo. Na primeira leitura, ouvimos o relato fundante da Páscoa dos israelitas, que saem do Egito para viverem a libertação como promessa de Deus. Na segunda leitura, Paulo recorda o gesto fundante da Eucaristia, na “escola de Jesus” com seus discípulos: seu corpo é dado, seu sangue é derramado para nossa salvação. A Eucaristia é doação amorosa do Filho ao Pai, no Espírito, por isso conclama a Igreja a repetir o mesmo, fazendo memória do Senhor.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
I leitura (Ex 12,1-8.11-14)
Este é um relato imprescindível para a compreensão teológica da Páscoa judaica. Trata-se de um evento fundante, gênero etiológico pelo qual se narra o começo de uma realidade nova que marca a vida de um povo, de uma religião, como o judaísmo. A Páscoa corresponde ao ponto alto da ação de Deus, criador e libertador. Deus cria para a liberdade e liberta recriando seu povo para a vida que ele mesmo deseja.
Vale perceber, do ponto de vista literário, que esse texto está inserido no meio do tema sobre os primogênitos. Ex 12 está dividido em dois blocos: os v. 3-13 tratam dos rituais sobre o cordeiro pascal, e os v. 14-20 dos pães ázimos, massôt. Ázimos seria uma festa que começou a ser celebrada em Canaã. Há hipóteses de que a Páscoa tenha uma origem pré-israelita, anualmente celebrada por pastores nômades, para o bem do rebanho. Seria uma espécie de festa do Senhor, a qual Moisés pedia ao faraó a permissão de celebrar (cf. Ex 5,1). Dessa forma, a ligação entre a Páscoa, a décima praga e a saída do Egito seria apenas ocasional: tal saída pode ter sido realizada durante essa festa. O que podemos dizer é que, literariamente falando, essa festa justificou o fato de o povo sair. Junto à fuga do Egito, estabeleceu-se celebrar a Páscoa, como passagem (v. 11) do Senhor, para lembrar tais atos, nos quais o Deus fiel é o grande protagonista, junto de seu povo (que lhe obedece).
Originalmente, os dois rituais – do cordeiro e dos ázimos – eram separados. O primeiro era um ritual de pastores para a propiciação dos deuses, quando havia mudanças de pastos de águas purificadoras do inverno para o verão árido. O segundo ritual estava ligado aos agricultores. O texto faz a conexão do sacrifício do cordeiro com o êxodo (v. 11-13). Os ázimos são feitos para um memorial do êxodo na própria narrativa, já em 12,34, e uma instrução adicional em 13,3-10. O relato que temos na celebração deste dia são palavras de Adonai, o Senhor, dirigidas a Moisés e transmitidas a Aarão, denotando um sentido sacerdotal.
No Egito, Moisés diz a Aarão (v. 1) que aquele seria o primeiro mês do ano. Trata-se do mês que renova o ano, ou seja, do início da primavera, demarcando uma nova geração, que culminará com a libertação e a fuga do domínio egípcio e do faraó.
2. II leitura (1Cor 11,23-26)
Paulo nos apresenta o relato institucional da Eucaristia, guardado vivamente pela memória e tradição de fé apostólica, que lhe foi transmitido. O apóstolo se considera um elo na corrente da tradição que remonta a Jesus. Trata-se de evento fundante: a celebração pascal de Jesus, dentro do contexto da fé judaica. Jesus vivia sua fé e estava em comunhão com seu povo. Vale ressaltar que esse evento celebrado por Jesus não está equidistante da realidade do tempo e da história, pois Jesus acompanhava e vivia o que vivia seu povo.
O texto situa o exato momento do evento fundante da Eucaristia na vida da comunidade de fé cristã (v. 23), na noite em que o Senhor foi entregue.
Nos v.24-25, observamos que a versão paulina para as palavras do Senhor na instituição da Eucaristia é mais próxima daquela encontrada em Lucas (22,15-20), mas obviamente não depende dela, pelo contrário: a tradição lucana bebeu na fonte da tradição paulina. No v. 25, em contraposição a Lucas, que menciona anamnésis somente a propósito do pão (Lc 22,19), Paulo também inclui uma exortação (pela qual ele mesmo é o narrador responsável) sobre o cálice. O significado da fórmula: “Fazei isto em memória de mim” tem causado muita discussão, mas é unânime dizer que seu sentido está alicerçado na ideia da iteração, da repetição sacramental dos gestos, como celebrados hoje nas missas.
O v. 26 (“anunciais a morte do Senhor”), que tem, em seu gesto, significado de amor (Gl 2,20), é proclamado existencialmente (2Cor 4,10-11) com base no fato de Jesus comer e beber compartilhando de sua própria vida (Lc 10,16). A recordação é fundamental para entrar no ressoar da voz de Cristo, na sua autêntica imitação de Cristo (Lc 11,1), por meio de quem o amor salvífico de Deus (Rm 8,39) se faz efetivamente presente no mundo. Nessa perspectiva, fica evidente por que o comportamento dos coríntios (v. 21) – uns comem, outros passam fome e outros, ainda, ficam embriagados – impossibilitava uma Eucaristia genuína. O “até que ele venha” em sua glória (1Cor 15,23) denota a parúsia, a segunda vinda do Salvador.
3. Evangelho (Jo 13,1-15)
O belíssimo texto joanino, proclamado em todas as Quintas-feiras Santas, faz-nos levantar dúvidas: a ceia de Jesus com seus apóstolos foi uma refeição pascal? Por que não há em João um relato institucional da Eucaristia? Por quais motivos João, em sua teologia, situa a ceia de Jesus como uma mesa na qual o serviço do lava-pés parece ser o foco principal do relato? Por que há tanta diferença entre o relato da ceia de Jesus em João e os relatos sinóticos?
Por certo, não conseguimos responder a todas essas indagações, mas o importante é situá-las no horizonte hermenêutico que a leitura desse relato paradigmático nos proporciona, ensinando-nos a nos pôr na condição de Jesus, o servo, e buscar fazer o mesmo: “Dei-vos o exemplo para que vós façais o mesmo que eu fiz” (v. 15). O relato, assim, produz seu grande efeito, seu afeto: entendermos que a Eucaristia é serviço, diaconia.
O narrador joanino começa dizendo: “Era antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. Jo 13 é início de uma nova seção do Quarto Evangelho: trata-se do Livro da Glória, da glorificação de Jesus, o Filho, que glorificará o Pai.
O v. 2 diz que “estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus”. A traição de Judas é parte do projeto do mal, que não deseja outra coisa senão a desobediência do Filho e sua renúncia ao projeto do Pai. Essa alusão ao diabo, figura do mal, na cena tão bela do lava-pés pode ser mais bem entendida em 13,21-30, com o anúncio da traição de Judas. O v. 2 está aqui situado, pois João, o narrador, deixa claro aos leitores, desde muito cedo, que Judas, filho de Simão Iscariotes, seria aquele que o haveria de entregar (cf. Jo 6,71). Desse modo, na cristologia apresentada por João, a oposição a Jesus, os planos malvados para matá-lo, são conhecidos pelos leitores desde o começo do Evangelho, não sendo uma novidade (ou surpresa) na ceia pascal.
Vale ainda ressaltar que, para João, a morte de Jesus não tem a mesma essência ignominiosa (perversa) que nos sinóticos, mas, chegada sua hora, é a forma de ele, o Filho, glorificar o Pai, que o enviou para fazer sua vontade (Jo 6,34). Jesus é per se aquele que doa sua vida: “minha vida ninguém a tira, eu a dou por mim mesmo” (Jo 10,18). Tanto que, na cena que antecede sua paixão, ele ora ao Pai, entregando a vida (Jo 17,1): “Pai, chegou a hora: glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique”. A glória do Pai é a entrega do Filho no altar da cruz.
No entanto, para que isso seja uma certeza, João constrói a cristologia da glória, e esta se alicerça no ato de amar: Jesus amou-os até o fim; o fim é sua vida de entrega, como no discurso em Jo 6,51b: “o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”. Por isso, o que ele faz naquele momento, nem Pedro nem os demais discípulos compreendem claramente, mas depois da cruz compreenderão (v. 7).
Simão não entende o sentido de tal serviço, pois não era superior a Jesus (que não tem superior humano), e diz: “Tu nunca me lavarás os pés” (v. 8a). Pedro é precipitado, mas as palavras de Jesus o convencem: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo” (v. 8b). A persistência de Pedro é confrontada com a afirmação de que ele não pode compartilhar do “lugar” que Jesus oferece a seus discípulos (cf. 14,3; 17,24).
Assim, numa ceia, Jesus, além de se entregar, fez-se servo, lavando os pés de seus discípulos. Num tempo em que os servos lavavam os pés e mãos de seus senhores, realizando as abluções, Jesus coloca-se no lugar de servo e envolve seus discípulos nessa dinâmica da diaconia. O v. 4 deixa claro que Jesus tirou seu manto – símbolo de poder –, pegou uma toalha, amarrou-a na cintura, como símbolo de diaconia, e passou a lavar os pés dos discípulos (v. 5). Depois de lavar-lhes os pés, Jesus retoma o manto e volta à mesa, mas não retira a toalha do serviço (v. 12). Por fim, diz: “Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (v. 13-14).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A liturgia desta celebração faz memória da Páscoa, da passagem da terra da escravidão, no Egito, para a libertação, para a nova vida dos filhos e filhas de Deus, a qual consiste em servi-lo. Nessa mesma perspectiva do serviço, podemos compreender a Eucaristia na comunidade joanina, sob o prisma do lava-pés, gesto amoroso de Jesus para com os seus. Busque a comunidade cristã hoje perceber-se servidora, acolhendo a todos, transformando a vida daqueles que estão também no sofrimento, mediante o lava-pés contínuo do amor.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]