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Publicado em número 216 - (pp. 18-24)

Presbíteros de hoje no mundo de amanhã

Por Marcelo Barros, osb

(Notas sobre identidade e espiritualidade dos presbíteros)

Peço perdão por começar com uma anedota, quase imprópria para ambientes sagrados. Um homem pobre de cidade do interior tinha uma filha única. Vizinhos advertiam-no que a filha, de menor idade, se prostituía. O homem brigou com os que insinuavam tal absurdo. De modo algum quis acreditar. Depois, começou a perceber sinais inquietantes. A filha saía muito à noite e com roupas pouco comuns para uma “moça direita”. Um dia, a sua angústia era tanta que resolveu segui-la. Esgueirou-se atrás da menina até a praça. Viu-a parada na esquina com outras moças que lhe pareceram igualmente estranhas. Ela foi abordada por vários homens. Finalmente, abraçou um desconhecido e os dois saíram juntos. O pai da menina os seguiu. Entraram em um hotel de última categoria. O pai, atrás. Subiram uma escada. O pai esperou um pouco e subiu também. Entraram num quarto e fecharam a porta. O velho aproximou-se e espiou pelo buraco da fechadura. Ele estava na cama e ela, tirando a roupa, pendurou a blusa na chave da porta. O pai não pôde mais ver nada. Desceu a escada, dizendo para si mesmo: — Que pena! Exatamente no momento em que eu ia tirar a dúvida que me atormenta, fui impedido e, por isso, continuo na incerteza…

Há assuntos assim. Mesmo que se elaborem todos os argumentos para mudar o pensamento e o agir, o coração tem razões que a razão desconhece. Na Igreja católica, refletir sobre o ministério presbiteral é mexer com modos de pensar, sensibilidades diversas e, um modelo sociológico do padre implantado no inconsciente coletivo. Este estudo quer apenas lembrar algumas bases teológicas e espirituais para contribuir com a renovação do ministério presbiteral na Igreja e no mundo.

 

1. Identidade antiga para padres novos?

A busca da identidade é uma constante em todas as pessoas e grupos, principalmente em épocas marcadas pela indeterminação ideológica e por inseguranças vitais. É normal que os padres se perguntem sobre a sua identidade. Querer clarear sua função para melhor realizá-la é bom e espiritual. Não é positivo quando se faz isso para se distinguir dos outros ou garantir poderes e privilégios. Muita gente pensa que a figura do padre mudou. “Voltou a ser antiga”. O jeito de ser padre tinha se renovado na década de 60 com o Concílio Vaticano II e aqui na América Latina com Medellín. A partir dos anos 80, uma “nova” orientação de Roma foi seguida e a figura do padre “retomou alguns aspectos do antigo modo de ser”. O problema é que esta nova figura nem segue mais o modelo do Concílio e da Igreja conciliar, nem consegue voltar a ser o padre dos anos 50.

Um relatório do Setor Vocações e Ministérios da CNBB constata que há muitos padres fiéis ao chamado apostólico, verdadeiros pastores no meio do povo, dedicando-se continuamente para atender às demandas das comunidades e esforçando-se para partilhar a vida do povo. A pesquisa revela que entre os leigos, a maioria está satisfeita com seus presbíteros. Mas muitos lamentam: “Cresce o número de padres autoritários que concentram o poder e não se engajam. Não têm interesse pela Pastoral. Preocupam-se demais com a exterioridade das celebrações ou, ao contrário, se limitam a celebrações rotineiras, sem valorizar o mistério. Parecem mais funcionários da instituição do que homens de Deus”[1].

L. R. Benedetti publicou uma pesquisa: “O novo clero: arcaico ou moderno?”[2]. Dedicada ao “clero jovem”, a pesquisa parte de textos dos encontros nacionais de presbíteros. O autor adverte para o risco de generalizações, mas destaca alguns traços dominantes na figura atual do presbítero. Confirma “o gosto dos padres novos pelos sinais distintivos de sua condição: festas, vestes, poderes e ausência de inquietação com relação ao destino da sociedade e da Igreja, pouco gosto pelos estudos, nenhuma paixão pelo ecumenismo e justiça social. Presbíteros mais preocupados com seu caráter e poder sagrados do que em ser presentes, dialogar e realizar um serviço competente ao homem de hoje”[3].

 

2. A busca de nova identidade

O Concílio teve dificuldade em mexer com a teologia do ministério. Indicou pistas para a mudança e não pôde realizá-la. Lembrou as bases neotestamentárias de uma mais profunda concepção do ministério. Acentuou o sacerdócio universal de todos os batizados (fala nisso 11 vezes). Insistiu que o sacerdócio ministerial é “essencialmente diferente” do sacerdócio de todos (LG 21). Não deixou claro em que consiste esta diferença.

A partir da década de 60, muitos padres deixaram o ministério. Isso, às vezes, foi interpretado como consequência da mudança provocada pelo Concílio. De fato, este apenas pôs às claras uma crise que, há tempos, existia. O clero diminuiu. Isso obrigou muitas dioceses a abrir-se a ministérios leigos e a dar responsabilidades pastorais a religiosas. Nem sempre isso foi feito por adesão à teologia do Concílio, ou por crer no sacerdócio batismal, mas pela necessidade de ter quem fizesse o trabalho.

Na América Latina, a Conferência Episcopal de Medellín (1968) propôs um novo jeito da Igreja ser. Sobre o ministério dos padres, houve experiências novas e enriquecedoras. Mas muitos continuaram no velho modelo, mesmo usando palavras da nova eclesiologia. Na prática, sustentavam o velho modelo.

A partir da década de 80, o Concílio e Medellín foram, pouco a pouco, esquecidos ou deixados de lado. Muitas dioceses voltaram ao “antigo” modelo de formação e de exercício do ministério presbiteral. Os seminários começaram a ser procurados por jovens mais atraídos por um estilo tradicional de Igreja do que pelo caminho novo de uma Igreja-Comunhão. Os livros continuam a usar termos do Vaticano II. Os rapazes aprendem o discurso, mas a fantasia que alimentam e na qual são incentivados pelos formadores é a da figura do velho vigário. Incentivam-se vestes eclesiásticas e ordenações pomposas que manifestam puro narcisismo e superficialidade mundana. O atual modelo para muitos padres jovens não é mais Josimo Tavares, Ezequiel Ramin, ou Gabriel Mair. Não é Oscar Romero, Helder Câmara ou Pedro Casaldáliga e, sim, astros de missas-show. Isso não é apenas um problema de eclesiologia e pastoral. O que está em questão é a própria forma de testemunhar a Deus e, portanto, o próprio núcleo da espiritualidade e da fé. Ser da cristandade em 1950 tinha uma autenticidade. Querendo refazê-la no ano 2001, refaz-se a casca sem o seu espírito e sem a mesma seriedade.

 

3. A noção do ministério presbiteral nas duas visões de Igreja

Após o 1º Encontro Nacional dos Presbíteros, o Padre Manuel Godoy, assessor da CNBB, escreveu: “Na busca da identidade do presbítero, durante esse encontro, veio à tona o impasse gerado por aqueles que acentuavam quase exclusivamente o aspecto cristológico da teologia do presbiterato: ‘agere in persona Christi capitis’ e ‘Sacerdos alter Christus’ (O padre representa o Cristo como cabeça do corpo da Igreja. O sacerdote é outro Cristo). Sublinhavam a dignidade dos padres com relação aos não ordenados. Entretanto, a maioria dos presbíteros tem outro esquema teológico e espiritual. Sublinharam que o ministro deve apontar para o Cristo e não substituí-lo”[4].

Santo Tomás usou essa imagem para mostrar que o ministério do presbítero não é isolado. Ninguém é padre por autoridade própria. Age in persona Christi. A eucaristia é ato do Cristo e não apenas do celebrante. No século XIII, muitos não entendiam o sentido teológico da concelebração, ou seja, porque muitos sacerdotes deveriam realizar aquilo que bastava ser feito por um só? Santo Tomás respondeu: “Se algum dos sacerdotes atuasse por força própria, os outros celebrantes seriam supérfluos. Bastaria que um só celebrasse. Mas, o sacerdote só consagra in persona Christi, e os muitos sacerdotes não são mais do que um em Cristo. Então, não importa se o sacramento é consagrado por um ou por muitos…”[5].

Em 1962, o Padre Yves Congar escreveu: “Certos ministros da Igreja usam a expressão ‘agir em nome do Cristo’, ou ‘ser outro Cristo’ para fazer valer sua autoridade. Na antiguidade, essas expressões nunca eram usadas em benefício próprio. Competia à comunidade reconhecer que alguém (ministro ou não) vivia de tal modo a conformação de sua vida ao Cristo que dele(a) podia-se dizer: ‘faz as vezes de Cristo’. Não por exercer poder em nome dele, e sim por agir como Jesus e a ele ser semelhante. Os biógrafos de São Francisco de Assis, que não era padre, diziam que ele lera uma cópia do Cristo’; semelhante a Jesus. A objetividade do sacramento é importante, mas em referência à realidade que expressa. Não se trata de cair na subjetividade. A dignidade sacramental é dada para o serviço eclesial, e não para distinções pessoais”[6].

O Vaticano II se recusou a usar o título de Alter Christus para os padres[7]. “Na teologia romana, a autoridade do bispo se fundamenta na sua posição ministerial. A sucessão apostólica se entende a partir da forma histórico-jurídica. A tradição patrística, especialmente em Tertuliano e Cipriano, considera os dons espirituais, isto é, a santidade pessoal, como decisivos para a autoridade do bispo (e do padre). A sucessão apostólica é considerada um dom pneumático, essencial para que o bispo exerça sua função” (Hans Küng[8]). Santo Agostinho dizia: “O que eu sou para vocês me apavora. É o que sou junto com vocês que me consola. Pois, para vocês, eu sou bispo e com vocês sou cristão. Ser bispo é um dever, ser cristão é uma graça. Aquilo é um perigo, o segundo é a salvação”[9].

Na década de 60, escrevia Karl Rahner: “Na Igreja, o sacerdócio ministerial é dado a um homem para este realizar o que a Igreja deve realizar, através deste ministério. Quem considera o ministério presbiteral nesta perspectiva e não como poder sobre o povo de Deus, compreende que deve ser muito prudente quando se trata de saber quais os traços específicos que distinguem os padres dos outros membros da Igreja. É uma problemática falsa. Há padres que se perguntam: ‘Para que ser padre hoje em dia, se quase tudo que o padre pode fazer, também é feito por outros?’ Conforme a teologia, há poucas coisas que um padre faz que um leigo não possa fazer. Ensinar, presidir celebração e mesmo batizar, não pressupõe ordenação sacerdotal. Nem falo de outras questões.

(…)

Colocar a questão dessa forma é colocá-la mal. Quando o Concílio discutiu a restauração do diaconato permanente, o Cardeal Ottavianni e os tradicionalistas da Cúria disseram: ‘Tudo o que o tal diácono faria, qualquer leigo com uma delegação da hierarquia pode fazer’. O papa Paulo VI respondeu: ‘Não se trata de saber se a ordenação diaconal dará a um homem poderes que ele não teria sem a ordenação. As ordenações são sacramentos. Não acrescentam nada. Expressam com o selo do sacramento a graça que Deus dá aos que cumprem estas tarefas de forma própria e eclesial’. É preciso ser claro: a ordenação não serve para dar poderes ou para permitir que o candidato faça isso ou aquilo mais do que os outros. A ordenação é da ordem do ser e não do agir. É da natureza sacramental da Igreja (Res sacramenti). Toca na questão da fé e da identificação com o Cristo Servidor”[10].

Medellín foi a Conferência Episcopal que mareou para a América Latina um caminho novo da Igreja. Ali, os bispos latino-americanos disseram: “Os presbíteros atuam na comunidade como membros específicos que compartilham com todo o povo de Deus o mesmo ministério e a mesma e única missão salvadora. Os leigos, por seu sacerdócio comum, gozam na comunidade do direito e têm o dever de trazer indispensável colaboração para a pastoral. Por isso, é dever dos sacerdotes dialogar com eles, não de forma ocasional, mas de modo constante e institucional” (Medellín 11,16).

 

4. O ministério numa Igreja que seja verdadeira­mente Comunhão

Deus é comunhão e a Igreja é chamada a ser Koinonia. Este é o conteúdo concreto da salvação. Sendo assim, cada crente e comunidade têm acesso à reconciliação que o Pai realiza com o mundo. “A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3). Sendo comunhão, ela é sinal e instrumento da vida divina comunicada ao mundo. Tudo na Igreja deve expressar a comunhão que é sua natureza mais íntima; comunhão não apenas interna (um clube de amigos que se queiram bem), mas profecia em meio a um mundo de competição e desigualdade. É comunhão em um mundo de excomunhão. Ela só pode ser essa presença se se colocar como “serviço ao mundo”.

Numa Igreja-comunhão, pode-se falar em um único ministério. O Novo Testamento o denomina “Diaconia”, serviço. Em Medellín, os bispos propuseram que a Igreja seja antes de tudo servidora (Medellín 5,15). Daí podemos concluir: o primeiro e mais preeminente ministério na Igreja é o seu serviço com relação ao mundo, o ministério do serviço libertador ou de promoção humana. A natureza da Igreja de Cristo é ser servidora do povo e testemunha do Cristo, que “veio para servir e para que todos tenham vida”. O principal ministério da Igreja é o serviço à vida, o que é especialmente expresso pelas pastorais populares. Embora nem sempre preguem explicitamente a doutrina, ou celebrem os sacramentos, testemunham e anunciam o Evangelho do Reino, proporcionando que todos tenham terra e assim vida humana digna: a Pastoral da Terra (CPT), a Pastoral Indigenista (CIMI), a Pastoral Operária, da saúde e dos sofredores de rua etc.

A pastoral interna (paroquial, sacramental) não é menos importante porque existe em função de um só serviço: o testemunho do Reino que é vida. Na realidade de um mundo no qual a vida é ameaçada, a defesa imediata e organizada da vida exige prioridade.

Se toda Igreja é serviço, esse serviço tem diversas modalidades e expressões: alguns de coordenação e outros de base. Todos ligados ao serviço do sacerdócio comum de todos. Ninguém é ministro por si mesmo e a pessoa só é ministro na comunidade. Conforme o NT, a única função dos ministros é ser testemunhas da ressurreição do Cristo Ressuscitado e confirmador dos seus irmãos, dando-lhes a Palavra de Deus e unindo a comunidade a eles confiada, exata­mente para cumprir este serviço do testemunho do Reino no mundo.

Nas Igrejas primitivas, os ministros eram homens e mulheres. Alguns ministérios eram locais (diáconos e presbíteros, viúvas e mártires) e outros de articulação (epíscopos ou zeladores e profetas). As funções não eram postas em ordem de importância. O povo era chamado “klerosespecialmente os mártires: testemunhas que arriscaram a vida pela fé, ou pela causa do Reino. Eis aí o caráter pneumático do ministério. Diz a Tradição Apostólica (século III): “Se um cristão for preso pelo nome do Senhor, não precisa mais de imposição das mãos para o diaconato e presbiterato, por causa do seu batismo e por causa da sua confissão de fé na prisão” (cap. 9)[11].

Desde o início, as Igrejas procuraram inserir-se na cultura vigente e falar uma linguagem compreensível aos ouvintes. No mundo antigo, a linguagem religiosa comum era sacrifical e toda religião tinha sacerdotes. Os cristãos, expulsos do judaísmo como apóstatas e hereges, queriam provar que se constituíam em comunidades sérias e confiáveis. Para isso, procuraram equiparar os ministérios cristãos com os graus de sacerdócio judaico. Era uma forma de inculturação e de se mostrar tão digno quanto as antigas religiões pagãs. Internamente se sabia que era uma linguagem imprópria. A Igreja só adotou realmente para seus ministros a linguagem sacerdotal quando precisou defender-se das tendências gnósticas. A palavra “hierarquia” só aparece na Igreja no século IV (cf. Congar, p. 159).

 

5. Sentido teológico do sacerdócio de todos

O sacerdócio real de todos os cristãos é ponto central da Bíblia. Os reformadores do século XVI se basearam no texto da 1ª Carta de Pedro (1Pd 2,4-5.9) para recusar o ministério hierárquico da Igreja. Como reação, a Igreja Católica pós-tridentina não prestou mais atenção ao conceito do sacerdócio universal. O Vaticano II o reabilitou e o tornou centro de sua eclesiologia.

Cinco passagens do Novo Testamento mencionam explicitamente o sacerdócio de todo cristão. Três pertencem ao Apocalipse e duas à carta de Pedro. Por exemplo, no prólogo, diz o Apocalipse: “A aquele que nos ama e com seu sangue nos resgatou de nossos pecados, que fez de nós uma estirpe real e sacerdotes do seu Deus e Pai” (Ap 1,5-6). A carta havia dito: “Vocês são uma raça santa, um povo sacerdotal” (lP 2,4-5.9).

Tanto a carta de Pedro quanto o Apocalipse têm como destinatários cristãos vindos do paganismo. E aplicam a esses convertidos a palavra do Êxodo (19,5-6). É um texto central, porque se refere à proposta da aliança. Deus diz: “Se vocês ouvirem a minha palavra e guardarem a minha aliança, serão a minha propriedade particular entre todos os povos da terra… Serão para mim reino de sacerdotes e nação santa”… (Ex 19,5).

Ser reino de sacerdotes (no grego: basíleion hierateuma) significa ser “espaço ou comunidade de reis”. Outro texto diz: “Para mim formei um povo para celebrar o meu louvor” (Is 43,21). Celebrar é tarefa sacerdotal. Há um paralelismo entre a função sacerdotal e a santidade: “reino de sacerdotes e nação santa”… Santidade aí significa pertença a Deus, separação do mundo para ser consagrado…

Tanto o 2º lsaías como o Êxodo vêm do tempo após o cativeiro da Babilônia, quando o povo, voltando à terra, era governado por sacerdotes. Antes de Davi, a cidade-Estado de Jerusalém era governada por uma dinastia sacerdotal. Agora (no pós-exílio — 520 a.C.), os sacerdotes reconstruíam a cidade e o templo. O reino era sacerdotal porque os governantes eram sacerdotes. Esses textos dizem: “Deus não quer isso!”. Bom texto para tempos de tentação da restauração da velha cristandade. Se queremos viver uma fé baseada na aliança com Deus, a compreensão do sacerdócio deve mudar totalmente. Todos são considerados sacerdotes. O sacerdócio deixa de ser hierárquico. Todo o povo é eleito na qualidade de reino de sacerdotes. Sendo uma comunidade assim, livre e na qual todos são reis é que Israel poderia “guardar a aliança”. É a forma de viver a aliança: ser sacerdotes de Deus no mundo.

Essa proposta de Deus nunca foi totalmente compreendida. Deus teve de aceitar a restauração do templo, culto sacrifical e sacerdotes profissionais. Mas, fique claro: é uma instituição humana e não divina. A Bíblia chama de sacerdote do “El Shadai” (“Deus Altíssimo”, originalmente nome de um deus cananeu) a Melquisedec: aquele do qual ninguém sabe a origem, nem o destino. É parábola do Messias. Seu nome diz: “Rei da justiça”, isto é, o sacerdócio da solidariedade (veio em socorro de Abraão). É modelo do sacerdócio do Cristo e, portanto, de todos os discípulos de Jesus.

No Novo Testamento, o sentido desse sacerdócio é: viver uma vida nova e, pela própria conduta, oferecer à humanidade testemunho da presença e atuação de Deus. Esse é o sacrifício espiritual. “Vocês todos(as) que foram batizados(as) no Cristo (todos, homens e mulheres, e sem distinção de ministérios!), foram revestidos(as) do Cristo. Não existe mais diferença entre judeu e grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Todos vocês são uma só coisa em Jesus Cristo” (Gl 3,27-28; Cl 3,10-11). A plenitude da graça do batismo é tal que, nela, todas as diferenças ficam relativizadas, perdem a sua força, não são mais separação. Permanecem distinções, mas dentro da mesma igualdade.

Nos cultos pagãos e no culto judaico do tempo de Jesus, só o sacerdote tinha acesso ao altar e ao santuário. Desempenhava papel de intermediário entre Deus e o povo que esperava fora. Esta mediação foi suprimida pelo Cristo. “O conteúdo do sacerdócio real de todos os cristãos é o acesso direto de todos a Deus, dando-lhes o direito de falar a Palavra de Deus, administrar os sinais de Deus e interceder pelo mundo”[12].

Trata-se de questão profundamente espiritual porque o que está em jogo é a própria imagem de Deus: o próprio modo de ser divino. Pelo fato de ser amor, o nosso Deus se doa e abre o seu acesso a todos. Não é como um rei ou alguém importante que precisa de ministros e secretários para barrar o acesso do povo simples à sala do trono.

O(a) cristão(ã) é sacerdote porque tem o poder de anunciar (é porta-voz de Deus ao universo e à humanidade), celebrar este acesso, esta intimidade de Deus e testemunhá-la em sua vida. Os cristãos já não são súditos de ninguém, mas soberanos com Cristo. Não são profanos, excluídos do serviço do santuário, mas, por meio do Cristo, sacerdotes. O sacerdócio batismal faz com que não caiba mais nenhum outro mediador ou intermediário entre Deus e os fiéis. Se houvesse, esse sacerdote seria teologicamente um supercristão. Rémi Parent, professor de teologia em Montreal, conclui: “Todas as comunidades e todos os leigos estão habilitados por Jesus Cristo, durante o tempo da história, a ser o primeiro e último responsável pela Igreja. Bispos e padres pertencem a este povo como batizados e não como responsáveis maiores. Se o bispo em sua diocese e o padre em sua paróquia representam as comunidades e nesse sentido exercem uma autoridade de representação, não é algo de direito divino e por um grau a mais no sacerdócio cristão, mas por conveniência e serviço necessários a cada Igreja”[13].

“É violenta a reação dos profetas, dos mártires e santos contra os abusos de um poder que se põe como teocrático. São Paulo não cessa de exortar a que os cristãos não percam a liberdade cristã (cf. 2Cor 3,17; Gl 5,1.13) e, através de uma obediência cega, não entristeçam o Espírito Santo (cf. Ef 4,30)”[14]. “Na nova aliança, ninguém mais precisará ensinar o seu irmão a me conhecer, ninguém mais será intermediário entre mim e o povo porque todos me conhecerão diretamente, pequenos e grandes” (Jr 31,31-34).

 

6. Em que sentido Jesus Cristo é sacerdote?

Jesus jamais se apresentou como sacerdote, nem atribuiu função sacerdotal a seus discípulos e seguidores. Sempre identificou sua função como profética: “Nenhum profeta é bem recebido em sua própria pátria”. Sua relação com o mundo sagrado e com a função sacerdotal foi crítica. Para perceber isso, basta ler os Evangelhos.

No diálogo com o judaísmo, as comunidades cristãs de origem judaica sentiram a necessidade de interpretar a vida de Jesus à luz do Antigo Testamento e lhe atribuíram o título de sumo sacerdote. O documento mais claro sobre isso é a Carta aos Hebreus. Sendo da tribo de Judá, Jesus não era de linhagem sacerdotal (Hb 7,14). Sua mediação não consiste em rito litúrgico ou culto. Ele é sacerdote “pela obediência ao Pai”; obediência que o levou a fazer de toda a sua vida uma oferenda (cf. Hb 2; 5). “É mediador de uma nova aliança”. Não se trata de opor a aliança cristã à judaica, e sim uma aliança de fé e uma baseada no legalismo que, na época, era a dos sacerdotes judeus. Essa distinção, com a proposta de uma “nova aliança” já aparece no próprio judaísmo (cf. Jr 31).

A carta aos hebreus compara Jesus com Aarão porque, como este, Jesus é chamado por Deus para interceder em favor do povo e oferecer sacrifícios por seus pecados (5,14). Entregando-se a si mesmo, Cristo consumou e assim superou o sacerdócio, como então era compreendido. O judaísmo atual não tem sacerdotes, e sim rabinos. “Jesus é sacerdote. Por isso, pode socorrer aqueles que agora sofrem” (Hb 2,17-18). O núcleo do sacerdócio de Cristo é a solidariedade com quem sofre.

 

7. Igreja local e Igreja que abrange o mundo todo

Só se compreende que toda Igreja é ministerial e o presbítero é ordenado na comunidade e em função desta, se se aprofunda a eclesiologia de uma Igreja que é comunhão e comunidade concreta. Falar em “Igreja local” é pleonasmo. Toda Igreja é essencialmente local, em comunhão com as outras Igrejas, e, no Ocidente, respeitosa da função de unidade e primado da Igreja de Roma. Durante o Concílio, K. Rahner e J. Ratzinger escreveram: “A Igreja como um todo existe onde se torna acontecimento no sentido pleno. Ela é necessariamente Igreja local. A Igreja universal se torna visível na Igreja local”[15].

No século III, Cipriano, bispo de Cartago, escreveu ao papa Estêvão: “Você é bispo de Roma e sinal de nossa unidade. Não é um superbispo. Para que subsista o laço da concórdia e persevere a fidelidade indissolúvel à unidade da Igreja Católica, é fundamental que cada bispo regule ele mesmo seus atos e administre sua Igreja como ele o entende, com a sua comunidade e disso ele deve prestar contas só ao Senhor”[16]. Em outro escrito, propõe: “Desde o começo do meu ministério, me impus uma regra à qual obedeço, custe o que custar: nunca decidir nada sem o conselho dos irmãos padres, diáconos e demais representantes do meu povo, respeitando a minha consciência”[17].

Quando Roma quis interferir nos costumes da Igreja de Milão, Santo Ambrósio reagiu: “Desejo estar em comunhão com a Igreja Romana, mas ela deve lembrar que nós também temos raciocínio e juízo. Somos também dotados de razão humana. Eles têm costumes litúrgicos e teológicos e os justificam pelas melhores razões. Nós também mantemos os nossos pelas melhores razões”[18].

Hoje, a Cúria Romana se sente “encarregada” da Igreja católica no mundo inteiro. Multiplicam-se incidentes de intervenções. Uma ou outra conferência episcopal e alguns bispos têm se pronunciado com clareza, pedindo outra forma de relação eclesial. Entre os bispos da América Latina, salvo exceções, predomina a adesão acrítica ou postura de medo. Essa situação se reproduz em todos os níveis da pastoral, do bispo aos padres. Cria mais uma cultura de autopreservação, quando não de carreirismo eclesiástico do que um caminho espiritual de fé e serviço pastoral. Não se renovará o espírito do presbiterato sem tocar nos outros ministérios e sem que o ministério episcopal reassuma seu papel profético na Igreja e no mundo.

 

8. O ministério presbiteral e a eucaristia

Antes do Concílio Vaticano II, de acordo com a teologia tridentina, era frequente alguém ser ordenado padre para celebrar a eucaristia. Hoje, os documentos insistem no valor da missa, e até da missa diária. Mas o sacramento da unidade, que deveria ser fonte de espiritualidade, é o ato mais clerical. Muitos cristãos, mesmo membros de comunidades religiosas, sentem dificuldade de participar de missas que só salientam a prepotência clerical e o despreparo teológico e espiritual de muitos padres.

A Eucaristia é memorial da Páscoa do Cristo. Na Ceia, Jesus nos entrega a sua vida (“o corpo entregue por vós / o sangue por vós derramado”). Celebrar significa que os discípulos (nós) aceitamos continuar este seu entregar-se. Isso tem de se dar, primeiramente, na vida concreta e depois no rito que sinaliza essa entrega. A Eucaristia é fonte e princípio de toda a vida da Igreja local. Essa Igreja, concreta aqui e agora, assume a disposição de testemunhar Jesus e o seu Pai(Mãe), como pura doação. A Eucaristia revela o mais profundo que se pode dizer de Deus: Ele(Ela) se dá a todos(as) e por todos(as). Nesse sentido, toda a comunidade que celebra, anuncia e vive essa boa notícia é sacerdotal.

A Eucaristia é fundamental. Não necessariamente para ser repetida todo dia, a cada momento e em qualquer circunstância, como ato clerical, ou devoção individual. Deve ser vivida como compromisso pascal. Tão importante e marcante como renovação do casamento com Deus. Uma espécie de marca (griffe) de firma, forma de ser da Igreja que passa a fazer de todos os cultos, de cada encontro, e até de cada refeição, compromisso de seguir Jesus em “amar até o fim”, que o levou até a cruz.

Aloisius Pieris, teólogo indiano, denuncia “três desvios” na forma latina de celebrar a Eucaristia: “Primeiro: a Palavra de Deus deveria ser o evento central da liturgia. Na liturgia romana, tende a perder-se em uma concatenação de palavras humanas. Às vezes, a Missa parece uma aula, e não a memória pascal do Senhor. Na tradição ortodoxa, o centro da oração eucarística é a invocação do Espírito (epiclese). Ela assegura a transformação do pão e do vinho em Corpo e Sangue do Senhor. Na tradição latina, ensinam que é o fato do padre repetir as palavras da instituição: ‘Isto é o meu corpo’. Assim, tudo depende do poder das palavras pronunciadas pelo ministro (…).

O segundo desvio: o Povo de Deus, cosacerdote com Cristo, é encoberto por uma classe clerical que toma conta do espetáculo. Primitivamente na celebração da Ceia do Senhor, como na Eucaristia contemplativa que fazemos na Índia, não há uma classe de clérigos agitando-se em volta do altar em vestes feudais. Sentamos todos, iguais, em volta de uma mesa. Não existe uma veste especial, ou vara, ou chapéu que defina alguém como quem possui o poder sobre os outros. Aquele que lavou os pés dos discípulos durante a primeira Eucaristia nos ensinou que quem coordena é verdadeiramente um servidor; somos filhos do único Pai materno, irmãos e irmãs do Filho de Deus, reunidos na amizade do Espírito Santo. A Eucaristia, momento mais expressivo da vida da Igreja, deve refletir o modo de ser da comunidade primordial: o Deus Uno e Trino, igual e simples (…).

O terceiro desvio é o fato de que o encontro com Deus, ou o reconhecimento de Jesus na partilha do Pão (Lc 24,30-32) é preso a um estilo do passado. A Eucaristia deveria refletir a experiência da proximidade do Reino de Deus mais do que ostentar o passado distante. A liturgia atual não expressa a unidade do Espírito Santo, mas uma estrutura de domínio herdada da Roma imperial. No ritual latino, parece que não é Cristo e seu Corpo (todo o povo de Deus) que atuam como centro da assembleia litúrgica, mas o padre ou o bispo, pleno de poderes, que atrai os olhares sobre a sua pessoa. Do início ao fim, é ele quem domina a Liturgia. Ao seu comando, as pessoas se ajoelham, se sentam e se levantam. Vão embora quando ele permite. Que poder! É nosso dever celebrar de modo que se recuperem os três valores opostos: a centralidade da Palavra, a unidade do Espírito e a intimidade com Abba-Amma (Pai-Mãe)”[19].

 

9. O que podemos concluir disso tudo?

“O Espírito Santo leva a Igreja a abrir caminhos novos e fomenta as oportunas adaptações do ministério sacerdotal” (PO 22).

O ministério presbiteral é tão denso que ninguém realiza todas as suas dimensões. Um padre cumpre mais um aspecto da vocação presbiteral, outro desempenha mais outra. Um atua mais no plano interno e outro mais no nível externo. Todos voltados ao mesmo fim e com a mesma espiritualidade.

Como o próprio nome indica, o presbítero é chamado a ser conselheiro, animador das comunidades e da Igreja diocesana. Um elemento fundamental dessa função é a de escutar, aconselhar, apoiar, fortalecer as comunidades e servir de traço de união entre o bispo e a comunidade e da sua comunidade com as outras. Por mais que se usem termos novos ou adaptados, na prática, em cada paróquia, o padre é a instância de decisão e, portanto, de poder. Hoje, é preciso recuperar a autoridade espiritual de profeta para testemunhar o Reino e não ficar despreocupado com o poder. Muitas vezes, o apego ao poder é sinal de que não se é verdadeiramente referência de autoridade espiritual para a comunidade Não se recupera autoridade espiritual, lutando por poder jurídico. Karl Rahner escreveu: “O cristão tem de usar o poder para tornar possível sua ab-rogação”[20].

O presbiterato é vocação comunitária e sempre deve ser exercida em espírito de colegiado. Tanto no espírito de pertença à diocese, como na relação com os outros padres, como no modo de viver o seu ministério com os leigos e religiosas(os), é vivendo comunitariamente a vocação presbiteral que o padre torna visível “o rosto de uma Igreja missionária e pascal, despojada do poder, aberta a toda humanidade e comprometida com a libertação de todas as pessoas e da pessoa por inteiro” (Medellín 5,15). Fazendo isso, o presbítero lembra aos leigos que estes são sacerdotes, anima e impulsiona a Igreja inteira a viver o seu caráter sacerdotal no sentido profético. Alguém só é padre para os outros, é ordenado para servir aos irmãos, para ajudar todo mundo a se descobrir sacerdote.

A espiritualidade do padre e, portanto, o que faz dele padre é o amor. O IV Evangelho acrescenta o capítulo 21 para deixar isso claro: “Pedro, tu me amas mais do que os outros?”. Diziam os padres da Igreja: “Quanto maior é o amor, tanto maior é a participação no sacerdócio de Jesus Cristo”[21].



[1] Cit. por LUIZ ROBERTO BENEDETTI, “O novo clero: arcaico ou moderno”, in REB 233/março 1999, p. 100.

[2] L. R. BENDETTI, ibid., pp. 88ss.

[3] BENDETTI, ibid., p. 89.

[4] MANUEL GODOY, “Presbíteros na década de oitenta”, in Vida Pastoral 196, set-out 1997, pp. 30-31.

[5] Summa Theologica III. q. 82, a. 2, ad2.

[6] YVES CONGAR, “Le développement historique de l’autorité dans l’Église”, in Problémes de l’autorité, Unam Sanctam 38, Ed. du Cerf, Paris, 1962, pp. 155ss.

[7] HERVÉ LEGRAND, “Le développement d’Églises-sujets, une requête du Vatican II”, citado por REMI PARENT, Uma Igreja de Batizados, Paulus, São Paulo, 1990, p. 82.

[8] H. KÜNG, A Igreja — 1º vol., Ed. Moraes, Lisboa, 1969, p. 20.

[9] AGOSTINHO DE HIPONA, Sermão 340, 1; PL 38, 1483, citado pelo Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, nº 32.

[10] K. RAHNER, Serviteurs du Christ, Paris, Mame, 1969, pp. 56-57.

[11] Citada por J. M. TILLARD, Chiesa in Chiese, l’Eclesiologia di Comunione, Queriniana, Brescia, 1987, p. 252.

[12] HANS KÜNG, Ser Cristão, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1976, pp. 423-424.

[13] RÉMI PARENT, op. cit., p. 98.

[14] PAVEL N. EVDOKIMOV, L’Amore Folle di Dio, Roma, Paoline, 1981, p. 138.

[15] K. RAHNER e J. RATZINGER, Episkpat und Primat (Questiones Disputatae, 11), Freiburg, 1963, p. 23, citado por J. BATISTA LIBÂNIO, “Conceito de Igreja particular”, in VV. AA., Igreja Particular, Loyola, São Paulo, 1974, p. 37.

[16] CIPRIANO, Epist. 55,21, citada por PIERRE L’HUILLIER, Collegialité et Primauté, in VV. AA., La Collegialité Épiscopale, Unam Sanctam 52, Ed. du Cerf, Paris, 1965, p. 332.

[17] CIPRIANO DE CARTAGO, Epist. 14,4. Este mesmo texto, ele repete na Epist. 34,4: “… tractanda… non tantum cum collegis méis, sed cum plebe ipsa universa”.

[18] AMBRÓSIO DE MILÃO, De Sacramentis, III, 1,5. Sources Chrétiennes 25 bis, Paris, 1980, 95,5.

[19] ALOYSIUS PIERIS, em um artigo sobre a celebração eucarística apresentado no livro: Visão do futuro. Ensaios em honra a Tissa Balasuriya, Ed. Centro da Sociedade e Religião, Colombo, Sri Lanka 1977, citado por ADISTA, nº 48 (21/6/1999), pp. 2-7.

[20] K. RAHNER, Escritos de Teologia IV, Herder, Madri, 1964, p. 495.

[21] VV. AA., Dicionário de Teologia, vol. III, Loyola, São Paulo, 1970, p. 296.

Marcelo Barros, osb