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Publicado em número 265 - (pp. 8-13)

Panorama bíblico sobre a paz como fruto da justiça

Por Aíla Luzia Pinheiro de Andrade, nj

Paz e justiça são dois anseios profundos de toda a humanidade. Embora o conteúdo desses dois termos varie de acordo com a cultura, ou com o idioma em que é expresso, ninguém duvida de sua importância para o equilíbrio das relações, para o bem-estar global do planeta e de seus habitantes.

Em nossa língua portuguesa, nem sempre alcançamos o sentido profundo escondido nos idiomas bíblicos dos quais herdamos tais termos. Estes são usados nas saudações entre irmãos das mesmas Igrejas: “Paz de Cristo!”, “Paz do Senhor, irmão!”, ou nas reivindicações, após sermos vítimas de alguma violência ou injustiça: “Exigimos justiça!”, “A justiça de Deus não falha!”

Vale a pena investigar suas origens para redescobrir o que significam e, aprofundando esse sentido, reorientar a vida de acordo com essa descoberta.

Shalom é o termo hebraico para “paz”, em grego, eirene. No Antigo Testamento (AT), shalom significa, basicamente, justeza (no sentido dos pratos da balança em equilíbrio), saúde, prosperidade, bem-estar geral e, enfim, bom relacionamento entre o ser humano e Deus. É uma condição de liberdade, vivenciada externamente, como uma ausência de guerra ou de inimigos, ou internamente, como falta de qualquer perturbação psíquica causada por enfermidades, medos, tristezas etc.

Por isso, a saudação shalom, usada também em despedidas, tornou-se o cumprimento mais comum. A Escritura afirma que até mesmo Deus saudava com o shalom: “Yahweh lhe disse: ‘A paz (shalom) esteja contigo!’” (Jz 6,23).

A paz como ausência de inimigos constituía o grande desejo de cada nação e era compreendida como um presente da divindade aos povos que se adequassem às suas exigências (cf. Dt 28,1.7). Essa mesma concepção era compartilhada por Israel; por isso, o ideal da Escritura é a existência de uma situação de paz (Mq 4,3-4). Dessa forma, Israel, em primeiro lugar, deveria propor a paz às nações, e não a guerra (Dt 20,10). E se, em último caso, essa proposta não fosse aceita, Israel teria várias normas a cumprir para respeitar a dignidade do inimigo — por exemplo, permitir que a mulher prisioneira de guerra guardasse luto pela família e em conformidade com a cultura dela (Dt 21,10-14).

No sentido de bem-estar interno, a paz é o quinhão de quem se confia a Deus (Sl 4,8; Is 26,3) e deveria ser buscada e vivida pelos justos (Sl 34,14). Por fim, o shalom aparece como principal característica dos tempos messiânicos (Is 2,4; 11,6; Mq 4,3-4; Zc 9,10). O messias seria chamado Príncipe da Paz (Is 9,6) e sua missão seria instaurar um reino de paz (Mq 4,4).

No Novo Testamento (NT), o termo eirene tem o mesmo significado e uso que o hebraico shalom. Por meio de Cristo, realiza-se a paz entre Deus e a humanidade (Lc 2,14; At 10,36). E é em Cristo, também, que se dá a eirene entre judeu e gentio (Ef 2,14-15), isto é, entre os povos. A paz é uma característica fundamental do reino de Deus (Rm 14,17). E deve ser buscada e vivida pelos seguidores de Jesus (Mc 9,50b). Paulo exorta os cristãos a viver a paz entre si (2Cor 13,11b) e, à medida do possível, com todos os seres humanos (Rm 12,18). Isso significa que o cristão somente não viverá a paz com alguém se o outro não quiser, mas nem mesmo assim a perderá: “Ao entrardes na casa, saudai-a. E, se for digna, desça a vossa paz sobre ela. Se não for digna, volte a vós a vossa paz” (Mt 10,12-13).

No NT, tal como no AT, temos eirene como saudação: “A paz esteja convosco!” (Lc 24,36; Jo 20,26). Aparece, do mesmo modo, como despedida: “Vai em paz!” (Lc 7,50). Mais que uma fórmula de cumprimento, a paz que vem de Deus, por meio de Jesus, é uma realidade efetiva e escatológica e, por isso, provoca uma reação no antirreino. A eirene do reino de Deus não significa uma ausência de conflitos como a pax romana, que impedia a reivindicação da justiça. A paz da soberania de Deus é denúncia de tudo o que impede a plena efetivação da dignidade humana. Nesse sentido é que se deve entender a seguinte afirmação: “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10,34).

A relação entre paz e justiça está fortemente presente no AT. O livro do profeta Zacarias exorta: “Fazei em vossas portas um julgamento de paz; não maquineis, uns contra os outros, o mal em vossos corações” (Zc 8,16-17). No antigo Israel, as portas da cidade serviam como tribunais onde se reivindicava justiça. Testemunhas de ambas as partes envolvidas no julgamento impunham a palavra por juramento e, a partir daí, o caso era decidido pelos anciãos. Em outras palavras, o que o texto de Zacarias quer afirmar é:

— ninguém deve maquinar o mal no coração contra o outro;

— não se deve mentir contra o próximo, causando-lhe injustiça;

— as testemunhas não devem favorecer a injustiça por meio de um juramento falso;

— todo julgamento seja em favor do shalom.

 

A partir desse ponto, percebemos uma relação íntima entre justiça e paz, ou seja, entre tsedakah e shalom, afirmada e reafirmada em vários textos bíblicos.

 

Justiça e paz se abraçam (Sl 85,11)

O termo hebraico tsedakah denota conformidade com um padrão. Na vida cotidiana, o termo é aplicado quando um objeto está na posição correta; também é usado para referir-se a pesos e medidas, no sentido de evitar fraudes (cf. Lv 19,36).

No aspecto religioso, Israel deve amoldar-se a um padrão bem definido na Escritura, à vontade de Deus. Justiça, portanto, é a qualidade de estar conforme o que Deus espera do ser humano. Basicamente, o justo é descrito como alguém que faz a vontade de Deus em relação ao outro. Uma das melhores descrições do que seja um justo pode ser encontrada em Jó 29,12-17:

Eu livrava o pobre que pedia socorro e o órfão que não tinha auxílio.

A bênção do moribundo pousava sobre mim, e eu alegrava o coração da viúva.

A justiça me vestia como túnica, o direito era meu manto e meu turbante.

Eu era olhos para o cego, era pés para o coxo.

Eu era o pai dos pobres e examinava a causa de um desconhecido.

Eu quebrava as mandíbulas do malvado, para arrancar-lhe a vítima de seus dentes.

 

Nesse último versículo, o malvado é comparado a uma fera e o indefeso é como uma presa a ser devorada por um animal feroz. Vestir-se de justiça denota uma disposição habitual para executar a justiça, e cobrir-se com o direito significa uma resolução firme para fazer o direito efetivar-se. Por isso, os necessitados da tsedakah encontravam no justo alguém a quem poderiam recorrer com a garantia de sair satisfeitos. O moribundo o abençoava pelo auxílio recebido e a viúva punha fim ao lamento do luto, pois nesse justo encontrava a proteção perdida com a morte do esposo e assegurava-se de que sua vida e dignidade seriam defendidas pelo justo.

Entretanto, o uso mais antigo do termo tsedakah geralmente tem relação com as funções dos juízes, evidenciando que as decisões deles deveriam estar de acordo com a verdade e ser tomadas sem parcialidades (Lv 19,15). Então, podemos notar que o termo tsedakah, compreendido no significado primário de “não divergir do padrão”, denota três aspectos inseparáveis: religioso, ético e jurídico. Essas três formas de manifestação da justiça constituíam a integridade do ser humano, isto é, a efetivação do shalom.

O aspecto ético envolvia a conduta do ser humano que tenta preservar o shalom da comunidade, cumprindo a vontade de Deus quanto ao outro. O principal credo de Israel começa com um apelo: “Ouve, ó Israel: Yahweh é nosso Deus, Yahweh é um. Portanto, amarás a Yahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6,4-5).

Comumente, pensa-se que esse mandamento regeria apenas a relação do ser humano com Deus e que outro preceito determinaria as relações interpessoais. Mas o termo hebraico traduzido por “força” significa o poder aquisitivo, como o dinheiro, as posses, a abundância, isto é, a totalidade dos bens, que deve ser posta a serviço de todos. Amar a Deus “com toda a tua força” supõe a tsedakah. Nesse sentido é que o pobre necessitado não pede esmola, mas clama por tsedakah. A resposta a esse clamor leva o abastado a fazer tsedakah, a “fazer esmola”, e não “dar esmola”. O “serviço de caridade”, no sentido judaico, consiste em antecipar o auxílio ao próximo, evitando que este necessite estender a mão em exigência da tsedakah, pois a existência do necessitado significa que a Escritura não está sendo cumprida, constitui uma afronta a Deus e indica a ausência de shalom.

Nesse sentido, é obrigação de quem ouve a palavra de Deus reduzir o desequilíbrio social por meio de condições efetivas de promoção humana, pois a justiça exige a intervenção de cada um. É em nome dessa compreensão de justiça que a Escritura está repleta de mandamentos que visam proteger e garantir o sustento do desamparado. Por isso, a tsedakah começa em casa, por meio da educação das futuras gerações, da conscientização de que cumprir a obrigação de justiça e tornar-se um instrumento dela é dever de todos. Então, compartilhar os bens é fazer justiça, ou seja, ajustar-se ao que Deus espera do humano.

Lv 19,18 rege: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Yahweh”. A chave da interpretação estaria nas palavras finais da ordem: “EU SOU”. Yahweh é o Criador e o Libertador. Esses dois eventos bíblicos, criação e libertação, destacam uma ação exclusiva de Deus e servem como fundamento das relações interpessoais e da ética. Se Yahweh é o Criador, então todos são irmãos e, como Yahweh é o Libertador, não há nenhuma justificativa para qualquer tipo de escravidão. Amar o próximo é um preceito que abre espaço para uma ética mais universalista, e, então, a teologia de Israel é convocada a aceitar também os estrangeiros como parte do conceito de “próximo” (Lv 19,33-34).

O dever de respeitar a dignidade de qualquer ser humano está arraigado no elemento divino que este encarna. E esse elemento é a dimensão mais elevada do humano, que é a imagem e semelhança de Deus. Portanto, é pelo reconhecimento do ser humano como encarnação da imagem e semelhança de Deus que se participa ativamente da construção de um mundo novo, chamado de reino ou soberania de Deus.

O desrespeito à dignidade humana reflete uma deficiência na criação por meio do não reconhecimento da imagem e semelhança de Deus presente naquele que é o “outro”, o “não eu”, o “diferente” de mim.

No sentido jurídico, a tsedakah considera a inocência ou culpabilidade de alguém com respeito à Lei de Deus, e por isso os juízes não deveriam favorecer o poderoso ou o rico em detrimento do pobre. Era dever do juiz, e posteriormente do rei, manter a justiça na comunidade (Ex 23,7-8; 1Cr 18,14; Pr 16,12).

O verbo “julgar” significa “decidir em favor de”. Todos deveriam ser julgados com equidade, como faz o próprio Deus (Sl 67,4). Os julgamentos eram realizados na porta ou na praça da cidade, nos lugares onde as pessoas podiam se aglomerar e qualquer um poderia ter acesso livre e servir como testemunha (Dt 16,18; Rt 4,1-2.11). E, quando a sentença era determinada, outros culpados cujos crimes não tinham sido provados poderiam ouvir e temer, evitando-se, de tal modo, o incentivo ao erro por falsa segurança de impunidade.

Quem fosse agir como testemunha num julgamento deveria ter cautela para que nenhum inocente fosse condenado como consequência de mentiras, perjúrios, malícias, vinganças, subornos etc. (Ex 23,1-8). A omissão em testemunhar também é um pecado contra a justiça. O livro do Levítico ressalta que, se alguém se recusasse a testemunhar sobre algum fato visto ou conhecido, necessitava de um sacrifício pelo pecado (Lv 4,24). Esse sacrifício era oferecido pelo pecador assim que tomasse consciência de sua transgressão. Ele deveria confessar a sua falta perante o sacerdote encarregado de fazer o sacrifício pelo perdão do pecado. O caráter altamente moral desse ato obrigava a pessoa a reconhecer sua culpável negligência e recriar os vínculos de paz com Deus e com o outro.

O exercício da justiça e do direito era o dever principal de um rei em Israel, tornando-se o critério por meio do qual a eficiência de cada rei seria avaliada. Tal compromisso contínuo com a justiça tornou-se o atributo ideal da dinastia davídica (1Rs 10,9; Sl 72,1). Acreditava-se que Deus concedia ao rei uma sabedoria especial para discernir a justiça e exercer o direito; por isso, quando Salomão ascendeu ao trono e ofertou um sacrifício em Gabaon, pediu a Yahweh que lhe concedesse um coração que escutasse, ou seja, perspicácia, para poder julgar o povo (1Rs 3,9). O pedido foi aceito (1Rs 3,12) e confirmado no episódio das duas mães (1Rs 3,16-28).

Então, ao receber o dom da sabedoria, o rei tinha o dever primário de administrar a justiça, de forma que garantisse o respeito à dignidade e a defesa dos direitos do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro, porque estas eram as pessoas mais desamparadas e necessitadas de justiça naquela época. Essa é a razão pela qual o salmista pedia a Deus que concedesse ao rei o conhecimento dos juízos divinos (Sl 72,1), para que, assim, o monarca pudesse julgar os aflitos do povo, salvar os filhos dos necessitados e castigar o malvado (Sl 72,4).

Essa concepção sobre a importância da justiça só é possível porque, para os antigos seminômades israelitas, governados diariamente pela regularidade da aurora e do ocaso, e pela harmonia das estações anuais, a totalidade da natureza estava de acordo com um plano mestre inerente ao universo. E transgressões da ordem social seriam consideradas como violações à ordem da natureza e, por conseguinte, contra o Criador. A transgressão da justiça significava o mesmo que o caos ou a anticriação, e por isso a efetivação da tsedakah evitava que os fundamentos da terra fossem abalados (Sl 82,2-5). O exercício da justiça remonta, pois, a algo mais profundo do que os aspectos propriamente ético ou jurídico. A injustiça é uma afronta ao Deus criador e à ordem da criação.

Outro fator a ser considerado é a frequente associação bíblica entre os termos justiça e equidade (retidão, direito), como aparece em Is 11,4, Sl 9,9, Sl 45,7-8 e Sl 98,9.

Em hebraico, com a mesma raiz do termo equidade se afirmam os enunciados “caminhar diretamente” ou “ir em frente sem se desviar para a direita ou para a esquerda”. A obra de Deus para a humanidade é “endireitar os seus caminhos” (Pr 3,6; Jr 31,9), e essa também é a missão do ser humano para com Deus (Is 40,3).

Eticamente, a equidade como modo de viver é uma característica do justo (Pr 11,5). E todos deveriam proceder dessa forma, porque Deus criou o ser humano reto, e não iníquo (Ecl 7,29). A equidade é uma qualidade do coração (Sl 7,11; Sl 11,2) que permite ao justo manter-se fiel. A expressão “andar no caminho reto” (andar na equidade) deve ser entendida como uma avaliação ética da totalidade da vida de alguém (1Rs 3,6). Ao ver Jesus morrer, o centurião afirma: “Realmente, este homem era um justo” (Lc 23,47).

Nesse sentido, ser justo não significa apenas cumprir a Lei objetiva, mas ir além, procurando sempre a vontade de Deus ou o espírito da letra da Lei. Para ilustrar esse ensinamento, os sábios judeus contavam a seguinte parábola aqui resumida:

O filho do Rabi Hanan contratou trabalhadores para transportar barris de vinho. Enquanto trabalhavam, um dos barris caiu e quebrou-se, derramando o vinho. Para castigá-los, o proprietário tomou-lhes seus mantos. Pensando no frio da noite que se aproximava, os trabalhadores queixaram-se a Rabi Hanan. Este aconselhou o filho a devolver os mantos. Mas aquele protestou, lembrando ao pai que não era isso o que a Lei ordenava. E o Rabi Hanan disse-lhe: “Faça-o apesar da Lei”. O Filho obedeceu, mas reteve o salário diário dos trabalhadores como pagamento pelo vinho derramado. E Rabi Hanan disse ao filho: “Pague-lhes o salário combinado”. Novamente o filho protestou, dizendo que não era isso o que a Lei ordenava. Mas o Rabi disse: “Faça isso apesar da Lei. Siga o caminho da justiça, meu filho, e não espere que a vida se amolde sempre à letra da Lei. Compreenda que o espírito da justiça é o maior valor”.[1]

 

Diante disso, a assertiva “fez o que é reto aos olhos do Senhor” (1Rs 15,5), frequentemente encontrada no livro dos Reis, significa a obediência não apenas aos mandamentos, mas ao dom da aliança entre Deus e o povo (Ex 15,26; Dt 6,17-18; 12,28; 13,18). Então, o rei deveria fazer reformas político-religiosas para assegurar que a vontade de Deus fosse efetivada. Tais reformas consistiam em decretos públicos que poderiam incluir a remissão de dívidas ou a libertação de qualquer lei opressiva.

 

Da terra germinará a fidelidade, e a justiça

se inclinará do alto céu (Sl 85,12)

O binômio fidelidade-justiça (Sl 85,12) é condição para o binômio justiça-paz (Sl 85,11). Falta, então, considerarmos o terceiro termo hebraico a estudar agora: emunah, fidelidade.

Muitas vezes, esse termo é traduzido para o português como “fé”, principalmente na expressão “o justo viverá por sua fé”. Esse tipo de tradução não está errado, mas não dá o significado mais profundo do idioma original, pois a maioria das pessoas, hoje em dia, concebe a fé como um sentimento, algo intimista e subjetivista. Na concepção bíblica, ter fé é o mesmo que ser fiel. Então a melhor tradução seria: “o justo viverá por sua fidelidade” (Hab 2,4; Rm 1,17; Gl 3,11).

No núcleo do significado da raiz hebraica de emunah está a ideia de “firmeza”, “certeza” ou “apoio”, concepção confirmada pelas afirmações do NT encontradas principalmente em Hb 11. Na linguagem cotidiana, a palavra emunah é usada para denotar os braços fortes do pai ao servirem de apoio à criança ainda sem firmeza para andar. A ideia de apoio também é encontrada em 2Rs 18,16, referindo-se aos pilares do templo. Também significa “mãos firmes”: em Ex 17,12, o termo é usado para dizer que as mãos de Moisés ficaram “firmes até o pôr do sol”.

O fundamento da fidelidade é o próprio Deus (Dt 7,9) e sua aliança (Sl 89,29). Por isso, ainda como significado do termo emunah, encontramos as expressões: “ser estabelecido”, “ser confirmado”, “estar seguro” ou “ser fiel” (2Sm 7,16; 1Cr 17,23; Nm 12,7). Em Is 7,9, aparecem juntos o sentido de ser fiel (ou de crer) e o de ser estabelecido: “se não crerdes, certamente, não sereis estabelecido (ou não vos mantereis firmes)”.

Dessa forma é que, depois de atravessarem o Jordão e estarem prestes a entrar na terra prometida, Josué propôs aos hebreus o grande dilema da fidelidade: adorar os ídolos ou decidir-se por Yahweh (Js 24,1-2a.15-18). A resposta foi unânime: “Longe de nós abandonar Yahweh para servir a outros deuses!” (Js 24,16). Em teoria, estava feita a escolha, mas, na prática, o povo continuou a oscilar entre a fidelidade a Deus e a idolatria. Muitos prevaricaram contra essa decisão de ter Yahweh como único Deus. Não obstante, sempre houve um remanescente fiel como sinal de que se deve renovar a cada dia a escolha feita entre Yahweh e os ídolos.

O mesmo dilema da fidelidade foi proposto por Jesus. Depois do discurso sobre o pão da vida (Jo 6,61-70), ele também provocou uma decisão da parte de seus ouvintes: segui-lo ou afastar-se dele. Muitos discípulos murmuraram: “Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?” (Jo 6,60). E muitos retrocederam (Jo 6,66). Mas Jesus, voltando-se para os que permaneceram, perguntou: “Não quereis também vós partir?” (Jo 6,67). Ele preferia correr o risco de perder todos os seus discípulos a abdicar da obra redentora do Pai, a qual estava incumbido de realizar.

Por isso, Jesus é o ser humano que viveu em plenitude a fidelidade. Ele representa a humanidade ajustada ao que Deus espera do ser humano. É o Filho de Deus humanado, por meio de cuja vida, morte e ressurreição revela-se a fidelidade do Criador no seu empenho de salvar a criatura, a ponto de não poupar para isso o Filho unigênito de uma morte terrível na cruz. Jesus é o rosto divino do ser humano e o rosto humano de Deus e, por isso, é a nossa paz.

Em outras palavras, Jesus é o nosso amen. Esse termo hebraico, derivado de emunah, tão usado em nossas orações, sempre serviu para expressar uma resposta ao que foi dito ou realizado; ou seja, amen é a certeza e a garantia que partem do seio da humanidade ao Senhor a quem ela ora e serve. Porque, em última palavra, emunah é um atributo de Deus (1Sm 26,23; Sl 36,6; Sl 40,11; Lm 3,23), descreve suas obras (Sl 33,4) e suas palavras (Sl 119,86; Sl 143,1). Resta a cada ser humano configurar a própria vida à de Cristo e, todos unidos num amen universal, atualizar sua missão de realizar neste mundo a paz que brota da justiça e da fidelidade.

Nessa intenção, oremos com o salmista:

Mostra-nos tua misericórdia, ó Yahweh,

e concede-nos a tua salvação.

Vou ouvir o que Yahweh Deus diz,

porque ele fala de paz

ao seu povo e aos seus fiéis,

para que não voltem à insensatez.

Sua salvação está próxima dos que o temem,

e a glória habitará em nossa terra.

Misericórdia e fidelidade se encontram,

justiça e paz se abraçam.

Da terra germinará a fidelidade,

e a justiça se inclinará do alto céu.

O próprio Yahweh dará a felicidade,

e a nossa terra produzirá o seu fruto.

A justiça caminhará à sua frente,

e com seus passos traçará um caminho

(Sl 85,8-14).

 

Que permaneçamos na fidelidade e construamos a justiça para que Deus manifeste a nós a sua paz. Amém.

 

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985.

EICHER, Peter (dir.). Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993.

FLORISTAN SAMANES, Cassiano; TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (dir.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999.

McKENZIE, John L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1983.



[1] Talmud, Baba Metzia 83a. O Talmud da Babilônia é um conjunto de 63 tratados compilados pelos sábios judeus e que versam sobre vários temas, organizados em seis ordens (grupos de assuntos). O tratado Baba Metzia significa, literalmente, “porta central”. O título “porta” quer dizer “seção” (em aramaico, baba). Esse tratado pertence à ordem Nezikin (sobre os prejuízos) e diz respeito a assuntos comerciais, no que se refere a sociedades e transações, perda de propriedade, incluindo escrituras, o comércio e seus limites, a usura, as relações entre empregado e empregador, arrendamentos etc.

Aíla Luzia Pinheiro de Andrade, nj