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Publicado em número 110

Ainda uma Igreja de clérigos e leigos? – I

Por João Rezende Costa

I. INTRODUÇAO

A intenção deste artigo é encaminhar uma reflexão que visa superar a distinção entre “clérigos e leigos” em eclesiologia. Nem no Direito Canônico, nem na prática clericalizada de Igreja, nem na linguagem corrente está superada essa distinção. Mas é possível superá-la teologicamente, buscando nova designação para o que havia de correto na distinção e superando os seus defeitos em nova síntese eclesiológica. E uma vez ganho terreno no campo da eclesiologia — a teoria sobre a Igreja —, o avanço haveria de se expressar também na prática, influenciando o Direito, sobretudo os planejamentos pastorais para realizar concretamente a Igreja, mas também mudando a linguagem corrente. As ideias, as práticas e a linguagem referente a elas se emaranham de tal forma, que umas dificilmente se descartam sem as outras. A própria linguagem retém seu vigor autônomo: constitui fator que porta e apoia a teoria e a prática passadas.

O tema pode ser considerado sob o prisma da teoria e da prática, acentuando-se ora um ora outro aspecto. Divido, pois, a abordagem em dois pontos de interesse. No presente número da Vida Pastoral, trato dos parâmetros doutrinais que fundam uma nova teoria para superar a designação de “clérigos e leigos” no seio da Igreja. Em um próximo número, pretendo falar de propostas concretas para a prática pastoral. Pois a nova teoria não pretende ser diletantismo, mas quer estimular e dirigir ações, planejamentos e propostas para mudar uma realidade, precisamente a da Igreja construída.

No quadro dos parâmetros doutrinais, divido a matéria da seguinte forma:

1.  Refere-se a uma imagem de Igreja rica de ministérios, onde se acentua: a) a igualdade e a dignidade básica de todos no seio do Povo de Deus; e b) os serviços, baseados nas distinções e diferenças no interior do Povo de Deus.

2.  A superação da distinção e linguagem relativas a “clérigos e leigos”.

II. PARÂMETROS TEOLÓGICO-DOUTRINAIS

1. Por uma Igreja sem rigidez, rica de ministérios

Da mais fundamental e histórica importância foi a decisão dos Padres do Vaticano II de fazer preceder na Lumen Gentium ao capítulo sobre “a constituição hierárquica da Igreja” (capítulo III), um capítulo sobre o Povo de Deus em geral (capítulo II). Esse fato ainda não produziu todas as suas consequências. De um só golpe, romperam com a estrutura piramidal da compreensão eclesiológica vigente — segundo a qual os ministros ordenados como que pairavam acima do povo cristão com status eclesial de privilégio e como se fosse necessária mediação entre os fiéis e Deus —, e, ao mesmo tempo, inseriram os “hierarcas” bem no chão e terra a terra de todo o Povo de Deus em sua aventura comum (ou melhor, em outra perspectiva, fizeram-nos descer às raízes e bases da seiva de sua verdadeira dignidade, como passaremos a expor).

Vários aspectos da Eclesiologia do Vaticano II foram levados avante pela reflexão teológica posterior e possibilitaram a visão de “uma Igreja toda ministerial” (cf. Giuseppe Colombo. “O ministério presbiteral numa igreja toda ministerial”, em: Atualização, nº 12, 1981, pp. 254-274). Sempre encaminhando o pensamento no sentido de fazer emergir a superação da distinção entre “clérigos” e “leigos” e tentando mostrar como a visão eclesiológica resulta daí mais plurifacética, menos rígida e mais rica de possibilidades concretas, discorremos sobre os seguintes temas.

a) A igualdade e a dignidade básica de todos no seio do Povo de Deus

Compreendendo a Igreja na chave de “o Povo de Deus”, o Vaticano II comandou uma virada de perspectiva sobre a Igreja e as formas de construir a Igreja. Já pelo fato de ser esse tema anteposto à tratação sobre a “hierarquia”, sublinha-se que também os cristãos ordenados não escapam à moldura do Povo de Deus e nele acham o sentido tanto de si enquanto fiéis como o do seu ministério. Essa reviravolta significou a boa intenção (quando vai passar plenamente à prática?) de eliminar a arraigada figura piramidal do conceito corrente da Igreja, representada como uma pirâmide, em cujo pico, como que constituindo realização mais plena de Igreja, estaria situada a “hierarquia”, tendo em sua base os cristãos comuns (ou os chamados “leigos”, o não “clero”), de tal forma que os cristãos ordenados vieram a apresentar a fachada e a presunção de ser uma casta especial de dignidade dentro da Igreja, bem como de falar “em nome da Igreja”, como se Igreja fossem só eles. Trata-se do que sói chamar-se de “clericalismo”.

Contudo, o Povo de Deus é constituído por chamamento e amor gratuitos (puro dom) do Pai, e baseia-se — em sua modalidade explícita de plena pertença (cf. LG 14) — na união íntima e exercida com Jesus Cristo pelos sacramentos do batismo, crisma e eucaristia, fruindo todos os fiéis de básica igualdade. No seio do Povo de Deus o único título de dignidade é a graça de Deus (que, resumindo, importa no amor eficaz para com Deus e para com o próximo): somente ela e o grau de sua intensidade de vivência determinam quem é e quem é mais na Igreja sob o aspecto que sobretudo importa. Portanto, distinções e diferenças entre os cristãos (por exemplo, ser papa ou bispo ou padre, ser religioso, ser casado etc.), não fazem com que alguém seja mais ou menos Igreja de Deus ou na Igreja de Deus; em outros termos, elas não se referem ao cerne essencial e sobretudo relevante do ser Igreja. Este nasce e cresce pelos sacramentos básicos vividos, e é a graça de Deus vivida e operosa em todas as dimensões do humano em que cada um está inserido. Igreja que cresce propriamente, cresce é a esse nível.

A Igreja, que não é excelente e eminente a esse nível, não é excelente e eminente no que mais interessa. Seria montagem de meios e instrumentais inoperantes, depósito de ferramentas sem uso (e passíveis de abuso!), uma vez que, além deste aspecto, todo o restante se situa na ordem dos meios e não dos fins. A Igreja de Jesus, em sua gema e fina flor, não está, por força da própria instituição, em nenhuma instituição que se rotula de “cristã” ou de “Igreja”, mas se fez e se faz presente em certos atos exímios e determinadas personalidades que expressam os píncaros da graça de Deus no mundo. Aí emerge o aspecto essencial da Igreja com brilho, excelência e eminência. Aí se mostram de forma insigne o Evangelho de Jesus e a Igreja evangélica que vive o querer de Deus revelado em Jesus Cristo em plenitude. Que se pense em Maximiliano Kolbe, Francisco de Assis, Teresinha de Lisieux, Vicente de Paula etc. É o lugar da dignidade dos santos e ações santas na Igreja. É a esse nível que se mede o ser-Igreja de uma pessoa, de um grupo e de determinado exercício de um encargo na Igreja. O resto é o resto, apenas instrumental voltado para esse foco central, e só serve se de fato funciona para tanto, e, se não funciona, não passa de carcaça externa e de efeito.

A graça de Deus, eis o único título de dignidade genuína no seio do Povo de Deus, que merece elogio e veneração (com todas as ressalvas que recaem sobre a realidade da graça, que sempre leva em conta a gratuidade e transcendência de Deus: ao coroar o mérito dos seus santos, Deus coroa os seus dons!). Falhando a vida e luz deste foco central da Igreja, você poderá chamar qualquer outro elemento existente de “eclesial” — e pode ser de fato, mas todo o restante fica sendo cadáver sem alma, sem vida e sem norte, pois não estará acompanhado por, nem voltado para servir a esse foco central. Este tem que ver com o amor, que se acende na descoberta de Deus que é Amor (cf. 1Jo 4,16), a ser testemunhado por obras (e não só na proclamação!) perante os homens. Pelo fato de o movimento de Jesus apresentar-se essencialmente voltado para o homem — e tanto mais quanto mais necessitado ele for! —, também todas as vezes que a Igreja se conceitua e se constrói (em sua produção simbólico-ideológica e na realização de si nos indivíduos, grupos e instituições) no sentido de se salvaguardar do dom ou encastelar-se em glórias e morgados, já não é mais, nessa faceta, de Jesus mesmo, mas tornou-se Sinagoga que preserva a Lei ou Império que acaricia o poder. O ser Igreja, na face sua que mais importa, brilha esplendoroso em todos os cristãos, nos ministérios e nas instituições que foram e são pelos outros.

A história e a experiência nos instruem sobejamente sobre a terrível possibilidade de alguém ser papa, bispo, padre, religioso no seio do povo de Deus, sendo, contudo e apesar de tudo, pagão de quatro costados! Ter encargos na Igreja não salva o portador por tê-los! É preciso a seiva da vida e graça de Deus, o testemunho do amor evangélico, viver a ventura e aventura comum de todo o povo de Deus, onde se acha a única dignidade de todos (cf. Mt 7,22-23).

Conexo com o tema do Povo de Deus, o Vaticano II discorre sobre o sacerdócio geral de todos os fiéis, que afinal os ministros ordenados não depõem quando se ordenam e ao qual eles não passam de serviços, pois que se refere ao núcleo básico do exercício da fé e graça de Deus. Todos são sacerdotes. O primeiro sacerdote de cada um é ele próprio. Se não o for, ninguém o será por ele e no seu lugar — as consciências são, sob esse aspecto, incomunicáveis e donas de si mesmas. Na relação com Deus há imediatidade. Cada fiel que se converte oferece o sacrifício de si mesmo e do seu mundo na fé, esperança e caridade ao Pai por Jesus Cristo (em virtude de sua união com ele no Batismo, Crisma e Eucaristia) na força do Espírito. Todo o restante na Igreja — também o sacerdócio ministerial (e esse não é para ficar no meio, mas para agir na raiz e ajudar o acesso direto ao Ministério, ou seja, ajudar o exercício do sacerdócio geral dos fiéis) — serve ao caráter sacerdotal geral de todos os fiéis. Só assim ganha sentido. O sacerdócio chamado ministerial não emerge para fora, mas se constitui no seio e a serviço do sacerdócio geral dos fiéis. Visa servir não ao seu portador, mas aos outros. O sacerdócio ministerial não dispensa do exercício do sacerdócio geral, mas, pelo contrário, ganha força e seiva do exercício dele.

b) As distinções e diferenças no seio do Povo de Deus apenas fundam serviços mútuos

Há um imenso leque de diferenças entre os membros do povo de Deus. Diferenças de toda ordem. Todas as distinções entre os cristãos (ser papa, bispo, padre, religioso, casado ou solteiro, criança ou jovem ou adulto ou velho, ser diversamente qualificado nas várias profissões humanas, como médico, advogado, engenheiro etc.), todas essas distinções, repito, não são títulos de dignidade no sentido de se poderem aduzir como base para exigir dos outros veneração, rapapés e salamaleques, mas única e exclusivamente comissionamentos em que se insere o carisma de Deus para o serviço diverso exigido pelo bem dos outros no seio do Povo de Deus. São títulos de deveres e obrigações, de encargos e ministérios, e não títulos honoríficos ou de pedestal para o culto das personalidades. São participações nas dores do “Servo de Iahweh” em prol da multidão.

Com isso, fica superada a figura piramidal de representação da Igreja. Assumimos uma mais adequada, uma figura como que circular: todos na Igreja são chamados a se relacionarem diretamente com o Mistério do Pai, Filho e Espírito Santo pela vivência da graça e do sacerdócio geral de todos os fiéis. Todos se constituem como que em um grande círculo em redor deste foco central. As diferenças de toda ordem fundam serviços e ministérios de uns para com os outros. A Igreja constitui-se, dessa forma, como uma circulação vital de serviços fraternos que nascem e recebem vida do próprio cerne do ser-Igreja, ou seja, da graça vivida. Os ministérios são, assim, tanto expressões da graça como serviços, em última análise, à graça. A Igreja é rica de serviços, carismas e ministérios, pois cada diferença funda novo serviço. E não é possível, portanto, haver um cristão que esteja destituído de ministérios, ao chegar à idade da razão. A tarefa messiânica de Jesus expressa-se em cada um de uma maneira.

Por força destes dados teológicos, não pode haver distinções de classes, castas ou status (no sentido sociológico) no seio da Igreja com legítima fundamentação evangélica. Só pode haver distinções de ministérios (diakonias, serviços, encargos, cargos, obrigações) a serem cumpridos para o bem dos outros, da comunidade cristã e sua missão no mundo. Se houver e enquanto houver semelhantes distinções de classe, a Igreja estará reproduzindo no seu seio as estruturas das sociedades mundanas não evangelizadas de dominação, sendo contratestemunho do cerne mesmo do Evangelho. Por isso os teólogos se esforçam para acostumar o povo cristão a evitar vocábulos que cheiram a poder humano e a sacralização, como “hierarquia”, “poder sagrado” etc., assim como também comparações e analogias buscadas nas sociedades humanas para ilustrar estruturas da Igreja (na linha da Igreja como “sociedade perfeita”). Porque, se poder existe (poder como capacidade de influenciar a vida dos outros), ele deve ser entendido e vivido evangelicamente apenas como serviço aos outros e não como exigência de serviço dos outros ao poder.

2. Sobre a superação da distinção entre “clérigos” e “leigos”

Com as reflexões anteriores creio que criamos clima para de imediato conduzirmos a questão para o seu final, ou seja, para o problema da distinção entre “clérigos” e “leigos” no seio do Povo de Deus, bem como para uma proposta de nova conceituação, e terminologia.

Nos precisos termos, em que vínhamos discorrendo, o teólogo deverá propor que se evite também a designação e distinção de “clérigos e leigos”, ao se referir à Igreja como Povo de Deus. Ela não é adequada sob vários pontos de vista, que passo a elencar:

a) Primeiramente, a teologia hoje deve estar consciente de que se produz depois da moderna crítica às relações e sociedades dominadoras, estando vigilante e atenta a tudo (até à terminologia) que expressa ou expressou a dominação e expedientes para eliminar a participação de todos ou que possa ser mal entendido nesse rumo. A história nos fornece sobejos exemplos de como essas relações de dominação foram até mesmo sacralizadas, como se estivessem baseadas no fato de Deus ter criado as pessoas com dotes e capacidades diferentes, de tal sorte que na própria natureza estaria enraizada (lei natural, e, portanto, estabelecida por vontade divina) a exigência de uma hierarquização natural (e sobrenatural) entre os homens, de tal forma que uns houvessem de trabalhar para servir aos outros por determinação da reta ordem da natureza. Não se percebia a relação “senhor-escravo” como mero produto social e, em consequência, como mera construção humana, dos mais fortes e detentores do poder social sobre é contra os mais fracos, expediente pelo qual aqueles impõem a esses facticamente os seus desígnios e interesses e ideologicamente (na cultura difusa, no Direito, na filosofia, na religião, na teologia etc.) o justificam, inoculando-lhes nas mentes o infantilismo, a não participação e a sujeição desumana.

A Igreja não se imuniza automática e totalmente do antievangelho das sociedades e ideologias que a cercam, sobretudo quando secundam os seus interesses, ou melhor, o dos seus homens (como no caso da relação da Igreja com o capitalismo, que se constitui essencialmente pela relação “senhor-escravo” e contudo não foi condenado por si e em si, mas apenas em razão de seus abusos mais graves). A teoria, a que aludimos no parágrafo anterior, certamente agiu na concepção piramidal da Igreja, de longa vigência passada e avançando para o nosso presente (e que ainda tem futuro). Aí se chegou de fato a se conceber e viver a “classe” clerical como se fosse protótipo e modelo do ser-Igreja, como se fosse até mesmo mais Igreja do que os outros, criando condições e ideologias que impediram efetivamente a participação e a responsabilidade exercida de todos pela Igreja e sua missão. Constituiu sempre um ponto de resistência, para a teologia e sobretudo para a prática, assumir os chamados “leigos” para uma responsabilidade primigênia pela Igreja e ainda existem temas que parecem tão estranhos, como o de um possível direito primigênio cristão de participar do governo da Igreja, do direito de eleger os ministros aos quais está sujeito etc. A Igreja continua ainda muito “clerical”, e bem mais “clerical de cúpula” (papa, cardeais, conferências episcopais, bispos) do que “clerical de base” (presbíteros e outros ministros). Eliminaram-se a participação ativa e a responsabilidade dos outros cristãos no seio da Igreja (até na liturgia, lugar máximo de expressão de Igreja), cuidando-se da formação esmerada apenas da classe do poder, em instituições onde o arcabouço ideológico se reproduzia na geração seguinte com rigidez constante e vigiada. Essa não participação, não casual, mas social e clericalmente provocada, age ainda hoje em muitos aspectos, como na maneira em que se nomeiam os titulares dos cargos eclesiásticos. Chegamos a tal clericalização de Igreja que se fez mister clamar e protestar que “a Igreja somos nós e não só papa, bispos, padres e freiras” (a literatura eclesiológica e eclesial andou cheia de sentenças semelhantes, que são de causar pejo; e não parecem dispensáveis, quando no material referente às CEBs hoje elas surgem com insistência).

A expressão “clérigos e leigos”, concomitante a uma sociedade e a ideologias de dominação, adquiriu terminologicamente — e de forma que parece inadmissível, tal a sua persistência em produzir e condensar práticas — as conotações classistas que notamos no dia a dia, espelhando a gramática ideológica da Igreja piramidal. São termos irremediavelmente sujos. Somente o seu passado comprometido seria argumento bastante para buscar e tentar nova designação terminológica. Contudo, não só ele, mas o cerne mesmo do Evangelho de Jesus aplicado à eclesiologia o recomenda: Não existe ninguém mais importante do que ninguém! Importante para Jesus é aquele que é importante para ajudar os outros. O resto é resto, anterior à conversão evangélica e à moderna crítica das relações opressoras.

b) Em segundo lugar, porque, com a divisão “clérigos e leigos”, apropria-se a um grupo um título da graça comum, que é dom de todos no Povo de Deus. Originalmente — ao nível da teologia bíblica, antes da contaminação eclesiástica pelo gozo e gosto do poder da sociedade circundante, antes de a Igreja se expressar na cristandade — klêros e laós (cujo adjetivo relativo é laikós) foram títulos da dignidade de todo o povo de Deus, anterior e na raiz de qualquer distinção.

Em Cl 1,12 encontramos a palavra klêros no sentido de “herança”, implicando o conjunto dos bens de que gozam os cristãos: “… dando graças ao Pai que nos capacitou para participar do klêros dos santos na luz”. Em Ef 1,11 encontramos o verbo klerôo, “eleger ou destinar por sorte”. Diz-se aí: en hô kaì ekleróthemen, que se poderia traduzir literalmente: “no qual fomos feitos clero”, ou seja, herança, fomos eleitos para participar de Jesus (cf. Zorell. Lexicon Graecum Novi Testamenti. Paris: Lethielleux, 1931, col. 713-14).

E laós na teologia bíblica, a que se refere o termo laikós (cf. Pierre Chantraine. Dictionnaire Étymologique de Ia Langue Grecque, Histoire des Mots. Paris: Klincksieck, tomo III, 1974, pp. 619-20) é o título por excelência da pertença a Deus na Aliança e da dignidade fundamental cristã. Não carrega o sentido pejorativo da nossa palavra moderna “leigo” em algum assunto; ou como na terminologia grega “popular” em contraposição à elite, que se distingue a si mesma dessa forma do resto do corpo social. Porta, pelo contrário, toda a riqueza de sentido que lhe advém da teologia bíblica sobre o “Povo de Deus”. Se o que se passou a chamar de “clérigo” não for “leigo”, não será simplesmente de Deus; como Povo de Deus é que também eles ganham o seu gabarito teológico, eclesial e espiritual (cf. Zorell, ibidem, col. 760). Vale a pena e condiz com o Vaticano II retornar à antiga terminologia, deixando-a valer para designar todo o Povo de Deus.

c) Em terceiro lugar, a superação dessa terminologia ajuda a eliminar o passivismo, abrindo espaços para uma realização mais rica da Igreja como Povo de Deus. Ajudaria a agregar em melhor síntese as aquisições da eclesiologia de figura circular e da Igreja toda ministerial, levando à valorização justa, sem distorção, também dos ministérios não ordenados. O ministério sacerdotal não receberia acentuação unilateral, devendo, em uma Igreja toda ministerial que se realiza na mais diversificada gama de ministérios, ser submetido a uma reconsideração e situar-se em maior equilíbrio. Ajuda a superar a ideia de que haja “funcionários” especializados em Igreja, perante os quais os “leigos” não passariam de leigos no assunto e cristãos de categoria segunda.

No entanto, em uma Igreja toda ministerial, é impossível ser cristão sem assumir serviços/ministérios no seio do Povo de Deus. Quem não achou o seu serviço/ministério ou não o exerce, ainda não resolveu o seu problema vocacional, porque cada membro da Igreja tem o dever de fazer circular fraternalmente o seu serviço ou serviços na comunidade dos irmãos, recebendo ao mesmo tempo o deles. Todo o batizado é batizado para exercer serviços/ministérios: é por meio deles que se dá o testemunho visível do Povo de Deus. A terminologia nova há de ressaltar o ser-Igreja e o caráter ministerial de todos, frisando o valor de outros ministérios e serviços, que não os ordenados, e que são importantíssimos para a construção da Igreja, como, por exemplo, o da família cristã, que passarão a merecer carinho e cultivo mais acentuados.

d) Em quarto lugar, pode-se superar essa terminologia e divisão de “clérigos e leigos” sem absolutamente nada perder do conteúdo de fé sobre os ministérios ordenados, evitando-se ao mesmo tempo os inconvenientes e percalços que se fizeram também históricos em seu uso ideológico e prático. A nova distinção deve acolher tudo o que havia de correto na antiga, abafando os seus pendores classistas.

Uma vez que toda diferença na Igreja funda serviços/ministérios, uma vez que toda a Igreja é ministerial, uma vez que todos os seus membros devem achar o seu serviço/ministério e exercê-lo ativamente sem ser impedido, mas estimulado, podemos intuir a adequação da divisão seguinte: existem na Igreja ministros ordenados e ministros não ordenados, ministérios ordenados e ministérios não ordenados, exercidos em mútua comunhão e ajuda. Uns não dispensam nem abolem os outros.

Entendo por “ministérios ordenados” aqui todos os serviços para os quais é preciso estar habilitado pelo sacramento da ordem, e em sentido estrito, ou seja, somente os serviços que necessitam da ordem para sua validez. Nem todos os ministérios que hoje estão de fato adscritos ao papado, episcopado, presbi-terado e diaconado, são incumbências que necessariamente decorrem de habilitação proveniente do sacramento da ordem. Espero no próximo artigo poder propor tanto uma divisão e dispersão em várias pessoas dos serviços que se fundam no sacramento da ordem e hoje são exercidos por uma só pessoa (bispo, pároco etc.), como também e sobretudo daqueles que são hoje de fato exercidos pelos ministros ordenados e para os quais não se requer o sacramento da ordem (por exemplo, celebrar o sacramento do Batismo, governar uma paróquia, dirigir uma pastoral etc.).

Os ministérios ordenados orientam-se de modo geral no sentido de ajudar o exercício dos não ordenados, reconhecendo-os, suscitando-os, coordenando-os (ou suscitando também a coordenação por outros), a fim de que rendam o máximo no sentido de construir a Igreja. E deles recebem, por sua vez, ajuda. Assim a tarefa de Igreja, diversificada a plurifacética apresenta-se claramente como sendo de todos.

A imagem tridentina da Igreja, com sua acentuação preponderante da função “sacerdotal” na missão eclesial (com a consequente expansão para o “sacerdote” católico post-tridentino e seu isolamento do Povo de Deus) é assim remanejada e aberta para o amplo leque dos outros ministérios, que também cumprem a missão da Igreja, missão que não consiste apenas emprestar culto sacerdotal a Deus, mas também em servir aos irmãos no seio do Povo de Deus e aos homens em geral na tarefa de sua promoção e libertação. Haverá de se criar espaço também para o surgimento de ministérios que atendam aos reclamos desse aspecto da missão da Igreja, ministérios como que voltados para o exterior, para o grande mundo. Entre os ministérios, a insistência deixará de recair sobre o aspecto estritamente sacerdotal do culto (é notável e significativo o próprio desvio da linguagem: pouco a pouco vamos deixando de falar de “sacerdócio ministerial” para dizer “ministério sacerdotal” e, melhorando ainda mais, “ministério presbiteral”, que não visa absolutamente apenas ao culto litúrgico em sentido estrito). Essa visão mais arredondada dos ministérios e estruturas de Igreja haverá, de incidir sobre o problema da identidade, lugar na Igreja e formação do presbítero, e sobre as novas formas e desdobramentos possíveis deste ministério, assunto a que voltaremos em um próximo número da revista.

Como podemos ver, temos assim certa relativização dos ministérios ordenados. Estão orientados para os outros ministérios, deles não prescindem, mas os ajudam, não os assambarcam nem os substituem. Hão de se exercer em “koinonia” com eles. E pode ser que haja em determinada comunidade em determinado tempo (ou talvez na Igreja como um todo e na Igreja de todos os tempos?) ministérios não ordenados que sejam mais básicos e importantes do que os ordenados. Somente uma mentalidade “clericalizada” está impedida de enxergar essa possibilidade. Não é de se pensar no papel ou ministério da família cristã nestes termos? Se assim pensássemos, cuidaríamos talvez das “vocações matrimoniais” cristãs com o mesmo esmero com que cultivamos as “vocações sacerdotais”!

“Ainda uma Igreja de clérigos e leigos?”, era o nosso título. Respondemos que a nova eclesiologia faculta uma divisão nova sem os percalços da primeira e muito mais equilibrada. Propomos uma Igreja toda ministerial, onde as diferenças não se situam ao nível do ser-Igreja, aberto igualmente a todos, mas unicamente ao nível dos serviços. Teologicamente é mais adequado substituir a antiga divisão “clérigos e leigos” por “ministros ordenados e ministros não ordenados”, devendo todos procurar o seu lugar de serviço na Igreja. Suprimindo a velha terminologia, vamos suprimindo as velhas práticas com ela conexas. Sobre as propostas para uma nova prática, retornaremos em um próximo número.

João Rezende Costa