Publicado em janeiro-fevereiro de 2026 - ano 67 - número 367 - pp. 20-25
BÍBLIA E CATEQUESE: um matrimônio pastoral indissolúvel
Por Pe. Felipe Sardinha Bueno*
Este artigo pretende convidar os agentes de pastoral que trabalham mais diretamente com percursos catequéticos nas comunidades a se enamorarem da Palavra de Deus, fonte primaz de nossa espiritualidade, a fim de difundi-la no apostolado cotidiano.
1. Como seria um encontro catequético?
Eram os anos da última década do segundo milênio. Conduzidos por nossos pais, íamos pela primeira vez ao encontro catequético em preparação para a primeira comunhão na singela capela dedicada ao apóstolo dos gentios (São Paulo). Tudo era novo. Havíamos entrado em contato com esse tema somente alguns anos antes, quando nossa avó portuguesa mostrara a mim um catecismo antigo com questões básicas de doutrina e orações a serem recitadas.
Pensávamos que a nobre catequista, a qual encontrávamos pela primeira vez na ocasião, iria fazer, na reunião formativa conosco, uma espécie de “tabuada espiritual”, com orações a serem decoradas e fielmente reproduzidas, tal qual em uma típica prova dialogal. A surpresa, porém, chegou de um modo encantador: tratava-se de uma reunião dinâmica, animada com a Sagrada Escritura, publicada pela Paulus Editora (a conhecida “Bíblia Pastoral”), plena de espiritualidade, significado e reflexão acerca da história da salvação, desde o Primeiro Testamento – trazendo nossa criação e o projeto de liberdade anunciado por meio do êxodo do povo eleito rumo à Terra Prometida – até as primeiras comunidades vivas, repletas de entusiasmo, nascido da certeza da entrega do Cristo crucificado e ressuscitado, e o envio do seu Espírito para santificar-nos.
2. Bíblia e catequese: uma união metodológica indispensável
Esse breve relato autobiográfico de nosso ingresso na preparação para a sagrada comunhão, acima descrito, traz consigo um incentivo fundamental para a animação catequética cotidiana, o que poderia, por um lado, parecer evidente, mas, por outro, ser facilmente olvidado sem o devido cuidado apostólico: trata-se do autêntico uso da Bíblia na catequese, nos percursos preparatórios para os sacramentos de iniciação à vida cristã, como o batismo, a Eucaristia e a confirmação, bem como nas atividades pastorais como um todo, a fim de se manter coerentemente a fidelidade ao projeto divino, traduzido em sua revelação histórica, e a custódia da Igreja desse tesouro a nós confiado, por meio de seu magistério e Tradição.[1]
A Palavra de Deus, base de nossa estrutura cristã, não poderia ser coadjuvante nesse processo formativo comunitário, pois, além de ser fonte espiritual por excelência, nos garante a coerência com os valores do Reino divino ali inscritos. Se essa Palavra forte e transformadora se reduzisse exclusivamente a passagens “adocicadas”, aleatoriamente retiradas para sustentarem cosmovisões e discursos de descompromisso com Aquele que nos chama a uma vivência integral e harmônica, perderia seu vigor e valor.
3. Como usar essa Palavra no programa educativo-catequético de modo coerente, bem articulado e salutar?
A resposta a tal pergunta dependerá de cada realidade e necessidade pastoral, mas, fundamentalmente, a compreensão acerca da conexão do período pré-cristão e seu desenvolvimento com a literatura neotestamentária é absolutamente exigida, a fim de entender a Bíblia como um todo.
Se levarmos em consideração que Jesus, o Cristo, provém de uma tradição anunciada pelos profetas e por sua cultura hebraico-judaica, enriquecida com os 46 títulos da primeira parte dos escritos sagrados, veremos o sentido da unidade semântica existente entre os dois testamentos e a possibilidade de ler, nos eventos da salvação, o acompanhamento cuidadoso do Deus de nossos pais e seu cume de amor manifestado na encarnação do Verbo, narrada nos Evangelhos, e em sua entrega completa por cada um de nós, pecadores por ele redimidos: “O único sacrifício perfeito e agradável a Deus é o de dar-lhe o devido louvor e a devida glória. A maior doxologia e ação de graças é o sacrifício oferecido em nome de Jesus Cristo” (Gomes, 2006, p. 57).
4. Se essa Palavra é tão rica, como interpretá-la de um modo zelosamente cristão, sem deixar escapar seu conteúdo precioso?
Esse questionamento pode ser descrito como uma espécie de “núcleo” que permite a muitos catequistas sentirem certo “medo” no uso da Bíblia em seu apostolado, sentimento poeticamente cantado neste antigo hino anglicano: “Penetrando num mundo […] onde espetros povoam, medonhos, e dominam dos homens a mente” (Conselho Nacional da Igreja Episcopal Brasileira, 1962, p. 179).
A Bíblia, de fato, é profunda e possui não poucos trechos difíceis de compreender e abordar em meditações pessoais e encontros comunitários. Alguns deles se assemelham a relatos de violência (por exemplo, 1Sm 31,1-4) e são até mesmo polemicamente ousados, como os textos dos profetas, que denunciavam as injustiças e corruptelas institucionais dos poderes reinantes em sua época (por exemplo, Amós).
Nem todas as passagens são psicologicamente “confortantes”, como poderiam nos fazer supor as que costumam ser compartilhadas em redes sociais na atualidade. Algumas delas nos remetem ao imperativo do compromisso com o outro (cf. Lc 10,25-37) e com toda a criação (cf. Rm 8,22), como resposta ao compromisso divino, e chamam o povo a uma autêntica conversão, não somente pessoal, emocional e existencial, mas também comunitária, estrutural e político-cultural. Assim afirma Boselli (2014, p. 160): “o fiel não pode prestar culto ao Senhor e, ao mesmo tempo, ignorar o irmão que está na necessidade”.
Daí decorrem os desafios diante de uma tendência, observada em diversos contextos, cada vez mais crescentes, de diluição dos conteúdos de nossa fé para agradar à “clientela religiosa” em suas diversas “facções” de desejos criados. Toda essa reflexão nos indicaria caminhos para não nos perdermos na interpretação bíblica, mas nos saciarmos desse tesouro que dá sentido à nossa caminhada eclesial desde o processo catequético inicial.
A seguir, partilhamos algumas indicações práticas para o uso honesto, esmerado e destemido do conteúdo da revelação por parte de nossos estimados agentes pastorais eclesiais.
1) Para bem interpretar a Bíblia e usá-la nos encontros, sobretudo com crianças e jovens, de modo coerente, faz-se necessário estudá-la antes com afinco. Além das diversas edições críticas da Sagrada Escritura, existentes no mundo editorial brasileiro, como aquelas comentadas teologicamente de maneira intensiva, trecho por trecho, por especialistas, há muitos materiais textuais e audiovisuais disponíveis de alta qualidade para entender aquilo que está escrito, seu contexto cultural, sua mensagem principal e as possibilidades de atualização. Os modos de transmitir aquilo que foi assimilado deverão ser adaptados conforme a realidade, o público-alvo e as necessidades mais urgentes do grupo escolhido: “Nos diversos níveis da vida humana está presente a comunidade, sempre com uma dinâmica própria e exigências […] específicas” (Pontifícia Comissão Bíblica, n. 135).
2) Não ter medo do que se lê: a Bíblia não foi escrita ontem, tampouco é uma carta para nos deleitar simplesmente, mas consiste em uma história redigida durante séculos, em um complexo arcabouço literário pleno de batalhas pela preservação da fidelidade ao Deus de nossos pais contra a constante tentação da idolatria, de transformar o sagrado em instrumento de justificativa dos próprios interesses, ideologias e anseios, os mais diversos possíveis, mediante a distorção de sua identidade.
3) Em muitas dioceses brasileiras, desenvolvem-se meios de formação teológico-pastoral e catequética eficazes, alguns presenciais e não poucos por intermédio de plataformas on-line, constituindo uma oportunidade de crescimento no saber e de intercâmbio de conhecimentos com outros atores da pastoral ordinária católica.
4) Ser católico não significa ser submisso a alguns poucos, que se dizem proprietários da “verdade”, mas implica obediência a um projeto maior de salvação e reta expressão de fé, sustentada e salvaguardada historicamente pelo magistério. A fim de não cair em discursos vazios de falsos profetas (até mesmo daqueles “sacramentalizados” institucionalmente), faz-se mister entrar em contato, de modo consciente, com a Palavra divina e buscar, em seus tesouros mais escondidos, as pistas que permitiram à Tradição eclesiástica nos introduzir nos mistérios da fé e na linguagem dogmática. Nesse sentido, o conhecimento das Escrituras torna-se um instrumento valioso para filtrar mensagens de videntes, gurus e coachs espirituais (leigos e clérigos) que aparecem cotidianamente, os quais, em tantas ocasiões, exibem seus vínculos com a catolicidade, mas, não poucas vezes, desviam-se daquilo que foi revelado e sistematizado no conteúdo bíblico e custodiado por nossa Igreja, desde sua fundação no primeiro século até hoje, por meio de sua rica Tradição.
5) Estudar a Bíblia é resistir às interpretações simplistas dos que almejam reduzir o Deus revelado à sua própria imagem e semelhança e a princípios conceitualmente erigidos por meio de secções de pensamento e de vontade egocêntricas.
6) Entrar em contato com a Bíblia para transmitir conteúdos catequéticos, passar valores sagrados aos outros, possibilita que se inicie um percurso de coesão consigo mesmo. Por tal razão, a Palavra traz vida e plenitude àqueles que a manuseiam, além de ideias e sustentação de ideais éticos profundos.
7) Outro fator importante para reservar lugar essencial à Palavra de Deus na formação e na espiritualidade cristãs é evitar a entrada de superstições, de conteúdos externos “suspeitos”, e manter a identidade divina salvaguardada (no conteúdo bíblico revelado). De fato, quando se estudam tais textos, percebem-se princípios correlatos ao ser de Deus em sua atuação junto a seu povo. Trata-se de uma maneira de escapar de uma imagem muito “mágica” do divino, de um lado (desencarnada da realidade), e, de outro, de expressões fundamentadas em certa “cultura de medo e ansiedade intermitentes”, em que a imagem do Senhor misericordioso cederia lugar a uma espécie de “fiscal” rigorista de uma lei desumana, sempre pronto a julgar e condenar escrupulosamente aqueles que lhe desobedecem nos mínimos preceitos – uma falácia que obnubila a real compreensão de um Ser divino compassivo e atencioso, o qual acompanha seu povo em um processo contínuo de crescimento, de transformação, e se permite sempre estender a mão, perdoando àqueles que se dispõem a ser ajudados no processo de redenção.
8) O uso de catecismos, livros didáticos e guias catequéticos não anula a presença da Bíblia; pelo contrário, prepara o caminho para a devida construção da base escriturística, pois, se nossa doutrina possui algumas características essenciais, ordinariamente professadas, isso se deve a essa fundamentação bíblica por excelência, alimentada pela Tradição e discernida pelo magistério católico.
9) Entrar em contato com os textos bíblicos na catequese e na vida pastoral diária permite chegar a uma compreensão mais acurada daquilo que é proclamado nas liturgias ordinárias, tornando a participação mais consciente e coerente ao descortinar o sentido da manutenção da unidade das duas mesas (liturgia da Palavra e liturgia eucarística).
10) Ao nos permitirmos utilizar a Sagrada Escritura em nossos encontros catequéticos e pastorais, veremos que, ao invés de falarmos por meio dela, será ela que, por meio de nós, chegará ao coração das pessoas e as ajudará a crescer no caminho para a eternidade. Ao colocarmos o texto santo no centro, veremos até mesmo que muitos dos nossos planos organizacionais e apostólicos serão transformados, pois, afinal de contas, onde a Palavra de Deus toca, não há como deixar de perceber ali mudanças significativas motivadas pelo Espírito Santo, que, por intermédio dela, age em nós e nos reconfigura, em vista de seu projeto redentor universal.
5. Bíblia na catequese: o retorno às fontes
O aproveitamento da Bíblia nos encontros catequéticos, além de responder ao chamado do Concílio Vaticano II de retorno às fontes, promove nas crianças, jovens e adultos o encontro direto com a redação sagrada, na qual estão presentes os conteúdos essenciais da revelação divina, demonstrando como Deus escolheu a humanidade e como, sobretudo, por meio da Palavra feita carne, Jesus, o Cristo, fomos acolhidos em seu processo de salvação, tornando-nos protagonistas de um amor incomensurável.
Ao mergulharmos nesse conteúdo, não somente enriquecemos nossa fé, nossos argumentos teológicos e nossa espiritualidade comunitária ordinária, mas também nos permitimos ingressar em um caminho autêntico de conversão, como resposta ao Deus que por nós se entregou, ao se relacionar conosco desde o início da criação em perspectiva de intimidade.
Ainda que não entendamos tudo de início ou que leve um tempo até que certas crenças populares sejam substituídas por princípios bíblicos mais robustos no processo, não há problema, pois a própria pedagogia divina toma em consideração o crescimento paulatino de cada um, e o mesmo se aplica ao desenvolvimento do conhecimento escriturístico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que não podemos aceitar é a mediocridade, contrária em si mesma ao Deus revelado, pois ela provocaria estagnação e desvio de sentido daquilo em que cremos. Poderíamos talvez nomear essa atitude, vislumbrada em alguns agentes pastorais catequéticos (leigos ou ordenados ministerialmente), como uma “heresia comportamental”, perigosa para a saúde espiritual das comunidades nas quais os citados estão diretamente implicados.
Lancemo-nos ao contato com aquilo com que Deus nos presenteou durante séculos, e os frutos – no tempo dele, e não da lógica imediatista do mercado contemporâneo, ansioso por resultados rapidamente alcançados – florirão para o bem de todos os envolvidos e em fidelidade ao Deus que nos escolheu como agentes propagadores de seu Reino, para compartilhá-lo com os que são a nós confiados.
Referências bibliográficas
BOSELLI, G. O sentido espiritual da liturgia. Brasília, DF: Ed. CNBB, 2014.
CONSELHO NACIONAL DA IGREJA EPISCOPAL BRASILEIRA. Hinário. Porto Alegre: Metrópole, 1962.
GOMES, J. A. A Eucaristia em São Justino. Cadernos Patrísticos, Florianópolis, ano 1, n. 1, p. 51-58, 2006.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Bíblia e moral: raízes bíblicas do agir cristão. São Paulo: Paulinas, 2009.
[1] Sobre a revelação divina, Romano Guardini reflete de modo magistral na sua referência às Sagradas Escrituras, à Tradição e ao magistério na seguinte obra: La visione cattolica del mondo, Brescia: Morcelliana, 1994.
Pe. Felipe Sardinha Bueno*
*é doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana de Roma, presbítero secular da diocese de Santos e atualmente missionário ad gentes na parte francesa da Suíça, junto à comunidade local e a grupos de imigrantes de língua italiana e espanhola.

