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Publicado em número 129 - (pp. 21-24)

Consequências políticas provenientes das seitas

Por Pe. José Comblin

1. Premissa

Antes de começar este artigo, preciso avisar ao leitor que não sou sociólogo e o assunto que me foi pedido é de sociologia. Assim se explica porque me contentarei com referir-me a obras escritas por sociólogos.

O nosso ponto de partida serão os fatos. Qual a participação dos “crentes” nas atividades sociais e políticas?

O título refere-se às “seitas”. Há centenas de organizações religiosas no Brasil que poderiam merecer este nome. Ou, então, nenhuma. Pois o nome é bastante depreciativo. No presente artigo, falarei apenas da categoria de longe a mais importante no Brasil que são os pentecostais, popularmente chamados “crentes” de modo eminente. São principalmente as Assembleias de Deus, as Congregações Cristãs e o Brasil para Cristo.

 

2. Participação política dos pentecostais

Quanto à participação política, houve vários ensaios de expressão própria de O Brasil para Cristo depois de 1964. Mas as tentativas não prosperaram. Nas últimas eleições viu-se que os candidatos crentes multiplicaram-se muito. Tudo indica que nas eleições de 1986 serão mais numerosos ainda.

Antigamente a maioria dos candidatos foram eleitos nas listas da situação: a mesma coisa aconteceu com os católicos. Mas houve candidatos em todos os partidos, inclusive no PT.

De modo geral, os crentes gostam de ter representantes próprios em todas as assembleias. É uma proteção e uma garantia. É também um órgão de comunicação com o Estado. A Igreja católica sempre agiu da mesma maneira e usou diversas táticas para conseguir que alguns dos seus fiéis mais firmes estivessem nas assembleias representativas. Contudo, o comportamento político dos eleitos crentes não é típico. Os crentes não são diferentes dos católicos como membros dos seus partidos.

 

3. Os pentecostais na ação social

No que diz respeito à ação social, foi notada a participação de crentes nas Ligas Camponesas de Francisco Julião. Tiveram um papel de destaque. Certo dia, um jornalista perguntou a Julião: “Não havia diferença de ideias entre você e os protestantes que trabalhavam com você?” Julião respondeu: “Não. Eu defendia o que estava no Código, na Lei, na Constituição. Nunca saí dali. Ao contrário, os protestantes radicalizavam muito, baseando-se nos profetas que disseram coisas tremendas. Usavam expressões muito fortes, como quando citavam Isaías. Eu até pedia para que moderassem um pouco a linguagem. Como o protestante se sentia oprimido e perseguido, tinha uma tendência para sectarizar a linguagem”[1].

Também no Maranhão, sob a liderança de Manuel da Conceição houve boa participação de crentes.

Os crentes entraram nos sindicatos e aprenderam a defender os seus direitos. Perguntou-se a um advogado de sindicato se percebia alguma diferença entre os associados de religiões diferentes. Respondeu que os crentes são mais convictos desses direitos, defendem mais do que os demais. são intransigentes em relação aos direitos, mesclam direito com religião.[2]

A conversão religiosa a uma denominação pentecostal ao invés de se tornar empecilho para a associação ao Sindicato e para a aceitação das propostas dessa organização, pode constituir-se em reforço para a resolução dos conflitos em nível da legislação[3]. O fato de ser crente não diminui a oposição aos fazendeiros, nem a expressão das contradições de classe.

Os críticos das Igrejas pentecostais baseiam-se em certas doutrinas professadas por essas igrejas. A doutrina separa muito o mundo do rebanho dos eleitos. Os crentes professam uma vida santa, afastada dos vícios do mundo. Tal atitude exprimiria uma “alienação” radical. A acusação de alienação é bastante geral. Por causa das suas doutrinas, os pentecostais seriam mais conservadores e necessariamente defensores do status quo, do governo estabelecido e da ordem social.

A prática mostra o artificialismo de tais considerações teóricas. Pois na prática, a doutrina do afastamento do mundo não impede nem diminui o ardor no trabalho, nem as preocupações para melhorar as condições de vida. Não leva a afastar-se da convivência com as famílias e a vizinhança. Não leva a distanciar-se das lutas pelos direitos. Não afasta do sindicato, das associações e da política.

Haverá, sim, um estilo especial. Os crentes evitam tudo o que é festa: não farão dos comícios uma festa. Não se juntarão a outros para fumar, beber ou dançar. A sua participação na vida pública será de estilo austero. O tema do sacrifício e da vida austera não diminui o afã de uma condição econômica e social melhor. Ao contrário. O sacrifício limita-se ao supérfluo, aos “vícios”.

Outra fonte de acusação vem da alegação de submissão às autoridades. Os crentes citam frequentemente Rm 13. Citam esse trecho sobre as autoridades para mostrar que não são desordeiros.

Porém, o texto de Rm 13 é também doutrina de todas as outras denominações cristãs. A doutrina da igreja católica está também baseada nesse texto.

Aconteceu que, no passado, os crentes tiveram que sofrer perseguições por parte das autoridades civis instigadas geralmente por membros do clero. Guardaram dessa experiência certo complexo de minoria oprimida que sente sentimento de inferioridade e compensa essa inferioridade por fechamento na sua própria superioridade moral. Por via de consequência, muitos crentes procuraram não dar pretextos aos perseguidores. Quiseram aparecer aos olhos das autoridades como cidadãos pacatos.

Tal situação está em via de superação. Os pentecostais vão vencendo os seus sentimentos de inferioridade e já se sentem numerosos e fortes. Já sabem que deixaram de ser um fator político desprezível.

Uma vez que os protestantes se convenceram de que as autoridades são injustas, os seus protestos são mais fortes e mais radicais.

Afinal de contas, todas as Igrejas cristãs ensinam mais ou menos a mesma doutrina. Somente o governo e a organização diferem. O que os pentecostais ensinam sobre a vida futura e a vida presente, sobre a vida e a moral, é também o que a Igreja católica sempre ensinou e ainda ensina. Seria estranho que houvesse entre diversas denominações cristãs atitudes políticas diferentes por causa das suas doutrinas.

Na realidade, as diversas atitudes sociais e políticas não são condicionadas pelas variações nas doutrinas religiosas. Estas influem bem pouco. O substrato de doutrina religiosa vivida pelas massas é o mesmo entre os católicos, protestantes ou pentecostais. Por sinal, está reduzido a núcleo bem pequeno. Quanto às doutrinas teológicas, estão reservadas a pequenas minorias que com certeza não alcançam 1% da população.

Os cristãos vão agir politicamente a partir da sua situação econômica e social. Não podemos pensar que haverá muitas diferenças de comportamento entre operários católicos e operários protestantes ou pentecostais, entre camponeses católicos e camponeses pentecostais. Os fatos mostram que tal diferença não existe.[4]

 

4. Os pentecostais e a consciência revolucionária

Alguns reprocham aos pentecostais a ausência de consciência revolucionária. No entanto, nisto também os pentecostais não são diferentes das outras religiões. Há algumas comunidades de base católicas, pequena minoria, que têm tal consciência. Na massa católica, representam proporção mínima. A grande massa exprimirá a sua consciência de acordo com a circunstância. Numa situação em que a consciência revolucionária é necessariamente inoperante, ela não nascerá das massas. Se a situação mudar, poderemos ver que os operários pentecostais terão reações e consciência semelhante aos operários católicos, e da mesma maneira os camponeses pentecostais.

As mudanças sociais e políticas não foram feitas por doutrinas religiosas, nem por denominações ou confissões cristãs. A ação social do cristianismo realiza-se num nível mais profundo do que a consciência.

O passado mostra que os protestantes não manifestaram menos capacidade de transformação social do que os católicos. Ao contrário, a comparação é desfavorável aos católicos. Ora, os protestantes dos séculos XVI-XVIII eram muito semelhantes às seitas populares de hoje.

Alguns elementos podem parecer mais favoráveis aos católicos. As comunidades católicas populares podem contar com a ajuda ideológica e com a condução estratégica de elites sociais e políticas. A unidade institucional da Igreja católica permite circulação entre classes, membros do clero e intelectuais que pertencem às classes médias ou dirigentes, e que podem desempenhar papel de orientação sobre as comunidades populares. Podem levá-las a maior “politização” ou “conscientização” pelo menos aparente. Pois nunca se sabe até onde as massas populares seguirão as suas elites mesmo “orgânicas” na hora do aperto e na hora da prática. À primeira vista, certos setores dos católicos podem parecer mais “progressistas” do que os pentecostais. Tal impressão merece alguns reparos.

É verdade que certos pastores podem temer perder a sua autonomia se se deixam incorporar em organizações muito fortes. Os pastores, não tendo nenhuma formação teórica sistemática, não podem ter visão de conjunto da sociedade e da sua evolução.

Mas por outro lado, as igrejas pentecostais são populares. O mundo religioso brasileiro está dividido em duas grandes categorias: religiões populares e religiões eruditas. Estas últimas estão conectadas com as classes dirigentes. O seu clero forma parte dessas classes dirigentes da sociedade, pela cultura e pela influência social. O catolicismo popular não goza de muita autonomia. Mantém-se nas áreas periféricas do campo ou da cidade, que não interessam os sacerdotes. Mas não dispõem de muito espaço. Ao contrário, os pentecostais são totalmente independentes. Lutam e defendem-se contra a pressão das igrejas eruditas que os desprezam. Mas conseguiram formar espaço religioso relativamente independente. Este está em contato permanente com o povo oprimido e reflete unicamente os interesses dele.

Claro está que essas religiões são vulneráveis diante da pressão da cultura dominante. Assimilam facilmente fragmentos da ideologia das classes dominantes. Mas os católicos também.

Mais importante é que essas Igrejas constituem um mundo popular independente de organizações de classes dirigentes. A longo prazo, tal situação é mais favorável do que a situação das massas populares católicas.

Pois na hora da tensão social, os católicos são mobilizados pelos setores dominantes ligados às classes superiores. Os grupos revolucionários são sumariamente rejeitados. Assim aconteceu depois de 1964. Desde então a situação não mudou muito. Um grande setor do clero e dos institutos religiosos está ligado de fato às classes superiores ou médias. Trabalham nesse setor e na hora das decisões e dos conflitos reagem com esses setores. A sua força dentro da Igreja católica é tal que conseguem a condenação e a expulsão dos elementos ligados a uma ação revolucionária. Deixam os grupos populares desamparados e desiludidos.

 

5. Perspectivas de futuro

A longo prazo, a população pentecostal pode fornecer um fator mais progressista do que a população católica, apesar dos grupos católicos mais conscientizados.

As opiniões desfavoráveis, frequentes entre os dirigentes católicos, refletem provavelmente um sentimento de superioridade de classe. As doutrinas dos pentecostais correspondem às doutrinas comuns no catolicismo em outros tempos. Mas o clero esclarecido se acha mais modernizado, deixa certos aspectos tradicionais da doutrina na sombra e exprime outras doutrinas de maneira renovada. Por outro lado, o clero prefere ignorar as doutrinas do catolicismo popular, tão semelhantes às doutrinas do protestantismo popular.

Tudo indica que num futuro próximo os protestantes populares terão presença mais visível e atuação mais agressiva na política. Atingiram li­miar que lhes permite desempenhar papel importante. Na Constituinte serão um grupo não desprezível. Não é provável que agirão como grupo unido. Estarão divididos entre partidos como os católicos. No Brasil, os interesses locais são tão divergentes e tão complexos que a formação de partidos ideológicos se torna muito difícil.

 

Bibliografia

ROLIM, F. C., Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sociorreligiosa. Petrópolis: Vozes, 1985.

BRANDÃO, C. R. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980.

NOVAES, R. R. “Os escolhidos de Deus. Pentecostais, trabalhadores e cidadania”. Cadernos ISER, Rio de Janeiro, 1985.



[1] Cf. Regina Reyes Novaes. “Os escolhidos de Deus”. Cadernos ISER, 19. Rio de Janeiro: Marco Zero, n. 33, 1985, p. 132

[2] Ibidem, p. 131.

[3] Idem, ibidem.

[4] Cf. Carlos Rodrigues Brandão. Os deuses do povo. São Paulo: Brasi­liense, 1980, pp. 293-302 e, em geral, pp. 226-302.

Pe. José Comblin