Atualidades

UMA IMAGEM DIFERENTE DE JESUS: O EVANGELHO DE SÃO LUCAS

18/11/2025

Eliseu Wisniewski*

* Presbítero da Congregação da Missão Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontíficia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

Eis o artigo:

Na obra O Evangelho de São Lucas: uma imagem diferente de Jesus (Paulus, 2025, 536 p.), o biblista José Luis Sicre Díaz oferece uma contribuição de grande relevância aos estudos neotestamentários atuais, ao combinar rigor exegético com clareza didática. Doutor em Sagrada Escritura e conhecido por sua extensa produção no campo da teologia bíblica, Sicre Díaz propõe um comentário que alia profundidade acadêmica e acessibilidade, tornando-se útil tanto para estudiosos da Bíblia quanto para leitores interessados em compreender de modo mais aprofundado o Evangelho segundo Lucas.

Desde a introdução, o autor evidencia seu compromisso com uma abordagem metodológica rigorosa e equilibrada. A tradução do Evangelho é apresentada em três tipos distintos de grafia, que permitem identificar visualmente as fontes utilizadas por Lucas: o Evangelho de Marcos (Mc), os ditos de Jesus (Q) e as tradições próprias do evangelista (Lc). Esse recurso didático revela o esforço do autor em tornar compreensível o processo de composição do texto lucano, frequentemente objeto de debate na pesquisa bíblica. Além disso, o volume inclui uma bibliografia especializada e atualizada, contemplando publicações relevantes do século XXI, o que demonstra o empenho do autor em dialogar com a produção acadêmica recente.

Sicre Díaz desde o início chama a atenção para algumas dificuldades hermenêuticas do Evangelho. A primeira deles é o desafio linguístico: Jesus falava predominantemente em aramaico e recorria a uma linguagem simbólica, cuja compreensão exigia constante explicação, inclusive entre os discípulos. A tradução posterior de suas palavras para o grego acrescentou novas camadas de complexidade, gerando questionamentos sobre a fidelidade ao sentido original das expressões. O autor, dialogando com exegetas como Joachim Jeremias, reconhece o valor e as limitações das tentativas de reconstrução do substrato aramaico.

Outra dificuldade é a releitura da mensagem de Jesus à luz da fé pascal. Sicre Díaz explica que a experiência da ressurreição influenciou profundamente a redação dos Evangelhos: os primeiros cristãos não se limitaram a registrar fatos históricos, mas reinterpretaram-nos à luz da glorificação do Ressuscitado. Nesse contexto, o chamado “Jesus histórico” aparece, em Lucas, já como o Cristo da fé. Essa perspectiva, longe de comprometer a credibilidade do texto, confere-lhe densidade teológica e espiritual.

O autor também dedica especial atenção à relação entre o Novo e o Antigo Testamento. Mostra como os evangelistas, e Lucas em particular, reinterpretam as Escrituras hebraicas para afirmar a identidade messiânica de Jesus. Episódios como o acalmar da tempestade, a multiplicação dos pães e as curas milagrosas são apresentados como releituras de ações divinas narradas no Antigo Testamento. Essa intertextualidade, segundo Sicre Díaz, é indispensável para a compreensão da cristologia lucana.

O reconhecimento do contexto greco-romano em que o Evangelho foi redigido é outro ponto de destaque. Lucas, embora conhecedor das tradições judaicas, escreve para um público inserido em uma cultura helenística, o que o leva a adotar categorias e imagens próprias desse universo.

Sicre Díaz é consciente da diversidade de interpretações e teorias sobre o Evangelho de Lucas. Em vez de se perder em discussões excessivamente técnicas, opta por apresentar apenas as hipóteses mais relevantes para a compreensão global do texto. Essa decisão metodológica, embora possa ser vista como uma limitação para leitores mais especializados, confere à obra uma clareza rara entre comentários acadêmicos. O autor demonstra, assim, uma capacidade notável de síntese e discernimento crítico.

O comentário em si reflete o equilíbrio entre profundidade e clareza expositiva. Sicre Díaz evita o uso excessivo de jargões técnicos e recorre ao grego apenas quando necessário, sempre com explicações claras. Sua leitura é atenta e orante, revelando não apenas o exegeta, mas também o teólogo comprometido com a mensagem pastoral e espiritual do texto. Ao analisar as passagens, o autor compara-as com seus paralelos em Marcos e na Fonte Q, identificando conexões internas sem forçar interpretações artificiais. A atenção constante ao substrato veterotestamentário constitui um dos méritos da obra, pois permite compreender a teologia de Lucas a partir de suas raízes judaicas. A atenção sistemática ao substrato veterotestamentário representa um aspecto positivo do texto, na medida em que possibilita apreender a teologia lucana a partir de suas raízes propriamente judaicas.

A bibliografia reunida é outro aspecto a ser destacado. Atualizada e cuidadosamente selecionada, ela complementa os clássicos estudos de Fitzmyer e Bovon, aos quais o autor recorre com frequência. Ao final, o vocabulário temático, com definições de termos recorrentes como “Reino de Deus”, “fariseus”, “escribas” e diversos títulos cristológicos, oferece ao leitor um instrumento útil para a leitura continuada do Evangelho.

Desta forma, O Evangelho de São Lucas: uma imagem diferente de Jesus representa uma contribuição original aos estudos bíblicos atuais. Sicre Díaz consegue unir rigor científico, clareza expositiva e sensibilidade pastoral, oferecendo uma leitura que respeita tanto o texto quanto o leitor. Sua abordagem evita o excesso de teorias, privilegiando a coerência e a compreensão global do Evangelho. Ainda que possa ser considerada menos técnica em comparação aos comentários de grande fôlego acadêmico, a obra cumpre seu propósito: apresentar uma imagem de Jesus segundo Lucas que seja ao mesmo tempo fiel à pesquisa científica e inspiradora para a fé. Trata-se, portanto, de um livro que se destaca pela maturidade exegética e pela capacidade de aproximar o leitor da profundidade teológica e humana do Evangelho de Lucas.