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Publicado em número 157 - (pp. 2-9)

Sindicato: possibilidade de participação e vida

Por Pe. Fernando Altemeyer Junior

(Entrevista com Vicentinho)

Vicente Paula da Silva, mais conhecido por Vicentinho, nasceu na cidade de Acari, Estado do Rio Grande do Norte, em 1956. Partiu para São Paulo, como migrante, há mais de 14 anos. É casado e pai de cinco filhos. Atualmente é presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (SP), membro da direção nacional da Central Única dos Trabalha­dores e inspetor de qualidade da Mercedes. Tendo sido procurado em nome desta revista, prontamente concedeu a presente entrevista ao coordenador de pastoral da Região São Mateus (grande São Paulo), Pe. Fernando, que a seguir transcrevemos.

 

VIDA PASTORAL (VP): Por que o número de trabalhadores sindicalizados no Brasil é tão baixo? (Recente pesquisa apresentava o número de apenas 13% dos trabalhadores sindicalizados.)

Vicentinho: Acho que para responder essa questão devemos separar o comportamento dos sindicatos. Realmente, a média é muito baixa. Mas existem exceções, especialmente dos sindicatos que estão ligados à Central única dos Trabalhadores (CUT). Nosso índice, aqui em São Bernardo (SP), é de 52% de trabalhadores sindicalizados. Nós temos 75.000 sindicalizados. Os sindicatos filiados à CUT têm geralmente um índice um pouco maior. Mas existem os sindicatos, que eu vou chamar de carimbo, que estão aí para apenas se sustentar através do imposto sindical, os sindicatos de cartório, ministeriais, pelegos, que têm uma postura de não sindicalizar, não estimulando a participação dos trabalhadores. E como existe o imposto sindical como dádiva de Getúlio Vargas, eles se sustentam até hoje. Por essa razão todos os sindicatos que têm um índice baixo, é porque seu orçamento depende mais do imposto sindical. Por isso, nós somos favoráveis ao fim do imposto sindical, embora não tenhamos concordado com a postura truculenta da medida provisória do Governo Collor.

 

VP: E o que o sindicato combativo tem feito para que mais trabalhadores se sintam parte do sindicato, que, afinal, é ele próprio organizado?

Vicentinho: Exato. O trabalhador precisa compreender que ele próprio é o sindicato. Em nosso caso, temos cartilhas de orientação. Há uma campanha permanente. Mas o que eu tenho mais sentido, no crescimento da sindicalização, é exatamente quando nós estamos na luta. A luta é uma coisa muito importante, porque nela o trabalhador vê o papel real do sindicato, como instrumento de defesa, um dos instrumentos mais importantes, hoje, para a democracia deste país, para a própria organização da sociedade civil. Isso tudo depende, evidentemente, dos dirigentes sindicais. Se eles são acomodados, têm uma postura de fazer do sindicato apenas um lugar de mordomia, um lugar que não tenha nada a ver com os trabalhadores, é evidente que aí não se estimula a sindicalização de jeito nenhum.

 

VP: Isso vale aqui na cidade, num grande parque industrial e também na roça, no sindicato rural?

Vicentinho: Sim. Isso vale em qualquer lugar.

 

VP: Sabendo que a maioria dos trabalhadores que estão aqui nas cidades são migrantes, e o processo de urbanização é tão rápido no Brasil, o que você acha que faz o trabalhador-migrante acordar? O que lhe dá consciência? O que te fez, como migrante, acordar para a luta sindical? O que te fez participar do sindicato?

Vicentinho: Olha, eu vou ter que retratar minha própria vida. Quando morava em Acari, no sertão do Rio Grande do Norte, na minha terra, participava na igreja. O padre Deoclides, que nós chamávamos carinhosamente de Deó, estimulava nossa participação. Eu participei de grupos de jovens e ajudei na igreja, inclusive na hora da missa ajudava o padre, pois ele tinha problemas de visão, e eu tinha que ler o Evangelho. É, eu lia o Evangelho! Isso há quatorze anos atrás. Mas eu tive que cuidar da minha vida. Tive que casar e vir para São Paulo. Ao chegar em São Paulo, eu me deparei com uma realidade completamente diferente, por que o povo de lá é diferente. Lá a gente dá boa-noite até no escuro para as pessoas. A gente se cumprimenta, se conhece. São Paulo é uma cidade muito fria. Eu sentia muita falta de participar, e um lugar que me fez um participante foi o sindicato. Os dirigentes sindicais iam na fábrica, especialmente o Lula e o Djalma Bom, que eram dirigentes na época (entre 76 e 81), e me convenceram um dia a ir numa assembleia do sindicato. Eu não acreditava muito no sindicato, achava que o sindicato não resolvia nada, que o sindicato não tinha poder. Isso porque imaginava o sindicato, e eu fora dele. Não me imaginava como integrante dele. E aí comecei a participar e verifiquei nossa força através da nossa organização, das nossas greves, das nossas conquistas, do respeito imposto ao governo, aos empresários. Eu não vim para cá decidido a ser um operário consciente. Vim com o objetivo de ganhar o salário, construir minha casinha e voltar para Acari. Era esse meu sonho. Depois tudo mudou. Acho que todo mundo passa por esse estágio. Mas, para dar o primeiro passo, é preciso participar de uma forma ou de outra. E um aprendizado coletivo. É um aprendizado infindável. É uma escola permanente. É a escola de nossa própria vida.

 

VP: Por que, no meio de uma massa imensa de trabalhadores, somente alguns entram na luta e muitos ficam passivos, sem participar? Qual é o “estalo”?

Vicentinho: No Brasil, a participação é muito pequena. Se você chega numa região que tem um sindicato que tenha um trabalho dinâmico, uma concepção de renovação, de autocrítica, de novas táticas, isso será um convite à participação; e felizmente a gente tem sentido isso, especialmente na hora da luta, que é a hora mais importante. Acho que os meios de comunicação, a televisão, os jornais nos alienam muito. Acho também que a escola, e isto eu aprendi no sindicato, precisa ser reformulada completamente, porque ela nos faz egoístas, nos faz pensar em ser super-heróis, nos faz pensar em ser ricos, faz as mulheres pensarem em ser atrizes de novela. É a ideologia dominante, com seus instrumentos deturpando nossa própria história, escondendo os fatos de nossa própria vida, como a história dos escravos, dos índios, a história de luta do povo brasileiro, do mundo dominado pela própria classe trabalhadora. Quando, no entanto, você começa a ouvir, a verificar que por trás daquele dirigente que está falando tem muita coisa de sincero, pode até ser que não esteja correto, mas é de muita sinceridade, você se sente um sujeito importante. Por exemplo, em 1978 eu não ia participar de assembleia do sindicato porque pensava que uma assembleia significava estar de paletó e gravata, muito bem arrumado e falando muito bem. Eu tinha vergonha de ir na assembleia do sindicato. (Certamente alguém pensa assim ainda hoje.) Quando cheguei aqui, e vi o sindicato lotado (e vesti a minha melhor roupa!), com trabalhadores vestidos com uma roupa como a minha, e pior que a minha, falando português errado — como falar português correto se não pudemos estudar? O importante é se comunicar — e eu ouvia falar tudo aquilo que era um sentimento que eu tinha guardado no meu coração. Então me senti em casa. O sindicato passou a ser pra mim a segunda casa. Nós temos que criar condições e estímulos para que haja participação. Uns vêm através do amor, da vontade. Outros vêm através da dor. Tem gente que vem aqui porque está desesperado, porque foi mandado embora, e, de repente, se conscientiza.

 

VP: Há quartos anos você está no sindicato?

Vicentinho: Eu fui eleito vice-presidente de Jair Meneguelli em 1981. Fui cassado em 1983. Voltei em 1984, como 2º secretário. Em 1987 fui eleito presidente e, em 1990, reeleito presidente. Já há dez anos.

 

VP: Por que você não desistiu?

Vicentinho: Ah! Porque isso agora faz parte da minha vida. Tudo depende de qual é a sua formação, qual é o seu compromisso de vida. Pra mim a luta que desenvolvo aqui ou fora daqui é uma coisa tão importante, tão fundamental como beber água. É a fé num futuro melhor. Quer dizer, tenho tanta fé que um dia vamos ser felizes, todos. Uma felicidade coletiva, resolvendo as questões básicas da alimentação, da saúde, do respeito à dignidade humana. Tenho tanta certeza disso, como amanhã será outro dia. E isso, evidentemente, tem estágios em nossa vida. Eu mesmo passei por momentos difíceis. Imagine quando fui cassado, o exército cercando o sindicato, a polícia invadindo minha casa, minha mulher grávida, dificuldades no emprego, risco de marginalidade… Essas horas são muito difíceis. Não posso dizer como se comportam os outros, mas tem momentos que você tem que ser muito forte. Muito forte mesmo, internamente, pra poder resistir. Então hoje, qualquer problema que ocorre com minha vida pessoal, do ponto de vista da luta, não é problema que abale minha caminhada.

 

VP: A pessoa central da fé católica, que é Jesus, não morreu como boi de matadouro, mas sim porque foi coerente até o fim com o seu projeto. Ele não fugiu da luta, por isso pagou o preço dela. Você tem essa disposição de pagar o preço que a luta operária, dos trabalhadores, exigir?

Vicentinho: Primeiramente eu queria declarar meu carinho ao meu ídolo que é Jesus Cristo. Especialmente sob o aspecto da luta que foi desenvolvida por ele e da proposta que ele desenvolveu como gente na terra, junto com todo mundo. Acho que essa é a grande referência que cada um de nós podemos ter. Queria discordar quando se diz que ele pagou por isso, pois bastou ele morrer e parece que foi uma torneira que se espalhou pelo mundo inteiro. Pois hoje não são somente doze apóstolos. São milhões e milhões. Em segundo lugar, a disposição de continuar a luta é uma coisa que está dentro da vida. Não consigo explicar de forma melhor. Está dentro! Dentro da gente mesmo! Não é separado, como se estivesse lutando como uma tarefa. Como se fosse um trabalho que eu estivesse desenvolvendo, e quando terminasse eu parasse de lutar e sentasse. Estou aqui lutando e um dia vou me aposentar? Não existe isso! É ser útil na vida, permanentemente. E essa utilidade pra mim é a mais bela. É a mais importante. Portanto como pessoas morrem atropeladas, como muitas crianças morrem de fome, como mulheres grávidas morrem ao pé da máquina, como as pessoas morrem de qualquer jeito. Que coisa bela é morrer lutando! Embora eu não queira morrer, pois eu quero lutar até fazer 100 anos!

 

VP: Você estaria disposto a pagar esse preço?

 Vicentinho: Eu não quero afirmar isso, pois pode parecer demagogia. Quero ser coerente na minha vida inteira e tento ser coerente a minha vida inteira.

 

VP: É fundamental para os trabalhadores guardar a memória?

Vicentinho: Fizemos uma descoberta nos últimos dez anos. Realmente, a classe dominante usa de todos os mecanismos para nos dominar, cegar e desviar nossa caminhada e para alienar as pessoas. A história e a política educacional nos colocam como herói Pedro Álvares Cabral, que, de fato, foi a primeira multinacional que veio ao Brasil, que assassinou, que levou riquezas. Muitos têm na mente como heroína a Princesa Isabel. Mas ninguém fala na República de Palmares, da luta dos escravos, da luta organizada desse povo. Muita gente aprendeu que Antônio Conselheiro era um maluco. Mas ninguém fala da sociedade fraterna desenvolvida por Canudos. Esse resgate é papel nosso tentar devolver. Resgatar e, de agora para frente, assegurar nossa própria história. Por essa razão, todas as lutas que a gente desenvolve aqui, a gente escreve. Nós produzimos jornais, revistas, temos nossos arquivos que contam nossa história e não somente para guardar, mas também para reconhecer os erros e os acertos. Temos um departamento de formação, que hoje, felizmente, tem a participação de um grupo de 800 participantes que buscam compreender sua história, sua vida, saber o que é política e a história da própria classe no mundo. E temos companheiros que estão num nível mais aprofundado, a quem chamamos de formadores, pois dão aula para outros. Essa é a política da multiplicação que é desenvolvida, pois esse é o caminho e perspectiva de uma nova sociedade. Quero acrescentar que nós estamos agora lutando por uma rádio e uma TV. Não somente para garantir a história, mas para assegurar as verdades e para ser um instrumento inserido no meio do contexto social. Onde nós moramos, a maioria dos companheiros são nordestinos, paranaenses, ou mineiros, que são violentados pela comunicação de massa e sofrem não só pelo baixo salário, mas de saudade. Eu mesmo sofro muito quando chega época de São João, quando chega o mês de agosto, que são as épocas mais importantes da minha terra. É a festa de São João e de Nossa Senhora da Guia. Aí tem forró, fogueira, dança e brincadeira. Isso tudo sempre me machucou profundamente nesses dias. Nós estamos tentando, cada vez mais, ver se a gente consegue resistir e estimular a cultura de cada um, para não haver esta destruição em massacre que se está promovendo neste país.

 

VP: E a defesa das crianças, como acontece no sindicato?

Vicentinho: Nosso sindicato já descobriu, ao longo de todos esses anos, que o sindicato não pode ser somente um instrumento grevista, mas que deve estar inserido como um sujeito social. E para lutar pelo homem novo, nós também temos que resolver alguns problemas que têm a ver conosco, como a questão do negro, da mulher, da saúde, e temos um grupo que discute a questão do jovem trabalhador. Na nossa categoria, metalúrgicos, não têm crianças, mas temos os adolescentes e jovens que ainda estão na escola profissional e que a partir da luta conquistam alguns direitos. Estamos profundamente preocupados com as crianças no país, especialmente aquelas que trabalham no trânsito, ou que são exploradas nas pequenas fábricas, de fundo de quintal. Nosso sindicato tem uma profunda sensibilidade e com muito orgulho a gente participa junto das entidades que cuidam da causa da criança, do menor. Há um trabalho solidário entre nós. Participamos ativamente do Congresso de Meninos de Rua, realizado em Brasília, e da Jornada do Menor, em São Paulo, e estamos profundamente inseridos, tentando avançar nesse contexto. Não numa relação paternalista. Não numa relação de pena dessas crianças, mas na perspectiva organizativa. Temos muita fé que essas crianças serão os grandes lutadores de nosso futuro. No relacionamento com a sociedade, com os pequenos, com os frágeis, com os que fazem parte de nossa legião, dos que querem justiça, a questão do menor é tão importante quanto qualquer outra grande questão nacional. Isso me sensibiliza, pessoalmente, profundamente, porque eu fui criança que sofreu. Não por ser abandonado, mas por ser pobre. O que nós não queremos é tratar a questão da criança com demagogia ou numa relação paternalista.

 

VP: E como fica a juventude trabalhadora diante da nova revolução tecnológica que ocorre no mundo e nas fábricas?

Vicentinho: Eu gostaria de dizer que a questão do avanço tecnológico é um problema de toda classe trabalhadora, do Brasil como um todo, e o papel do jovem diante desse processo é outra questão. Com referência aos avanços tecnológicos, defendemos a tese que nós, trabalhadores, devemos antes de mais nada nos capacitar para compreender e não fazer como na época da revolução industrial, onde os operários quebravam as máquinas porque aquelas máquinas iriam tirar seu emprego. Não somos contra o avanço tecnológico, mas queremos participar do resultado positivo dessa tecnologia, inclusive sob o aspecto econômico. Hoje a aplicação de tecnologia nas empresas que representamos aqui é para o benefício dos grupos econômicos, para produzir mais, para gerar desemprego, e isso para nós é muito sério e, por isso, têm acontecido inclusive greves para defender o emprego, para defender o trabalho. Em algumas empresas nós já conquistamos o direito de participar da implantação de qualquer nova tecnologia que possa existir. Mandamos companheiros nossos para fazer cursos no exterior, para se preparar tecnologicamente para desenvolver uma política de defesa do bem-estar social, e para garantir o controle da tecnologia brasileira, especialmente na área da informática. Com referência à questão da juventude, temos tentado trazer a discoteca para dentro do sindicato, para que a atividade juvenil venha para dentro do sindicato, para que haja participa­ção do jovem com consciência. Já fizemos isso no I Encontro de Jovens em 1989, aqui na sede do sindicato, pois o jovem tem outros problemas próprios dentro da fábrica, como, por exemplo, o da discriminação. Não há ainda uma solidariedade maior com a juventude trabalhadora, e isso vai depender muito da participação e da organização do próprio jovem. O sindicato, hoje, não pode ter mais o papel estritamente economicista. Ele tem que ter o papel de sujeito social. Temos cada vez mais que estimular a participação ativa do jovem. Isso também acontece aqui, quando antes das campa­nhas salariais promovemos um concurso de música para escolher a melhor música para ser a música símbolo da campanha. E os jovens ficam na maior animação aqui no sindicato. É uma coisa muito bonita!

 

VP: Neste ano de 1991 a Igreja assumiu a questão do trabalho para a Campanha da Fraternidade, com o lema: “Solidários na dignidade do trabalho”. O que isso quer dizer para um dirigente sindical?

Vicentinho: Acho que, desde Medellín e Puebla, a Igreja passou a ter uma nova face. Mas não é toda a Igreja, é parte. Desconfio que é minoria ainda. Existem mil problemas que eu mesmo constato aqui na minha região. Comportamentos completamente diferentes, antagônicos, pois a luta da classe trabalhadora é tão forte que divide, no melhor sentido, famílias, institui­ções, Igrejas. Acho que a Igreja Católica não está fora disso, não. A Igreja mudou essa face, e há muita gente boa, mas há também muitos emperradores dessa caminhada mais clara. De qualquer forma, acho extrema­mente positivo um tema da Campanha da Fraternidade abordando a questão do Mundo do Trabalho. Acho que a Igreja irá ter, pelo poder que tem no país, a possibilidade de mostrar como é a vida dos trabalhadores e trabalhadoras, como é que é o resultado desse trabalho, quais são suas condições de trabalho, os dados, a morte dentro das fábricas, os acidentes, os assassinatos no campo, a problemática toda do desemprego, da relação entre capital e trabalho… Mostrar tudo isso será extremamente oportuno num momento como este que nós vivemos.

 

VP: O que a Igreja pode e deve apoiar hoje na luta sindical?

Vicentinho: Nesta etapa da caminhada do povo brasileiro, a Igreja no seu papel pode estimular a melhorar o relacionamento entre capital e trabalho. Essa melhora não significa que o trabalhador deva capitular diante do patrão e sim que os empresários entendam a importância dos trabalhadores, sua participação nos lucros, opinião sobre o destino da própria empresa, condições de trabalho, respeito aos trabalhadores, enfim, essas são coisas concretas, que não ferem o papel da Igreja e que podem fazer avançar essa relação que no Brasil está muito atrasada. No Brasil existe uma indústria moderna, mas a relação de trabalho é superatrasada. Ninguém aceita que haja greves nem comissões de fábrica. Tenho o exemplo de uma empresa que por dez anos foi considerada pelos trabalhadores como mãe, mas no dia que eles fizeram greve ela se tornou um demônio, chamou polícia… Uma coisa que não pode, em relação à Campanha da Fraternidade, é não divulgar com maior entusiasmo os temas. Veja, por exemplo, a questão da comunicação no ano retrasado. Não senti que a Igreja se sensibilizou a tal ponto de estimular a sociedade a brigar pela democratização dos meios de comunicação social. Então não adianta ter uma campanha bonita, se não se leva isso para as bases, para as comunidades, de forma concreta.

 

VP: E o que o movimento sindical espera da Pastoral Operária?

Vicentinho: Aqui em nossa diocese de Santo André, a filosofia, o papel que D. Cláudio e vários padres aqui da região exerceram — em momentos da ditadura militar, dos golpes e das prisões, quando o sindicato sofreu intervenção — um papel de apoio efetivo. Muitos salões paroquiais serviram de local de reunião para os trabalhadores que não tinham a sua casa para se reunirem e discutirem seus problemas, pois o exército trancou. Fiz parte de uma chapa da diretoria de 1981, que foi eleita clandestinamente — porque a empresa não podia saber, pois mandaria embora — no fundo de um salão paroquial de uma determinada igreja. Isso mostra o apoio. Hoje, acredito que essa caminhada deva continuar, estimulando nossa própria luta. A minha relação com a Pastoral Operária, que tem companheiros na diretoria do sindicato, é muito estreita. Esses companheiros têm uma compreensão que deve ser mantida, é a de que devem estimular os cristãos a participar do sindicato, ainda que este seja instância autônoma e deliberativa para sua própria caminhada. Nenhuma organização pastoral deve substituir o movimento real, e os dirigentes são aqueles eleitos pelos trabalhadores. Entendendo-se esse papel, acho que nós vamos caminhar muito, e acho que está sendo muito positivo aqui.

 

VP: A Igreja, na história, já fez a opção pelos ricos. Desde Medellín refez a opção pelos pobres. Muitos dizem que isso está ultrapassado, que a opção deve ser pela classe média. Afinal, com quem a Igreja deve selar aliança?

Vicentinho: Não sei por que a Igreja tem que definir uma opção por rico, pobre ou classe média. Quando ela chega a essa conclusão é porque descobre que estava errada. Para mim a Igreja tem que ser Igreja-povo, em busca da verdade e da justiça. Se você vai em busca da verdade, da justiça, da igualdade não é opção pelos pobres, é algo natural, é obrigatoriedade, pois não pode haver uma visão de momento. A Igreja sempre deve estar ao lado da verdade, do respeito humano. Onde estão os injustiçados? Onde estão as vítimas da mentira? Onde é que os direitos humanos são desrespeitados? Onde estão os que têm fome, sem estudo e desempregados? São os pobres! Não há outro caminho. Ser pobre é condição imposta cada dia mais no Brasil. Segundo o Banco Mundial, o Brasil diminuiu em 42% sua riqueza. Está cada vez mais pobre. E os ricos têm hoje, na lista dos 100 maiores, três do Brasil. Algo, portanto, está errado. A mensagem não pode ser a de optar por um ou outro…

 

VP: O que para você, como trabalhador, é a paz?

Vicentinho: Essa pergunta é tão profunda. Recente­mente eu dizia aos jornais que trabalhador não tem paz de barriga vazia. A paz da covardia não pode existir entre os seres humanos. Nem a paz da morte! A paz implica no direito ao essencial do ser humano. Temos a vantagem de sermos humanos. E o humano tem inteligência. Então, o direito à educação é devido à própria condição humana, e questão política, para que as pessoas possam controlar a própria história e o poder, pois o povo é soberano. Pelo menos é isso que se fala, mas ainda não é verdade. Buscamos a paz da alimentação como algo natural, da moradia… Isso não é um direito que devia ser conquistado. Não deveria ser assim. É algo natural. O direito de divertir-se, de brincar, de passear. No fundo, no fundo nós não queremos brigar para mudar a sociedade, nós queremos é fazer voltar ao que deveria ser. Pois não acredito que o mundo sempre foi assim. A história primitiva e a dos povos contam muito bem isso: a fraternidade fazendo parte do cotidiano. Essa é a paz que nós queremos.

 

VP: Qual é a tentação em que nenhum operário deve cair?

Vicentinho: Uma das coisas que me deixa mais triste, profundamente machucado, é quando percebo um trabalhador que já tem muitas informações e que, conscientemente, passa a ser instrumento daquele que o dominou. Um dedo-duro, um fura-greve, um cara que faz campanha para seu inimigo explorador. Enfim, quando ele tem consciência. Sim, porque quando ele não tem consciência não pode ser culpado. Mas quando tem, não devia cair nessa tentação.

 

VP: Os evangelhos apresentam Jesus como o filho do carpinteiro, recolhendo aquela pergunta: Pode vir algo de bom de Nazaré? Você se sente bem ao saber que seu companheiro seja Jesus de Nazaré?

Vicentinho: Isso é uma coisa que me arrepia! Pelo que Jesus Cristo disse e pelo que fez, ele até podia ser um doutor, um médico, podia ser o que fosse, um intelectual, formado na melhor escola, eu seria ainda assim um fã dele. Agora, o fato de ele ser operário me dá uma honra muito grande. Isso nos honra profundamente. E o fato de Jesus ser operário, ter escolhido operários para estarem juntos com ele, isto é um grande sinal de que as mudanças passam pelas mãos destes. Aliás, é o que deve ser, pois são eles os que fazem tudo na terra: plantam arroz, feijão, fazem a casa, alimentam o mundo.

 

VP: Hoje sabemos pela teologia que tudo que acontece na história da humanidade, a partir do trabalho faz mudar a ideia que temos de Deus…

Vicentinho: Como mudou a minha!

 

VP: Você acha isso verdadeiro?

Vicentinho: Quando estava em Acari — em que pese meu carinho e respeito pelo padre Deó, que era um homem muito justo — eu fazia apenas reflexões bíblicas, mas elas não me levavam a muita coisa, não! Levavam-me a preocupações de ordem moral, mas não me levavam a novos caminhos. Levavam-me a ser paternalista, a ser um bom homem. Eu desejava ser rico para ajudar os pobres. Aqui, na luta, eu tive outra riqueza, outra visão. Participei de outra versão do que seja Jesus Cristo. E essa versão se acopla direitinho no meu eu. Hoje não tenho mais medo de falar das dúvidas que tenho sobre a própria fé. Tenho algumas dúvidas que meus companheiros cristãos das comunidades daqui acham normais. E nem por isso deixo de ser cristão. Isso me ajuda mais ainda.

 

VP: Você reconhece como cristão que Deus esteja lá no pé da máquina, lá na luta operária dentro da fábrica?

Vicentinho: Acho que Deus está em todos os instantes. Não o penso como aquele homem barbudo, de roupas brancas… Penso num rosto operário. São eles, os operários, o rosto de Deus. Quando estou numa assembleia, a impressão que tenho é que estou dotado de Deus. Mesmo que eu fale palavrões, mesmo que eu diga coisas erradas, eu olho para eles… É algo impressionante. E aí, eu comecei a ter dúvidas: Como é Deus estar presente entre nós? E uma religiosa me disse que do jeito que estou falando é como nós pensamos. Deus está presente numa criança, a comunhão é mais bonita quando vocês estão na luta. Deus está muito dentro da gente. E está dentro da gente nisso que nós produzimos. Quando produzimos uma luta por igualdade, quando a gente se sente mal pela companheira que abortou ao pé da uma máquina porque foi humilhada pela chefia, quando sentimos a dor de um pai que teve que deixar seu filho em casa, uma filha e essa foi estuprada, pois a mãe também foi trabalhar, quando chegamos ao sindicato e alguém diz que foi desempregado e diz: o que eu faço? Aí você é capaz de sentir e transformar tudo isso em expectativa, em esperança.

 

VP: São Paulo, Santa Teresa, Dom Romero, Chico Mendes, Margarida Alves… buscaram construir a mulher e o homem novos. Que valores éticos devem ter esse homem e mulher novos para poder ficar em pé?

Vicentinho: Em primeiro lugar devemos desmistificar certos valores morais e éticos que são colocados para nós. O amor é um valor ético que extrapola inclusive as regras. Devemos superar essa história egoísta da sociedade capitalista de que só vence quem trabalha. Essa é a lógica do mérito. Acho que a coisa mais importante na nossa caminhada é ser fiel. Ser fiel a quem você representa. Ser leal com os trabalhadores. Essa é a coisa que mais me fortalece, e faz com que eu olhe para a cara da peãozada com grande tranquilidade… Aceitar quando se erra. Isso é importante. Toda vez que percebemos que erramos, nós damos um passo para frente, parece que crescemos e multiplicamos. Ser fiel significa ser comprometido, ser honesto, entendendo que você não é nada mais que um representante, e que tem muitos atrás de você, e atrás deles estão os filhos, uma história, uma dignidade… E isso não pode ser jamais violado.

 

VP: O que você quer passar a seus cinco filhos?

Vicentinho: Quando meus primeiros filhos nasceram, eu pensava o que eles seriam. E tinha receios. Mas também pensei que não poderia exigir. Eles próprios iriam aprendendo. Gostaria é que fossem leais. Fizessem amigos. E que tivessem na mente a solidariedade. Se você é fiel e leal, você é solidário.

 

Pe. Fernando Altemeyer Junior