Publicado em setembro-outubro de 2025 - ano 66 - número 365 - pp. 24-33
“A CRIAÇÃO ABRIGA A ESPERANÇA”: Romanos 8,18-27
Por Ir. Dra. Lucia Weiler, dp*
O artigo propõe uma releitura de Rm 8,18-27, sob o título “A criação abriga a esperança”. A criação, que no texto é sujeito ativo e passivo da esperança, geme em dores de parto, esperando com impaciência a manifestação dos filhos e filhas de Deus. Concluímos com a convicção de que os gemidos da criação devem ser nossos gemidos, porque são os gemidos da RUAH. Nova espiritualidade ecológica integral é urgente, na cultura do cuidado da Casa Comum, para que as dores de parto da criação não se transformem em dores de aborto. Antes que seja tarde demais!
O TEXTO DE ROMANOS 8,18-27
18Penso que os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós. 19A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus. 20Entregue ao poder do nada – não por sua própria vontade, mas por vontade daquele que a submeteu –, a criação abriga a esperança, 21pois ela também será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus. 22Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora. 23E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo. 24Na esperança, nós já fomos salvos. Ver o que se espera já não é esperar: como se pode esperar o que já se vê? 25Mas, se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos. 26Do mesmo modo, também o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois nem sabemos o que convém pedir; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. 27E aquele que sonda os corações sabe quais são os desejos do Espírito, pois o Espírito intercede pelos cristãos de acordo com a vontade de Deus (Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, Paulus).
1. Contextualização: partindo da realidade de ontem e de hoje
A Palavra de Deus sempre nos surpreende, por estar inserida em situação de vida concreta, no ontem, no hoje e no amanhã, abrindo horizontes para o futuro. Assim podemos considerar o contexto no qual se insere o texto de Rm 8,18-27 proposto para nossa reflexão. Desde o capítulo 7, Paulo, o autor da carta aos Romanos, partilha uma realidade existencial, com um sentimento bastante comum, também para nós hoje: a incapacidade de fazer o bem que deseja e de evitar o mal que não quer (Rm 7,18-19). Quem, porém, se coloca, sempre de novo, numa atitude de sensibilidade humana e discernimento no Espírito é conduzido pela própria graça de Deus a um processo de conversão. Foi o que aconteceu na vida de Paulo. Ele reconhece e conta como superou suas fragilidades e alcançou a libertação após longa e dolorosa caminhada. E o mais interessante é que ele constata que justamente as vulnerabilidades e fragilidades, quando reconhecidas, podem ser a brecha de abertura pela qual Deus entra com sua graça. No capítulo 8, Paulo procura comunicar algo da nova experiência que Deus realizou em sua vida, por intermédio de Jesus Cristo. Quem de nós já não experimentou algo semelhante na sua vida?
No contexto global da carta aos Romanos, o capítulo 8 é, por assim dizer, o patamar, o topo da montanha, no qual está o holofote que ilumina a estrada para trás (capítulos 1-7) e para a frente (capítulos 9-16) (Equipe de Reflexão Bíblica da CRB, 1995, p. 283-285). Considerando sua estrutura literária, vemos que, na primeira parte, apresenta os critérios e as consequências concretas para quem assume uma vida segundo o Espírito de Deus, em contraposição a uma vida pautada por outros influenciadores e tendências, identificados por Paulo como “instintos egoístas” (Rm 8,1-13). O discernimento é: “Se vocês vivem segundo os instintos egoístas, vocês morrerão; mas se, com a ajuda do Espírito, fazem morrer as obras do corpo, viverão” (v. 13).
A seguir, em Rm 8,14-17, é introduzido o tema da vida segundo o Espírito. Esta se manifesta por meio de um novo relacionamento com Deus, que confere nova consciência de filhos e filhas. Deus já não é juiz distante que ameaça com a Lei na mão, mas sim um Pai, Abba, que acolhe e abraça com misericórdia e ternura. A ponte para nosso texto são os v. 16-17: “O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus junto com Cristo, uma vez que, tendo participado dos seus sentimentos, também participamos de sua glória”.
A nova vida no Espírito é semente de nova humanidade. A Palavra de Deus, anunciada em Rm 8,18-27, faz contemplar a história como um processo de gravidez, de gestação de algo novo, com gemidos de dores de parto, que envolve toda a criação, mas tem nascimento garantido. Com essa metáfora da mulher em dores de parto, que também encontramos em Jo 16,21, Paulo anuncia que o Espírito de Jesus gera nova criação, nova espiritualidade. Ele vem em auxílio de nossa incapacidade, reza em nós, sustenta-nos e faz pedir o que convém a nós e ao projeto de Deus.
A partir daí, o Espírito, protagonista da nova humanidade e da nova criação, abre novo futuro de esperança. Quem se deixa conduzir por esse horizonte de esperança e colabora com o cuidado amoroso da vida faz a experiência da serenidade e constata que tudo contribui e converge para essa novidade do Espírito, até mesmo as contrariedades da vida: “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8,28).
Os últimos versículos (Rm 8,31-39) mostram a supremacia do amor de Deus. Vislumbram o futuro de um mundo novo, de uma nova criação, novo céu e nova terra, que já está em processo embrionário, germinal, pela esperança que nunca engana e pela promessa gratuita de Deus que nunca falha (cf. Rm 5,1-5). Paulo tira as conclusões de sua profunda experiência de Deus: “Depois disto, o que nos resta dizer? Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31).
Em resumo, nesse capítulo 8 está o eixo central da carta aos Romanos. É o amor de Deus a raiz, a fonte e a dinâmica de toda liberdade. Quem se deixa amar por Deus e ama verdadeiramente seus irmãos e irmãs está livre de qualquer poder opressor deste “mundo”; livre para servir e doar sua vida sem reservas; livre para pensar sem medo e ver tudo com a liberdade de um novo olhar, sabendo-se semente do Espírito, capaz de gerar nova humanidade. Essa convicção de fé de Paulo penetrou tudo: a consciência (Rm 8,16), a visão da história (Rm 8,18-25), a oração (Rm 8,26). Até mesmo as contradições da vida que dificultam a caminhada e parecem contrárias ao projeto de Deus conseguem ser integradas nessa nova visão (Rm 8,28.35). Jesus Cristo é nossa esperança (1Tm 1,1).
2. A criação abriga a esperança: gemidos de dores de parto da criação
Adentrando mais no texto-tecido (Rm 8,18-27), percebemos que o fio que o costura e lhe dá unidade teológico-espiritual é a “esperança”. E o primeiro sujeito é a criação. Três expressões chamam a atenção: 1) a criação espera com impaciência (v. 19); 2) a criação abriga a esperança (v. 20); 3) a criação toda geme e sofre dores de parto (v. 22). Nas três expressões, a criação aparece como sujeito ativo e passivo da esperança. Nessa dinâmica, o “Evangelho da criação” (Campanha da Fraternidade de 2025) torna-se o “Evangelho da esperança”.
O texto é introduzido pela lembrança dos sofrimentos. “Penso que os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós. A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus” (v. 18-19). Por experiência, sabemos que toda comparação engana. Os sofrimentos presentes não são dignos de serem comparados com a glória que deverá revelar-se em nós. Nem podemos pensar numa espiritualidade masoquista ou numa teologia da retribuição. Por isso, vale a pergunta: de que sofrimentos fala Paulo? Que sofrimentos do momento presente nos tocam mais profundamente? Nem todo sofrimento pode e deve ser validado. Contudo, o sofrimento do qual fala Paulo é um sofrimento que tem sentido libertador e redentor. Podemos pensar em algo parecido com um resgate da verdadeira dignidade da criação e dos filhos da criação, os filhos do Deus da criação. A luta por essa causa pode estar ligada a sofrimentos que têm sentido.
A criação está em relação direta com a vida humana e a filiação divina. Tudo está interligado, diz a Laudato Si’. Por isso, a impaciente espera é motivada pela manifestação da dignidade das filhas e filhos de Deus. Esta é a glória de Deus: que a pessoa humana viva com dignidade e em plenitude. Santo Irineu de Lyon diz que “a glória de Deus é o homem vivo”!
A segunda relação da criação é com a esperança: a criação abriga a esperança (v. 20). Lindo e verdadeiro nome para a Casa Comum de todos: “abrigo da esperança”! Neste ano jubilar, com o tema “Peregrinos de esperança”, o papa Francisco lembrava: “A esperança é uma âncora. Uma âncora que se joga com a corda e afunda na areia. E nós temos de estar agarrados à corda da esperança. Bem agarrados”.[1]
Quando contemplamos a realidade ecológica planetária, quando ouvimos os gritos da terra e dos povos da terra, entendemos a atualidade das palavras de Paulo: “a criação toda geme e sofre dores de parto” (v. 22). Dores de parto são dores de esperança e vida. Nosso cuidado com a criação é para que seus gemidos e sofrimentos não se tornem dores de aborto, que trazem no horizonte a morte, onde há falta de vida e esperança. A Laudato Si’ convoca para uma “cultura do cuidado”, e a Campanha da Fraternidade de 2025 alerta para a necessidade de uma “ecologia integral”, que abrange também o cultivo de uma espiritualidade ecológica.
Aos gemidos da criação somam-se os gemidos de inúmeros irmãos e irmãs. “E não somente ela (a criação), mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo” (v. 23).
3. “Na esperança já fomos salvos”: nossos gemidos são de esperança?
“Gemidos de esperança” brotam dos filhos e filhas de Deus, de nós, que já possuímos as primícias do Espírito. A pergunta agora é: de que esperança fala Paulo na carta aos Romanos? Que esperança nos anima hoje? Para responder a essa pergunta, Paulo evoca uma tensão paradoxal entre o “ver” e o “esperar”, quando diz: “Ver o que se espera já não é esperar: como se pode esperar o que já se vê? Mas, se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (v. 24-25).
Aqui podemos trazer à memória o testemunho de Abraão e das minorias abraâmicas que caminham na fé e na esperança como se vissem o invisível. A teologia paulina põe ênfase na tríade fé-esperança-amor (cf. 1Ts 1,3; 5,8; 1Cor 13,13 etc.). Há uma interligação intrínseca entre estas três, assim chamadas, “virtudes teologais”. Em Hebreus, a fé é apresentada como um “modo de já experimentar aquilo que se espera. É um meio de conhecer realidades que ainda não se veem” (Hb 11,1).
Cardeal D. José Tolentino Mendonça lembra que:
A fé é um caminho feito de expectativa e confiança. E o nosso modo de caminhar na fé é tateando, como se víssemos o invisível, segundo a bela formulação da carta aos Hebreus (11,7). Somos habitados pela possibilidade de Deus, por uma questão inesgotável. Mas a proximidade de Deus com a nossa história não anula a dimensão purgativa, a experiência da existência como tal, feita de perguntas e agonias, de dúvidas, de desertos, de noites escuras (www.instagram.com/comodissetolentino, 29 fev. 2024).
Abraão não tinha motivos, humanamente falando, para ter esperança: ele e Sara não poderiam ter o filho tão esperado. No entanto, Abraão contava com uma promessa de Deus e, por isso, escolheu continuar acreditando. Em suas catequeses, o papa Francisco exortava a inspirar-nos na grande figura de Abraão para nos indicar o caminho da fé e da esperança. Paulo escreve: “Esperando contra toda a esperança, Abraão teve fé e se tornou pai de muitas nações” (Rm 4,18).
De fato, o anúncio de Deus a Abraão, prometendo-lhe o nascimento de um filho, era humanamente inacreditável, porque ele era idoso – tinha quase 100 anos – e Sara, sua esposa, era estéril. Abraão crê na promessa de Deus, e sua fé se abre a uma esperança aparentemente irracional; essa é a capacidade de ir além das razões humanas para acreditar no impossível, como foi a experiência de Maria: “Para Deus nada é impossível!” (Lc 1,37). A esperança abre novos horizontes, torna capaz de sonhar aquilo que não é nem mesmo imaginável.
Viver na esperança viva e ativa “não é fácil”, continuava o papa Francisco nas suas catequeses. Faz entrar na escuridão de um futuro incerto para caminhar na luz. Aqui chegamos a um ponto crucial da esperança: a tentação de desistir de esperar. Abraão, na fé, dirige-se a Deus não para pedir o filho, mas para que o ajude a continuar esperando. Sua única segurança é confiar na palavra-promessa de Deus e continuar a caminhar mesmo contra toda esperança (Audiência Geral, 28 dez. 2016).[2]
Exatamente nesses momentos de escuridão, quando não é fácil esperar, ou esperançar, também hoje o Espírito vem em nosso auxílio.
4. O Espírito vem em auxílio de nossa fraqueza: gemidos inefáveis de intercessão
Do mesmo modo, também o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois nem sabemos o que convém pedir; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que sonda os corações sabe quais são os desejos do Espírito, pois o Espírito intercede pelos cristãos de acordo com a vontade de Deus (v. 26-27).
Chegamos, assim, a um dos aspectos mais importantes da esperança, que é sua dimensão escatológica. Quer dizer: a esperança vai além do sensível, do palpável e do visível. É um dom do Espírito que aponta para a realidade do Reino de Deus, “já e ainda não” presente neste mundo. Portanto, a esperança nos dá forças para caminhar na vida, apesar das incertezas e dos sofrimentos do momento presente. Como povo de Deus, peregrinamos neste mundo aguardando, em viva esperança, a vinda do Reino do seu amor, quando “Deus será tudo em todos” (1Cor 15,28).
Por fim, encontramos na expressão “o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” uma manifestação mística de novo modo de rezar, uma nova espiritualidade, gerada, no mais íntimo do ser humano, como dom do Espírito de Jesus. Ele reza em nós, sustenta-nos e faz-nos pedir o que convém a nós e ao projeto de Deus, que quer concretizar-se com nossa colaboração.
Tudo isso não conseguimos apenas por nossa própria vontade e esforço humano. Que os gemidos inefáveis do Espírito venham em auxílio de nossa fraqueza e completem o que Deus em nós começou!
“Completai em mim a obra começada, ó Senhor,
vossa bondade é para sempre!
Eu vos peço: não deixeis inacabada
esta obra que fizeram vossas mãos!”
(Sl 137/138,8; cf. Fl 1,6)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBAGLIO, G. As cartas de Paulo (II). São Paulo: Loyola, 1991.
CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1992. (Grande Comentário Bíblico).
EQUIPE DE REFLEXÃO BÍBLICA DA CRB. Viver e anunciar a Palavra: as primeiras comunidades. São Paulo: CRB: Loyola, 1995. (Tua palavra é vida, 6).
FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da Casa Comum. São Paulo: Paulus, 2015.
[1] Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2025-02/significado-da-esperanca-para-a-papa-francisco.html. Acesso em: 10 abr. 2025.
[2] Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2016/documents/papa-francesco_20161228_udienza-generale.html. Acesso em: 10 abr. 2025.
Ir. Dra. Lucia Weiler, dp*
*é irmã da Divina Providência. Doutora em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), tem experiência no magistério de Sagrada Escritura tanto em meios populares, vinculados ao Centro de Estudos Bíblicos (Cebi), quanto em espaços acadêmicos (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – Estef). Atualmente reside em Canoas-RS e, além de assessorias bíblico-teológicas, atua como vice-presidenta da Rede Divina Providência de Assistência Social e Cidadania (Redipasc), que cuida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.